Rodrigo Petrônio
Mosaico de mitos: Cartografia do
Imaginário de Dora Ferreira da Silva
Para falar da poesia de um autor,
podemos começar pela sua produção mais recente. Nesse caso, podemos
começar a leitura desta nova obra de Dora Ferreira da Silva,
Cartografia do Imaginário, não só pelo seu conteúdo verbal, mas pela
sua capa. Nela vemos estampada uma bela tela de Frank Cowper, na
qual um anjo tange um alaúde solenemente, de olhos fechados, em meio
aos galhos de uma árvore, enquanto um pássaro o ouve em silêncio em
um dos ramos suspensos. Em qualquer outro poeta essa imagem seria
subsidiária, e teríamos que passar ao seu largo e ir buscar direto
nos versos a poesia. Porém, em se tratando de uma poeta para a qual
a palavra está no limiar da experiência litúrgica e o mundo é um
conjunto de signos a serem revelados em sua ascendência sagrada,
dir-se-ia que bebe no conceito cristão de integridade e que aspira à
unio mystica, devemos ter cautela. Provavelmente a atmosfera algo
insólita desses elementos sobrenaturais que se manifestam na
floresta não cumpra aqui um mero efeito decorativo, mas tenha, sim,
um sentido simbólico central para a compreensão mesma do livro. Mal
viramos as páginas, e eis que nos deparamos com a série de poemas
intitulados Anjos Músicos, a partir da qual o livro se abre para a
sua orquestração verbal. Isso confirma a minha hipótese? Até certo
ponto. Porque essa é apenas uma porta de entrada para uma via de ver
as coisas. Um umbral, uma passagem. Abramo-la, então.
Dentro desse universo que acabamos de
adentrar, dessa morada do ser que é a palavra poética, há o toque
dos dedos tangendo suas notas luminosas. Essa música tem uma
infinidade de camadas de sentido, difíceis de serem expostas de
maneira tópica e racional. Penso que a aparição do anjo é um
acontecimento que remonta ao duplo domínio, à conjunção de vida e
morte, transcendência e matéria, e vem sempre associada a uma
reprodução do universo humano em uma dimensão maior, algo que
estaria no limiar entre o puro Espírito desencarnado e a feição
humana talhada na argila. Mas isso não esgota a música em si mesma,
menos ainda a sua experiência. Porém, é nesse intervalo que Dora
compõe seus poemas e abre sua via singular de acesso à poesia. Sendo
a natureza uma instância que deve ser lida e compreendida para ser
contemplada, um dos melhores leitores e intérpretes que ela pode ter
é o poeta, que a desdobra como a uma partitura e a traduz em seu
canto para que os outros possam acedê-la. Nesse caso, sua posição é
a de um pequeno anjo, ou melhor, estaria entre as figuras
arquetípicas do Anjo e do boneco, como queria Rilke, um ser que está
no limite, na tangência entre a esfera eterna das essências
imutáveis e a inexorável necessidade de louvar o terreno, a morte, o
amor, a loucura e tudo o que submerge, se transfigura e se
transforma sob o imperativo do tempo e na corrupção da matéria.
Assim Dora erige seu canto: da perspectiva ficta de alguém que paira
indiferente sobre o transcorrer dos acontecimentos, mas que, em si
mesmo, ama o que há de mais vivo e só assim pensa o que há de mais
profundo, como disse belamente Novalis.
E o que significariam as asas abertas
do anjo? É um hiato, passagem, abertura (Offenheit) para o ser e ao
mesmo tempo desvelamento do rastro divino na natureza, tal como para
os românticos a Flor Azul não é uma simples aparição de flor em um
caminho pedregoso, a não ser que essa se oferte e descortine em si a
Máquina do Mundo, muito menos a flor geométrica e refratária de
Platão, que paira incólume no mundo das idéias, mas sim uma Flor
ancestral, originária e sempre presente, que contém em si não só um
olor ou uma forma, mas traduz sim em sua presença a potência do
sagrado disperso no mundo. Aqui a poesia arroga para si um uma
tarefa de grandes dimensões. Consiste na via de acesso ao
transcendental, mas sem perder seu caráter de artesanato mundano.
Aspira às esferas eternas, se nutrindo do que há de mais vital e
circulando naquele deus-rio do Sangue de que nos fala, mais uma vez,
Rilke, fazendo de nosso próprio dilaceramento o repasto de algum
deus bruto que nos queira atrelados ao ventre da terra e faça disso
mesmo a nossa glória e superação. A nossa comunhão.
É esse jogo entre as dualidades
fundamentais que Dora mobiliza em sua poesia: não só aquela
hesitação entre o som e o sentido que caracterizaria toda a
atividade poética, como queria esse impecável espírito mediterrâneo
que foi Paul Valéry, mas a dança entre o presente e a memória, entre
o eterno e o instante, entre o esteio mítico coletivo no qual a
humanidade se ceva e as experiências individuais intransferíveis que
compõem o que há de mais genuinamente nosso como indivíduos. E essas
dualidades se apresentam logo na estrutura do livro, dividido em
duas partes: Estátuas e Do Outro Lado, sendo ambas precedidas por
uma Introdução, composta por uma série de poemas que funcionam à
maneira de Abertura sinfônica, onde se delineiam os anjos e os
mosaicos da manhã, da tarde e da noite, e que funciona como proêmio
que pinta a cena onde se desdobrará o itinerário (o mapa) poético,
fazendo uma translação do ut pictura ao ut musician poesis, já que,
na obra de Dora, a poesia não se mostra apenas como pintura,
seguindo os padrões clássicos conhecidos da imitação, mas também
como música, como já fora muito bem sinalizado pelo poeta grego do
Ceará, Gerardo Mello Mourão, em exímio estudo sobre a poeta. A
primeira parte é da esfera do eterno: as estátuas não morrem porque
nunca conheceram a vida. São as formas que o passado nos legou e que
a mão do ourives compõe diariamente e oferece à dimensão
trans-histórica dentro da qual se desenvolve a história humana. É o
amanhecer, o ciclo natural, as forças e impulsos vitais primários e
a sua subseqüente elaboração. É o resíduo mítico que a civilização
legou e que permanece vivíssimo na imaginação criadora e também na
dimensão transcendental do sonho: Vênus, Horus, Osíris, Seth, Khepri,
Nut, Corfu, Fedríades, Adão, Jesus. E são as cidades e estações dos
mitos: Epidauro, Mármara, Patmos. A poesia seria o elo de ligação
entre essas duas realidades. Uma mítica, residual, projetiva,
originária, onde a coleção de pedras que se cravam no mosaico do
tempo delineia o semblante da civilização e do inconsciente
coletivo. Outra, pessoal, singular, concreta, feita da imago mundi
indivisível que cada um de nós projeta fora de si mesmo e reconhece
como real. O interessante é notar como a poeta realiza essa
intersecção: do outro lado da rua havia um menino, Osíris. É aqui
que se abre a mitologia da infância, leitmotiv do livro. É ele que
congregará em si a dimensão transcendental (do mito) e imanente (da
vida) em um passado que é, a um só tempo, memória (pessoal) da poeta
e inconsciente (coletivo) da humanidade.
Esse é um dos aspectos mais admiráveis
da obra de Dora Ferreira da Silva. Sua capacidade ímpar de conceber
a poesia como um mapa e como itinerário de mundos existentes e
passados, mas passíveis de serem manipulados pela imaginação e por
intermédio da invenção poética. Como diria o filósofo por
antonomásia Martin Heidegger, o que há de não cogitado e virgem sob
as formas gastas do passado em verdade ainda está por vir, é algo
que só espera ser iluminado pela consciência, lido em uma outra
chave existencial e lançado em uma outra clareira do tempo para ser
reconhecido em sua infinitude fundamental. É com essas crenças que
Dora manipula sua infância, recolhendo dela o que não é acidental e
meramente seu, despojamento só a partir do qual, paradoxalmente, se
alcança a impessoalidade necessária ao ofício da poesia e o
interesse universal de que essa fabulação é capaz. Não estamos mais
na trilha do anjo. Passamos por ele no caminho traçado pelos
primeiros poemas. Agora entramos já naquele templo vivo da Natureza
em que as correspondências se efetuam e onde os sentidos profundos e
manifestos se completam, como diz o famoso soneto de Baudelaire. É
nesse território dominado pelo sonho que as associações se tornam
férteis. É o reino da possibilidade, e é nele que a poesia encontra
a sua residência e razão de ser, já desde Aristóteles.
Uma metáfora perfeita para esse tipo
de leitura seria a viagem. O Outro Lado, embora se caracterize
textualmente apenas como um universo cotidiano de crianças que
descobrem o amor e a frustração, é a meta a ser transposta pelos
viajantes, espécie de Santo Sepulcro a ser reconquistado após a
peregrinação consciente por essas ilhas da memória. É a interdição,
o não-ponderado, o limite, a censura, o desconhecido, o tabu, o
mistério e muitas outras coisas que são do domínio de nossos anseios
e que estão também na nossa experiência imediata. É essa tensão da
descoberta que atiça o arco e a lira e os faz pulsar. No âmbito das
possibilidades, é simples a passagem do Osíris menino ao Osíris
deus. Ela se dá numa só metáfora continuada, presente no poema
Chamou-me o Deus. Pode também ser lido em outros poemas como Não
Eras Múmia e Ritual. A mãe egípcia e o mero soletrar da palavra
Egito já faz irromper uma cadeia de associações oníricas e de
relações afetivas, existenciais, psíquicas, sexuais e intelectivas.
No centro desse torvelinho de paixões e de conceitos difusos,
inaugurados pela recuperação do passado que eclode no presente
enunciado, a arte poética funciona como um caleidoscópio, como uma
argamassa que conseguisse dar o tom a esses motivos e oferecer à
nossa percepção um retrato desta nossa Origem comum e remota.
De maneira semelhante se dá a
conversão da vida tal qual foi vivida àquela esfera sobrenatural da
mesma vida que, em suas ressonâncias arquetípicas, se desenrola
dentro de uma paisagem mitológica. E não há aqui nenhuma concepção
engessada ou programática, nem em termos de escrita nem em termos de
visão de mundo. Os deuses não são exterioridades meramente
literárias, mas presenças hierofânicas que nos devolvem o mundo em
seu teor sagrado, virgem e inaugural, como se este estivesse sendo a
cada instante redescoberto. O que há é uma vivência interna da
Palavra como elemento primordial e fundador. O resto, como diria
Paul Verlaine com todo deboche, é literatura. O imaginário, nesse
caso, não é um espelho do real, nem uma representação sua ou
tampouco o seu reflexo. O imaginário cria o real e o funda, é uma de
suas instâncias, e é do ir e vir entre esses dois reinos, o do
possível e do provável, que a poesia encontra seu prumo e seu ritmo.
O mundo provável pode ser de natureza vária. Sejam os antepassados
Bulliarattis recuperados em Retratos da Origem, tela que conjuga um
retorno à ancestralidade da própria origem familiar à busca
ancestral pelo ser, sejam os vários retratos que se abrem em leque
em Uma Via de Ver as Coisas, nos remetendo à vivência íntima do
mistério. Essa é uma constante de toda a obra de Dora. Atividade
poética que se quer e se faz desvelamento das coisas para a
subseqüente revelação do ser, os poemas abrem frestas de luz no real
e nos reportam à condição transcendental que fundamenta a existência
destas mesmas coisas, ou seja, àquela condição que é, para falar com
Heidegger, a essência de sua fundamentação existencial concreta.
Nesses termos a poesia assume um caráter de gnose, de iniciação à
vivência de realidades supra-sensíveis, embora mergulhando e
deitando suas raízes profundas no que há de mais vivo na
sensibilidade, como alguém que se valesse de imagens e palavras para
figurar o não representável e o inefável. E seria ocioso dizer aqui
que esse é o princípio de toda a figuração religiosa e de toda a
arte iconográfica.
Dentro dos enquadramentos amplos e de
longos vôos da obra poética de Dora Ferreira da Silva, cujos
correlatos cinematográficos talvez sejam os filmes de Andrei
Tarkóvski, Cartografia do Imaginário representa uma continuidade
madura e aprofunda muitos dos temas caros à autora, pertencentes ao
seu universo de meditações. Os únicos reparos que poderíamos fazer
dizem respeito à métrica e às rimas de alguns poemas, que acabam
soando fracas, ficam aquém da acuidade geral do restante da obra.
Isso pode ser observado principalmente em poemas de versos curtos,
geralmente de sete sílabas, onde a autora ensaia um despojamento
infantil que não logra êxito, como em Carnaval e Escolhi Frutos.
Outro ponto que diminui a integridade formal do livro é a seção
final, intitulada Poemas Vários. Não que os poemas não sejam bons.
Pelo contrário. Aí estão algumas das melhores peças do livro, como o
magnífico Epidauro, que narra uma viagem imaginária de carro que
Dora teria feito ao lado de Henry Miller e do poeta grego
Katzímbalis rumo a esta cidade. E justamente esta é a questão. Essa
seção do livro é muito ampla, contém muitos poemas, e acaba fugindo
da tônica das duas partes centrais, Estátuas e Do Outro Lado. A
poeta poderia ter agregado esta parte ao conjunto da estrutura do
livro, e dado um título a esse andamento da sua sinfonia que
funcionasse como uma continuidade do que foi desenvolvido até ali,
de modo que o começo e o fim se reatassem e não houvesse tantos
poemas bons soltos, ocupando uma espécie de marginalia temática da
obra.
Porém, esses são detalhes
insignificantes diante da tapeçaria poética ímpar que Dora nos deu
com esse seu novo livro. E como todo bom poeta habita uma conjunção
de todos os tempos possíveis e toda a pessoa inteligente sabe que
não há vaidade mais idiota do que querer ser uma pessoa do seu
tempo, a poeta e a mulher Dora abrem solenemente as asas, pairam
sobre essa cartografia de cidades e de deuses e planam tranqüilas
sobre todos esses tempos conjugados em um único instante, como notas
unificadas sob a ação do acorde de sua obra. Nela entramos como quem
passa pela porta do mistério e saímos transfigurados. Porque essa é
a função da poesia para os antigos que revivem incólumes aqui: a
catarse. Não só no domínio do teatro e da cena, mas naquilo que diz
respeito às forças instauradoras e às potestades divinas que a boa
arte mobiliza em si e no espectador. Unindo em si o duplo domínio,
dos vivos e dos mortos, do mundo terreno e imediato às vivências
originárias que esculpem nossa fisionomia, sair desta floresta de
signos é entrar de novo na vida, mas sob outra condição. Não mais
aquela que nos alija da História e nos deixa presos à fatuidade
banal de nossas atividades cotidianas, entregues à deriva de seu
círculo vicioso. Mas àquela onde se processam e dimanam as
possibilidades mesmas que originam a nossa vida possível, e assim
nos educa para o sentido mais substancial da palavra liberdade.
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