Rodrigo Petronio
A palavra-poema e a poesia em
movimento
Conversar com Mário Chamie é uma forma privilegiada
de pensar questões fundamentais da arte moderna e da poesia em
geral, com todo conteúdo crítico e reflexivo que essa atividade
exige. Protagonista do movimento Práxis, lançado em 1959, desde o
começo de seu trabalho literário Chamie tem demonstrado interesse
pelas questões relativas ao Modernismo brasileiro e a seus
desdobramentos. Entretanto, sua leitura desse momento histórico,
dispersa em sua obra crítica e ensaística (Intertexto, A Linguagem
Virtual e A Transgressão do Texto, entre outros) e concretizada em
todo seu percurso poético, sempre se guiou por uma saudável
heterodoxia, lançando mão, para tanto, de abordagens dialógicas do
fenômeno moderno que não redundassem em uma visão excludente da
poesia e na eleição de poucos procedimentos técnicos como condição
sine qua non para a arte. Nisso consiste basicamente a generosidade
intelectual de Chamie, que dá sustentação à sua obra crítica,
fazendo dela um exercício inclusivo de várias tendências artísticas
advindas da Semana de 22.
Partilhando da idéia de que o Modernismo brasileiro é
um “feixe de possibilidades” que tinha em vista justamente criticar
o próprio caráter de escola e de movimento que predominava na arte,
e que ele “não sabia o que queria, mas sabia o que não queria”, a
própria obra de Chamie parece nos conduzir a esse leque de caminhos
possíveis. A começar pelo fato de trabalhar a linguagem poética em
vários níveis, que abrangem desde o seu aspecto mais telúrico e
religioso, dos ditos e frases feitas da fala cotidiana (os dictemas),
onde Chamie descobre um material rico e elástico para a elaboração
de Lavra Lavra, por exemplo, até a ordem serial dos enunciados que
compõem o lado mais urbano de sua poética, cujo estopim se dá com o
livro Indústria. Há, porém, uma relação inextricável entre esses
dois movimentos de uma mesma sinfonia, e que articula a visão do
campo e a da cidade. Isso se dá porque Chamie não concebe a
linguagem poética como um fim em si mesmo, não se restringe “ao uso
exterior de técnicas e expedientes”. Ao contrário, ao invés de
apenas “manipular a linguagem” em busca de efeitos imanentes de
sentido, Chamie tenta penetrar “no corpo das palavras que a
constituem, recriando-as poeticamente”. É essa recriação interna do
verbo que levanta e redimensiona “as significações possíveis do
mundo objetivo, em suas manifestações cotidianas, históricas e
existenciais”.
É essa a essência de sua liberdade criadora, já que
sua poesia passa à larga das camisas de força ideológicas gregárias,
a que se reduziu boa parte da arte advinda dos movimentos de
vanguarda. Essa liberdade, em Chamie, é responsável pela sua criação
poética, extremamente particular, cujo itinerário formal pode ser
visto em consonância com o título de um de seus livros: é um objeto
selvagem que tenta escapar a todas as classificações. Segundo Chamie,
boa parte dos equívocos de diversas tendências da poesia moderna
posteriores ao Modernismo se devem a dois fatores iniciais. O
primeiro é uma confusão existente entre a “emulação” e “a
competência criativa”, fato do qual resulta “um acúmulo de tributos
e de pagas tributárias”. Nesse diapasão, os poetas estariam mais
preocupados em se filiar a certas tendências ou certos autores mais
ou menos hegemônicos do que em um diálogo maduro com a tradição. O
segundo fator, e talvez o mais grave, está ligado a uma concepção
mimética pobre da arte. Isso teria levado os artistas a pensarem a
poesia como uma mera “fatalidade reprodutiva”, e assim a querer
questionar a essência mesma de seus procedimentos e de sua razão de
ser, como se a arte e as técnicas em questão tivessem se esgotado.
O interessante da trajetória poética de Chamie é que ele soube lidar
com um fenômeno tão complexo como a industrialização, por exemplo, e
as implicações que a máquina traria para a nossa vida simbólica e
social, sem contudo resvalar em armadilhas tecnicistas e
evolucionistas dessa espécie. Para o poeta, quem age assim, se
esquece que “em meio à clássica antinomia Natureza versus Cultura, a
arte imita-se a si mesma”. Por isso, “a mimese artística transforma,
no tempo e no espaço, todos os dados da realidade (avião, pirâmide
do Egito, desejo de amar ou o pico do Himalaia) em pretextos de sua
criação transfiguradora”. Assim, é impossível pensar em morte da
arte, e até obtuso propor a questão, já que sempre haverá esse
elemento transfigurador, e negá-lo redundaria em um empobrecimento
do mundo, daí em diante reduzido a uma concepção mecânica de
técnicas que se sobrepõem a técnicas, se matando e anulando
reciprocamente.
É nesse núcleo de transfiguração que seu trabalho ensaístico e
crítico vai também concentrar suas forças. Esse trabalho tem várias
faces, mas todas se articulam em torno de um eixo comum, que é o
dialogismo. A visão dialógica da história é o que permite a Chamie
ver as obras não como uma sucessão de etapas ou como uma pasmaceira
trans-histórica e um vale-tudo, onde todas as coisas se liguem entre
si. Conforme o autor, em seus ensaios ele “lida e persegue o diálogo
que atualiza no tempo posterior presente a perspectiva futura de
tempos anteriores passados”. Em outras palavras, Chamie vê na
tradição in fieri, em movimento, o próprio presente em erupção, o
que transforma o passado em algo que ainda está em vias de se
realizar plenamente. Em seu novo livro de estudos literários,
Caminhos da Carta, isso se dá por meio da análise do percurso da
carta de Pero Vaz de Caminha, no qual o autor aborda as sucessivas
leituras desse documento clássico, a partir da antropofagia de
Oswald de Andrade, e suas reinterpretações de Montaigne, Rousseau e
Freud. Não se trata de uma historiografia no sentido estrito do
termo, porque Chamie está interessado nas ressonâncias do pensamento
selvagem descrito na dita carta que ainda ecoam nos dias de hoje e
na nossa formação.
Profecia do passado e reminiscências do que ainda
está por vir, é esse foco dialógico, aberto a todas as
possibilidades virtuais de um mesmo evento, que dá complexidade e
riqueza à sua obra, e também se espelha na sua poesia, em especial
neste novo Horizonte de Esgrimas. Criado a partir de um eixo
metafórico, que consiste na prática da esgrima (disputa), ele se
“materializa na esgrima do tempo contra a pedra”, que representaria
a disputa do próprio homem consigo mesmo, a fim de atingir a
permanência. Esse eixo de metáforas é o que dá elasticidade temática
ao livro, que se transforma no palco e na arena onde se encenarão
lutas de amor, disputas religiosas, incompatibilidades e contrastes
amorosos, rivalidades de egos, crenças individuais, doutrinas
filosóficas e devoções místicas, em um torvelinho de conceitos cujos
protagonistas se mostram em um espaço supra-histórico. Caronte,
Santo Agostinho, Momo, Sileno, Mansa Mussa, Midas, Lutero e Calvino,
entre tantos outros, são alguns dos personagens que nos acenam desse
horizonte de esgrimas de Chamie. Ao mesmo tempo, esse horizonte é
povoado pelo “surdo embate das coisas” e pelo “sopro do princípio
heraclitiano”, aquele que nos dá a impressão “de que em tudo há um
devir constante, uma mutação contínua” e nos faz suspeitar “que nada
é o que parece ser”.
Assim, lançando mão de uma abordagem dialógica, e ao
propor uma análise da história e das obras literárias que seja um
acorde que “conjugue autor, obra e leitor”, Chamie entra na
virtualidade do Sentido, e nele move as engrenagens do tempo,
querendo com isso superar as separações ilusórias existentes entre
passado, presente e futuro, e demolir o velho mito positivista da
busca de uma verdade essencial que anteceda a construção localizada
de quem lê e de onde se lê o passado. Na mesma proporção, o poeta
Chamie usa esses recursos para a sua fabulação, e cria com ela o que
se poderia chamar, à maneira de paródia, um horizonte de eventos,
todos agenciados pela inteligência poética, e fora dos quais somos
todos reféns e joguetes do acaso e do absurdo. E assim demonstra
mais uma vez que a poesia continua sendo a melhor espada contra a
falta de sentido do mundo.
Leia a obra de Mário Chamie
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