Rodrigo Petronio
As Palavras e as Coisas
Provavelmente no dia 29 de setembro, dia de São
Miguel, do ano de 1547, nascia na cidade espanhola de Alcalá de
Henares um tal Cervantes Saavedra. Foi batizado apenas no dia 9 de
outubro, porém. Nesse mesmo ano, morrem dois dos maiores inimigos
dos habsburgos: Francisco I da França e de Henrique VIII da
Inglaterra. Também nesse ano a perseguição étnica e religiosa se
acentua; aparece o primeiro Index Exprobratorum assinado pelo
Vaticano, que estreitava a vigilância em torno da pureza do sangue e
fazia mais rigorosas as inspeções das vidas dos cristãos conversos,
de ascendência árabe ou judaica, processo que viria a ser satirizado
pelo próprio Cervantes em um entremez teatral, El Retablo de las
Maravillas. Se confiarmos no retrato que o próprio autor pinta no
Prólogo de suas Novelas Exemplares, publicadas em 1613, ou seja,
quando contava com a idade de 65 anos, era um homem de cabelo
castanho, face lisa, olhos alegres e nariz curvo, embora não
desproporcionado. Os bigodes eram longos e a boca pequena. Os dentes
nem pequenos nem grandes, porque os tinha em número de apenas seis.
Não bastasse isso, nos diz que estão mal ajustados e sem
correspondência uns com os outros. Sua pele era viva, nem branca nem
morena. Foi soldado durante muitos anos e passou cinco anos e meio
cativo. Perdeu os movimentos da mão esquerda por causa de um
acidente de guerra, ferimento que, se para alguns pode parecer feio,
para ele é formoso. E é com muito orgulho que nos relata esse
episódio e sua conseqüência em uma passagem de seu poema Viaje del
Parnaso, e fecha a terza rima com uma máxima moral: o que perdeu com
a mão esquerda lhe compensou em glória a destra. Para a sua fama e a
nossa felicidade – poderíamos concluir.
A despeito do tom burlesco dessa pequena tela, e
levando em conta outros aspectos da obra de Cervantes, dificilmente
podemos pensar que esse seja um retrato tipológico, onde ele, no
intuito de criar algum efeito cômico, esteja apenas lançando mão de
algumas tópicas e assim tecendo uma caricatura, indiferente à
verossimilhança e às nuanças da individualidade do retratado. Tudo
indica que haja aqui um misto de representação fisionômica e de
convenção satírica. E pensando em uma dimensão mais ampla, podemos
encontrar ressonâncias e equivalências entre esse retrato e uma
série de episódios consignados pelos seus biógrafos, muitos dos
quais não completamente solucionados em suas dificuldades
interpretativas. E nada mais justo para com um autor que ergueu um
monumento ao paradoxo e levou as letras ao limite mesmo da
representação, àquele ponto delicado onde a poesia e a história
encenam sua farsa a ponto de não podermos distinguir uma da outra,
ou sequer estipular um limite entre o fato e a ficção, do que
começar suspeitando da própria impessoalidade de sua obra. O que me
leva a crer que esse retrato seja fiel demais ao personagem Miguel
de Cervantes para ser mera realidade, e fictício demais como retrato
para ser apenas um personagem. Afora esses jogos de conceitos de
gosto duvidoso, não estou propondo uma interpretação de sua obra a
partir de uma frivolidade biográfica que tente explicá-la pela sua
vida e vice-versa, mas sim que a arte de Cervantes faz da própria
representação a encruzilhada onde essas dimensões se unem, e onde o
mundo vira um palco onde essas máscaras se encenam. E é assim que
nos presenteia com a sensação assustadora de que a vida talvez não
seja mais que um sonho, como já sugeriu Calderón de la Barca de
maneira magnífica.
Miguel de Cervantes foi o quarto filho dos seis que
tiveram o casal Rodrigo de Cervantes e Leonor de Cortinas, família
que desde cedo teve que migrar por várias cidades como Valladolid,
Córdoba e Sevilha em busca de melhores oportunidades. Seu pai era
médico cirurgião, profissão que não tinha na época o status que tem
hoje, e é bem possível que sua função consistisse em cuidar de
ferimentos de soldados e tarefas afins. Tinha sido abandonado pelo
avô do escritor, Francisco de Cervantes, que rumou com uma amante e
seu escravo para Córdoba, deixando a família em péssima condição.
Sabe-se pouco da infância de Cervantes, e tudo se reduz a hipóteses.
Carlos V está no auge de seu poder e o Império Espanhol se estende
pelos Países Baixos, de onde vem a grande semelhança de tendências
entre a pintura flamenga e a dos mestres espanhóis, além das
afinidades filosóficas e da forte penetração do estoicismo, que eu
acredito que se faça por meio de nomes como dos holandeses Erasmo de
Rotterdam e Justus Lipsius. Além disso abrangia Milão, o Reino de
Nápoles, a Sardenha e tinha possessões na África e nas Novas Índias,
vulgo América. Até Portugal fazia parte de seus limites e viveu sob
o domínio da coroa espanhola de 1560 a 1640, aproximadamente. O que
sabemos é que por volta de 1568 freqüentava o colégio Estudio de la
Villa fundado por jesuítas. Mas o episódio marcante, e muitas vezes
escamoteado sem qualquer necessidade pela crítica, ocorre em 1569.
Cervantes, por motivos que desconhecemos, trava um duelo com um
nobre e o fere gravemente. A pena para alguém como ele que tinha
algum título de nobreza, que era um fidalgo, não um completo
despossuído, era bem mais amena: exílio de dez anos, uma das mãos
cortadas e mais um ônus em dinheiro.
Esse ocorrido está registrado em atas, e o nome do
réu vem bem destacado: Miguel de Cervantes. Dificilmente pode ser um
homônimo, hipótese que a crítica chegou a aventar. O fato é que não
sabemos como ele comutou ou pagou a pena; sabemos apenas que pouco
depois desse incidente ele está na Itália, com as mãos intactas e a
cara limpa, trabalhando entre os criados do cardeal Giulio Acquaviva.
Mas os serviços ao cardeal não vão durar muito. Logo se alista na
Santa Liga, uma coordenação guerreira que tinha por objetiva
combater os mouros que entravam pelo Mediterrâneo, comandada pelo
insigne Juan de Austria. Participa da batalha de Lepanto em outubro
de 1571, onde finalmente sofre de fato o ferimento na mão que viria
a caracterizá-lo, mas onde também se revela por suas atuações, a
ponto de receber distinções que lhe foram especialmente conferidas
pelo próprio comandante Austria e pelo duque de Sessa, e passa desde
então a integrar a companhia de Lope de Figueroa. Outras batalhas se
seguem: de Navarino, em 1572, a ocupação de Tunis, em 1573, e a
tentativa malograda de retomar a Goleta, em 1574. Depois de cerca de
dez anos de viagens e batalhas, Cervantes decide voltar com seu
irmão Rodrigo, que também era soldado, e tentar a vida na Espanha
com as indicações e as distinções que havia obtido pela sua coragem.
Ao navegar rumo à Península são assaltados por corsários mouros, e
ambos caem em uma prisão da cidade de Argel, então sob o domínio do
rei árabe Azán Agá. A sorte de Rodrigo não é das piores, e logo
consegue sair em liberdade. Já Cervantes, vê a reviravolta de seu
destino sair pelas suas próprias mãos. Afinal, quão mais valioso e
digno de humilhação não é um soldado que traz consigo uma carta de
recomendações daquele quilate? Isso sim é que se pode chamar de uma
revolução da Fortuna.
Durante mais de cinco anos Cervantes permaneceu nesse
baño, que é uma espécie de cativeiro bastante precário e cruel,
criado pelos árabes especialmente para prisioneiros cristãos. Sua
mãe e suas irmãs, às custas de muitos endividamentos e do sacrifício
de seus dotes femininos, o que as impediu de casar futuramente,
conseguem finalmente libertar o poeta, sob o pagamento dos
quinhentos ducados que se exigia como resgate. De volta à Espanha,
qual não foi a sua surpresa ao saber que o general Juan de Austria
havia sucumbido no campo de batalha e que o duque de Sessa morrera
há pouco. Quem então, nessas condições, lembraria de um tal Miguel
de Cervantes, que há anos se destacou lutando em Lepanto, naquela
que é hoje considerada uma das batalhas mais memoráveis da história
da Espanha? Cervantes passa então a Portugal, onde Felipe II está
com a sua corte e a Armada Invencível, e tenta prestar serviços para
o soberano. E assim segue seu destino, cheio de calmarias,
intempéries e acidentes. E é justamente nesse episódio do seu
cativeiro que as peças começam a se juntar, e que a vida e a ficção
começam a construir suas encruzilhadas.
No capítulo XXXIX da primeira parte do Quixote,
depois de algumas andanças e aventuras sem sucesso, o cavaleiro e
seu fiel escudeiro resolvem cear na estalagem de Juan Palomeque. Mal
se acomodam, chega um senhor de braço dado com uma jovem bela e
discreta que parecia ser sua filha. Suas roupas são de uma mulher
árabe, mas seus modos tipicamente cristãos, o que estimula a
curiosidade de todos os que estão à mesa. E é ao ser interpelado
pelo dono da venda que começa a narração da sua história, que se
desenvolve até o capítulo XLI. Trata-se de Ruy Pérez de Viedma,
capitão cujo percurso foi tão ou mais acidentado do que o de
Cervantes. Cedo deixa os pais e irmãos e participa das excursões
espanholas, viajando por Gênova, Milão e Flandres. Participa da
batalha de Lepanto, está em Tunis quando da sua tomada e entre os
soldados da expedição fracassada da Goleta. Mas entre 1567 e 1574
cai prisioneiro em Argel. Quando sua esperança de liberdade está
prestes a se desintegrar por completo, consegue estabelecer contato
pela janela da prisão com Zaraida, filha de um homem poderoso
chamado Agi Morato. E ela lhe conta então a sua desventura: desde
que instilada por uma ama cristã ao amor à Virgem Maria nunca mais
conseguiu tranqüilidade de espírito. Quer fugir e desposar um
cristão, pois só assim poderá realizar o seu sonho: ser convertida.
E é exatamente o Capitão Cativo o homem pelo qual tanto esperava.
Trama a fuga de ambos, que ocorre com sucesso, apesar da cena
melancólica de seu pai em terra firme de joelhos clamando aos céus
por aquela atrocidade e dizendo em árabe palavras com as quais
escorraça e deserda a filha. Passam por toda a costa da Espanha,
penetram o continente e eis que chegam, a cavalo, à venda do senhor
Palomeque.
É desnecessário ressaltar a quantidade de semelhanças
entre o perfil do Capitão Cativo e o de Miguel de Cervantes, por
mais que haja discordância entre algumas datas e fatos. Também não
cabe enumerar aqui a quantidade de peripécias e reconhecimentos que
ocorrerão nessa mesma venda, em uma das quais o Capitão identifica
entre os que comem à mesa ninguém menos do que seu irmão, que não
via desde a sua partida para a guerra, hoje um licenciado, já que as
poucas vias para os homens de baixa nobreza consistiam em assumir as
armas ou as letras, seguir a carreira de soldado ou se entregar ao
ofício eclesiástico e suas variantes, o direito canônico e a
jurisprudência, o que vem assinalado de maneira exemplar nos
emblemas que pintam um homem com uma pena em uma mão e uma espada na
outra, e que representa uma das faces do ideal do homo universalis
da Renascença. Esse relato do Capitão Cativo se intercala ao Quixote
como se fosse uma novela independente, e sabemos que ele foi escrito
bem antes da redação da primeira parte. A cena do cárcere mouro
aparecerá também em uma peça de teatro de Cervantes, Los Baños de
Argel, e cria uma relação de tripla representação de um mesmo
episódio, cuja inspiração é nitidamente biográfica. Um papel
parecido também desempenha a narrativa do Curioso Impertinente, que
foi interpolada ao Quixote bem depois, na qual um jovem italiano
narra suas aventuras amorosas e sua necessidade de confirmar a
fidelidade de sua mulher, que o leva a estimular uma traição com seu
melhor amigo.
Creio que o auto-retrato de Cervantes e essa
narrativa de caráter biográfico inserida no conjunto de sua obra
máxima possam nos levar a algumas reflexões interessantes. Se muitas
vezes e durante muito tempo o Quixote foi visto como uma das mais
consumadas paródias de um gênero literário, as novelas de cavalaria,
já levadas a cabo por um escritor, essa análise parece insuficiente,
na medida em que nos oferece a contrafação artística como sendo o
coração de seu sentido, sem levar em conta implicações filosóficas
mais sérias que podemos inferir de diversos episódios isolados da
obra. Porque se dom Quixote representa o último estágio da loucura,
aquele onde os dados da ficção não mantêm mais nenhuma relação de
dependência entre si e não têm mais lastros com uma natureza comum,
podendo muito bem ser permutados e tomados pela própria realidade,
isso quer dizer que a missão do herói não é apenas restaurar a Idade
de Ouro da cavalaria andante, como ele insiste em dizer, mas provar
para todos, e muitas vezes em contradição com as evidências, que ela
ainda é possível. Em outras palavras, se o mundo foi capaz de gerar
a quantidade de mentiras e absurdos de que os livros de cavalaria
estão empanturrados, Quixote usa desse mesmo veneno para transformar
o mundo em um enunciado e em signo, e faz aquilo que Dostoievski
disse que ele faz: paga a mentira com a mentira, a tal ponto que
acaba transformando-a em regra. Com a figura de dom Quixote
Cervantes elevou a poesia ao estatuto de única verdade possível.
Tudo o que venha a se agregar a ela será mero acidente ou
contingência. A cruzada do fidalgo manchego contra o mundo tem como
último objetivo demonstrar que este mundo está e estará sempre aquém
de si mesmo enquanto não estiver à altura da fantasia, e que se os
moinhos de vento não são gigantes é culpa dos moinhos e não dele,
dom Quixote de la Mancha. Se tudo é representação e teatro, o rosto
que não se adequar à máscara não existirá ou será sempre um defeito
e uma falha diante da potência ilimitada da imaginação, esta sim o
ponto de partida e o substrato da verdadeira realidade. Nesse
universo, os acidentes dão forma à Essência, e se a poesia era uma
maneira de potencializar o real, de plasmá-lo e transfigurá-lo, sem
modificar a sua natureza irredutível, agora ela vira o paradigma, o
eixo, a norma, fora da qual real algum sequer existe.
Aqui não estamos no âmbito da pura representação ou
no campo estreito da paródia somente, mas em um tipo de relação
especular que possui várias camadas de significado. E isso parece
invalidar a alfinetada arguta que Baltasar Gracián parece ter
desferido contra Cervantes em uma das crises do Criticón, ao dizer
que reproduzir novelas de cavalarias pela negativa é ocorrer na
dupla loucura de duplicar aberrações do entendimento e extrair do
veneno mais veneno. Porque em primeiro lugar, Cervantes criou um
mito capaz de realizar algo que era quase impensável até então e de
conseqüências drásticas: positivar a mentira, a falsidade e o
simulacro. Esse aparente paradoxo é confirmado pela maneira como ele
pinta o caráter de dom Quixote, já que, se na maioria das vezes ele
é apenas um louco descontextualizado e objeto de riso de todos,
outras tantas ele demonstra ser a pessoa mais inteligente e sensata
do mundo. Embora sua postura não tenha coerência com os dados da
realidade imediata, suas falas têm coesão e sabedoria; sua
reivindicação de nobreza guerreira e sua tábua de valores estão em
total concordância com seus propósitos. Em outros termos, há ética
em cada um de seus passos falsos, na mesma proporção em que há
método na loucura de Hamlet, como nos diz Polonio. Isso nos
desautoriza de vê-lo como um personagem eminentemente cômico –
embora ele esteja a quilômetros de distância da tragédia. E essa é a
questão difícil de deparar. Porque se Quixote fosse apenas cômico,
como estava previsto que fosse, ele cumpriria a função do gênero
baixo em que está inscrito e geraria apenas aquele riso sem dor, de
que fala Aristóteles ao diferenciar a comédia da sátira. Mas há
sempre algo que escapa dessa análise, e uma espécie de devir que não
se deixa aprisionar por essa etiqueta. Acredito que boa parte dessa
complexidade advenha de um fator comum, e que parece ser o fio que
orienta toda a obra e chega a ser a sua própria essência: a negação.
O Quixote é uma espécie de épica da negatividade. Tudo nele é
refutação de dados, inversão de preceitos, o avesso do direito, o
real que é ficção, a verdade inacessível e a poesia como única via
de acesso ao mundo, com todos os fantasmas, paradoxos, ambigüidades
e fantasia que essa via comporta. Por isso, quando dom Quixote se
depara com um pobre barbeiro viajando em seu burrico de uma vila a
outra, a bacia dourada debaixo do braço, por obra da imaginação
transforma-o em um guerreiro e a bacia, no elmo dourado de Mambrino,
personagem insigne do Amadis de Gaula, um dos mais famosos romances
de cavalaria. Cabe a ele resgatar o elmo, e para isso investe contra
o pobre homem e os dois se arrebentam no chão.
Mas o que dom Quixote quer que Cervantes queira com
isso? Em primeiro lugar, quer somente gerar um episódio cômico e uma
situação burlesca que toque os limites do absurdo, ou seja, está se
movendo nas fronteiras da arte, das técnicas e dos afetos. Mas pouco
a pouco, com a sucessão de episódios desse tipo, começamos a entrar
na lógica dessa criação, e a perceber que temos duas alternativas.
Confiar na desrazão de Quixote é dizer que o mundo está errado
porque ele não é tão nobre e ideal quanto os romances querem que ele
seja, e fazer dos seus disparates uma forma de sabedoria, o que não
parece nada inteligente. Por outro lado, se desprezarmos as atitudes
do herói, padecemos do mau de não perceber o quão absurdo, pobre e
ridículo é esse mesmo mundo que não admite nada que saia de seu
funcionamento mais ordinário. Ao fim e ao cabo, Cervantes
ironicamente nos dá a opção de escolher entre dois paradoxos,
atitude que parece sintetizar toda sua malícia, e é justamente isso
que possibilita um número quase infinito de interpretações a partir
de acontecimentos simples a beirar o simplório. O mais curioso é
pensar que esses jogos conceituais que chegam à vias do previsível e
que nas mãos de um artista menor se reduziriam às armadilhas ou à
graça lúdica do mero jogo, nas mãos de Cervantes servem como entrada
para um labirinto que a cada episódio nos abre uma nova porta sem
dizer para onde ela conduz, e a deixa assim, aberta, no meio do
caminho, sugerindo que a vida dos dois cavaleiros errantes e tudo
que a circunda são como um processo que se desenrolasse
dialeticamente sem nunca obter uma síntese.
Há vários capítulos do Quixote que apontam nessas
direções. E há também uma série de estratégias que o próprio fidalgo
cria para validar sua desrazão quando ele se sente ameaçado por
alguma coisa que pareça contradizer suas crenças. Um dos recursos
mais usuais é um recurso que também aparece nos livros de cavalaria,
e diz respeito à esfera sobrenatural. São os encantadores. Tudo o
que desmente a lógica da cabeça do cavaleiro da Triste Figura tem
que encontrar uma justificativa, pois caso contrário será um erro.
Ainda que essa justificativa seja improvável, ela ainda assim será
mais real do que as evidências, porque fruto da ficção. Depois de
travar um combate arrebatador com um rebanho de ovelhas, achando que
ele fosse o exército de um cavaleiro mitológico, e perder vários
dentes e ossos na colisão, não era mais possível a dom Quixote
sustentar que aqueles bichos que lambiam seus ferimentos eram
soldados. Então vem o artifício mágico: isso foi obra do ardil
maligno dos encantadores, que são os inimigos número um dos
justiceiros e transformaram as ovelhas em soldados (ou vice-versa)
para humilhar o mais alto de todos eles, aquele tal Alonso Quijano,
procedente de alguma região desconhecida da Mancha, que, depois de
devorar uma biblioteca inteira de novelas de cavalaria, vestiu uma
armadura e se investiu do poder bélico desses heróis sob o nome de
dom Quixote. A magia sobrenatural desmente a realidade e tem mais
poder do que ela, porque é coisa ficta, condição que lhe confere
mais autoridade do que esta. Assim também a poesia vence a história:
por ser o campo do possível mais do que do provável, aquela é mais
universal do que esta, diria Aristóteles. No fundo elas são
reversíveis, mas apenas até um certo ponto. Quem organiza a
permutação entre a realidade e a imaginação é a vontade de quem
manipula essa farsa: dom Quixote. E isso mais uma vez nos devolve às
artimanhas que se escondem sob sua aparente loucura. Ele envolve
todas as pessoas que encontra, a começar pela nomeação de seu
vizinho Sancho Pança como seu escudeiro, nas tramas da ficção que
deixa de ter um lugar específico e passa a aderir ao próprio mundo.
Na primeira parte podemos dizer que dom Quixote é o personagem
central da história que criou para si mesmo, e as pessoas que o
defrontam, seus coadjuvantes. Essa condição irá se modificando
paulatinamente até um ponto de inversão, como depois veremos.
O papel dos encantadores não se resume a isso. E
pode-se dizer que eles são uma espécie de fio condutor que perpassa
todo o livro e o motor do ideal amoroso de dom Quixote: Dulcinéia de
Toboso. Na primeira parte, um pouco antes do episódio do Curioso
Impertinente, e a exemplo do grande e fabuloso capitão Amadis de
Gaula, dom Quixote tem que fazer algumas loucuras. Essas alucinações
e idiotices abrangem os capítulos que se passam na Serra Morena,
onde o cavaleiro sobe inteiramente nu ao topo de um dos montes e
fica plantando bananeiras e gritando. Isso tem também um quê de
demonstração de amor irracional por Dulcinéia, e outro tanto de
desespero não correspondido. Não contente com isso, Quixote coage
Sancho a ir a Toboso entregar pessoalmente uma carta de amor de sua
autoria nas mãos da nobre dama. Sancho o faz; mas é surpreendido por
um fato óbvio que ele tenha provavelmente querido esquecer:
Dulcinéia não existe. O que fazer? Sancho cumpre as ordens de se amo
da melhor maneira possível; chega à cidade natal de sua amada e
entrega a carta nas mãos de uma camponesa que lhe parece ter cara de
Dulcinéia. Claro que revelar isso a Quixote é impensável, e no final
das contas Sancho descreve todos os encantos inimagináveis daquela
dama e diz quão feliz o seu senhor será quando estiver a seu lado. A
mentira de Sancho vai alimentar a caminhada dos dois justiceiros
durante o decorrer de todo o resto da primeira parte, e cultivar os
suspiros idealistas e ininterruptos de seu senhor. E chegará até o
capítulo X da segunda parte. Nele finalmente está cumprida uma das
metas da vida e da peregrinação de Quixote, que é chegar a Toboso e
desposar a encantadora Dulcinéia. Mas então Sancho é flagrado na
contradição de sua mentira, pois não sabe explicar ao certo onde é a
casa, ou melhor, o palácio, onde o cavaleiro deve ir encontrar a sua
dama. Mas na perspicácia de sua simplicidade, Sancho encontra a
melhor saída. Avistando duas lavradoras que vem puxando uma mula,
começa a gritar enaltecido, dizendo a seu amo que lá vem ela,
Dulcinéia em pessoa com sua criada. Não é preciso dizer que Quixote
não enxerga nada além de duas lavradoras rústicas, tanto na
aparência quanto nos gestos. Confuso diante da insistência de Sancho
e do absurdo que seus olhos lhe oferecem, Quixote logo percebe por
conta própria a sua desgraça, cavada fundo no seu peito por obra
desses malditos encantadores que entorpeceram sua percepção, a ponto
dele estar diante de Dulcinéia de carne e osso, e em compensação só
conseguir ver duas lavradoras desencantadas com a vida.
Essa cena, tramada com a pena mestra de Cervantes,
levou Gustave Flaubert à sua famosa exclamação, segunda a qual em
nenhum momento o autor refere ou descreve diretamente as mulheres,
conseguindo assim pintá-las por supressão. Intuímos seus gestos e
jeitos pelo diálogo de Sancho e Quixote, não sendo elas explicitadas
sequer por um único momento. E é também nesse episódio que o crítico
Erich Auerbach identifica um ritornello, uma mudança significativa
no curso da obra. A partir daqui dom Quixote começa a demonstrar
certa desconfiança quanto a suas próprias convicções, o que em
outras palavras significa que o mundo começa a se tornar
desencantado, no sentido estrito do termo. Pela primeira vez, aos
olhos do leitor, ele passa a suspeitar de que tudo não seja mais do
que uma farsa e todas as suas aventuras, um erro. Ou na melhor das
hipóteses, já não é tão ardoroso em suas certezas. Isso é latente
para o leitor, não é nunca manifesto. Mas mesmo assim facilmente
perceptível. E esse ponto de inversão parece ter vínculos com a
própria estrutura da obra e de suas duas partes. Porque a mudança
mais notável que vai se operar na posição de Quixote em relação à
história. Até então ele havia sacado seu mundo direto dos livros, e
sua missão sobre a terra era instaurar o reino da ficção, fazer
valer os dragões de cinco cabeças, os guerreiros que matam exércitos
de milhares de homens com uma só espada, donzelas voadoras, animais
mitológicos com cornos e asas, sagas geográfica e historicamente
impossíveis, bestas voadoras, príncipes imortais e toda sorte de
bizarria imaginativa. A sua realidade imediata vive sob o signo da
decadência moral e dos costumes, pervertida pela lassidão de ânimo
que entorpece o espírito. Isso move nele a força da negação, que
corresponde à supressão desses limites estreitos por uma lógica onde
todas as coisas sejam possíveis. Mas ele já está na estrada há muito
tempo. A sucessão de moinhos que não são gigantes, ovelhas que não
são soldados, bacias que não são elmos e vítimas que não querem ser
socorridas já serviu para minar boa parte de seu ímpeto. E até agora
sequer pôde ter a honra de ver Dulcinéia de Toboso? Aos poucos a
força furiosa das coisas vão vencendo o poder da palavra. Ao mesmo
tempo em que o cansaço começa a despertar o que ainda resta de sua
lucidez, dom Quixote também começa a se enredar nas histórias
alheias e passa à condição de marionete nas mãos de outros
personagens que entram em cena. E aqui voltamos à biografia de
Cervantes.
Em 1605 era publicada a primeira parte do Quixote com
relativa repercussão e sucesso. À exceção de um crítico ranzinza e
selvagem como Lope de Vega, que considerava Cervantes um os piores
poetas da Espanha – e no caso específico da poesia não estava
totalmente destituído de razão – e que apenas um completo tolo
acreditaria em um personagem como dom Quixote, pode-se dizer que ela
teve uma acolhida considerável entre os homens de letras, só não
mais marcante devido a um acidente que comprometeu a sua reputação.
A história é mais ou menos a seguinte. Em 1585, aos 37 anos de
idade, Cervantes tinha desposado Catalina de Palacios, jovem de 19
anos, de uma família relativamente bem situada. Porém um ano antes
nasce Isabel, sua filha com Ana Franca de Rojas, que foi sua amante
e da qual não se sabe praticamente nada. Ele só reconhecerá a filha
mais tarde, quando a vida ao lado da esposa em Esquivias, pequena
província para onde tinha se mudado, se torna insuportável e ele se
separa em 1587. Rumou para Madrid e lá passou a dividir uma casa com
as irmãs. Impedidas de se casar, nem por isso a sua vida sexual era
menos ativa, o que gerava todo tipo de comentários de mau gosto.
Mais tarde Catalina, depois de anos de separação, volta com o
marido, e Isabel vêm se somar à família Cervantes Saavedra. Para
coroar a situação, o azar quis que um ex-combatente da Coroa, Gaspar
de Ezpeleta, briguento e beberrão, travasse um duelo à porta de sua
casa. Ezpeleta foi ferido, e Cervantes o acolheu por alguns dias.
Dada a sua reputação anterior, foi difícil provar diante da justiça
que o autor não teve qualquer envolvimento no duelo, e mais difícil
ainda reter a má fama que começou a correr e a comprometer a
divulgação da primeira parte de sua obra que acabara de sair dos
prelos de Madrid.
A publicação não serviu para dar um rumo ao desajuste
financeiro em que se encontrava Miguel de Cervantes. Tanto que em
1609 ele entra para a Hermandad del Santíssimo Sacramento, uma ordem
religiosa à qual suas irmãs também serão acolhidas depois. Em 1613
aparecem as Novelas Exemplares, e, naquele mesmo prólogo onde o
autor nos pintou o seu retrato, a seguinte promessa: a segunda parte
do dom Quixote de la Mancha apareceria em breve. O fato é que em
1614, um ano depois portanto, efetivamente aparece uma segunda parte
do Quixote, mas apócrifa, assinada sob o pseudônimo de um tal Alonso
Fernández de Avellaneda, pelo que consta procedente de Tarragona, na
região de Aragão. À essa época, Cervantes já estava no capítulo LIX
da segunda parte, e quando sabe do Quixote apócrifo fica furioso.
Tanto que nesse mesmo capítulo, dom Quixote e Sancho chegam a uma
estalagem e nela deflagram uma pessoa lendo o falso Quixote, o que é
motivo de escárnios e ofensas por parte dos verdadeiros heróis, que
não se reconhecem naquelas histórias e naqueles caracteres que a
pessoa lhes diz estar lendo. E aqui está o nó de toda a mudança
estilística e temática da primeira para a segunda parte, que é tão
acentuada que alguns críticos chegaram a se referir às duas partes
como dois Quixotes diferentes. Porque a grande alteração da segunda
parte é que nela a primeira já corre impressa, e os personagens se
relacionam com dom Quixote já tendo lido a sua vida pregressa e o
seu passado imediato. Além do mais, circulam dentro do Quixote
verdadeiro os comentários dos personagens e do narrador, tanto à
primeira parte quanto ao Quixote falso de Avellaneda, diversas vezes
desprezado e criticado impiedosamente. E eis que se embaralham todas
as cartas e identificamos uma série de saídas que conduzem a lugar
nenhum. E fica a pergunta: quem é o autor do falso Quixote? E uma
pista, colhida em um personagem da primeira parte, pode explicar a
vida, como as novelas de cavalaria explicam e dão forma ao mundo.
Um dos episódios mais engraçados de toda a saga é o
dos galeotes, no capítulo XXII da primeira parte. Nele o cavaleiro e
seu escudeiro se deparam com uma fila de prisioneiros algemados que
rumam em direção à galeras para trabalhos forçados. São bandidos,
assassinos, prisioneiros de guerra e malfeitores de toda espécie.
Claro que dom Quixote, que aguarda ansiosamente vítimas para as
quais possa corrigir destinos e reparar danos, não vai deixar de ver
nos tratamentos dispensados a essa nata social a síntese da opressão
e da injustiça sobre a terra. Após desfilar com o cavalo
interrogando cada um dos prisioneiros, que lhe narram as suas
respectivas vidas e sucessos, Quixote consegue burlar a vigilância e
arrebentar a corrente, livrando os pobres diabos que somem correndo
e se embrenham na mata para o desespero dos guardas, que correm em
busca da Irmandade Guerreira para recapturá-los. O preso mais
ridicularizado pelo narrador, que tem uma das histórias mais
anedóticas e engraçadas, é um tal Ginés de Pasamonte, criminoso
cheio de piedade e comiseração. Por acaso ou não, um dos
companheiros de guerra de Cervantes foi um soldado chamado Gerónimo
de Pasamonte, homem letrado inclusive, que chegou até a deixar uma
autobiografia publicada. A chance de deslindarmos o mistério da
autoria do Quixote apócrifo sob o pseudônimo de Avellaneda está
aqui, e é um consenso entre os biógrafos a possibilidade dessa
relação. Gerónimo de Pasamonte, por motivos que desconhecemos,
provavelmente instilou em Cervantes algum sentimento de rancor ou
comicidade durante a guerra, a tal ponto que este usou traços de sua
personalidade para pintar seu personagem, mudando levemente os
nomes. O autor de Tarragona, irado por ter se reconhecido naquela
caricatura e sendo homem instruído, tomou contato com o Prólogo onde
se anuncia a segunda parte vindoura e se antecipou a seu verdadeiro
autor.
Mais do que curiosidade biográfica ou exercícios de
imitação e emulação artísticas, aqui entramos no coração da obra
cervantina. Santo Agostino define o mundo como verdade revelada, e
vê em cada evento humano e terreno uma manifestação divina e eterna
que precisa ser decifrada para ser encarnada. O mundo seria um
livro, e os fatos e as coisas em si mesmas já significam, são signos
com os quais a Providência escreve a história dentro do tempo e dá
sinais de sua inteligência infinita se movendo à luz das suas águas.
Toda a concepção de história do Ocidente desde então seguirá essas
premissas agostinianas, e a história sacra não consiste em nada mais
do que trazer aos olhos e à inteligência os nexos existentes entre
res e uerbum, entre as palavras e as coisas, e, mais que isso,
demonstrar que as próprias coisas materiais que compõem o mundo
sensível são signos que remetem à Coisa não predicável, dela
emergindo e a ela regressando como um rio que regressasse à sua foz.
Como herói de uma epopéia da negatividade, dom Quixote parte do
princípio de que a prosa do mundo e a prosa que ele quer que o mundo
narre estão em desequilíbrio e em contradição. Ele quer que o mundo
signifique além do usual, que ele encarne a harmonia cósmica e a
imaginação fabulosa dos romances de cavalaria, e o que esse mundo
lhe devolve em troca é tão somente o real, sem nenhuma
transcendência ou epifania. Já na primeira parte, logo que Quixote
deixou o seu vilarejo para entrar para a vida da cavalaria, o Cura e
o Barbeiro fazem uma devassa na sua biblioteca comida por traças, e
queimam pilhas e pilhas de livros. Um dos poucos poupados é um livro
do próprio Cervantes, La Galatea, que recebe alguns comentários
ambíguos do Cura. Como diz o narrador – Cide Hamete Benengeli – a
história de dom Quixote de la Mancha é na verdade um manuscrito
árabe, encontrado e traduzido para o espanhol, e do qual ele, como
narrador, nos faz uma reconstituição. Todos os aspectos e peças
desse quebra-cabeça biográfico, literário, histórico e poético se
desenvolvem na prosa do mundo e são catalisadas pela pena de
Cervantes. Mas na segunda parte, há um elemento complicador e um
veneno que se introduz no interior do próprio mecanismo da obra, e
consiste no fato dos personagens já conhecerem dom Quixote de
antemão por já serem leitores de sua vida. Aqui a negatividade
assume requintes de crueldade, porque a criação literária vira uma
metáfora da leitura e da própria vida. Restituir a idade de ouro da
cavalaria equivale a recolocar em circulação o encantamento perdido
das fábulas cavalheirescas, devolver ao mundo o sentido que já não é
possível ler em suas entrelinhas e fazer valer a ordem implícita que
a Providência ocultou sob a opacidade das coisas. É preciso devolver
o Verbo a um mundo onde cada coisa é apenas uma entre outras, e não
é mais insuflada por uma harmonia cósmica. Dom Quixote cria uma
maneira artificial e artificiosa para isso – mas cria. Na medida em
que todos já sabem de suas estratégias e que a sua loucura é
conhecida por dentro, ele deixa de ser o protagonista dessa história
e passa à condição de fantoche em mãos alheias. E eis que temos o
episódio dos Duques, que vai do capítulo XXX ao LVII da segunda
parte.
Conhecendo todas as idiotias e aberrações da mente de
Quixote e tendo lido todas as suas aventuras e desventuras, o duque
e a duquesa acolhem-no em seu palácio como objeto de seu
divertimento. Por intermédio deles, a condessa Trifaldi diz ter sido
enfeitiçada pelo cavaleiro Malambruno, e persuade Quixote e Sancho a
voarem pelos céus no cavalo de madeira Clavilenho para desfazer a
magia do inimigo maligno. A jovem Altisidora vem cantar todas as
noites canções de amor à janela de Quixote para testar a sua
fidelidade a Dulcinéia. A mesma Trifaldi diz que dom Clavijo se
encontra transformado em um macaco de metal, e roga ao cavaleiro que
o salve. Realizam por fim um desfile mitológico em um carro que
conta com demônios, anjos, animais e ninguém menos do que Dulcinéia
de Toboso como seu corolário. E por fim os duques fazem de Sancho o
governador da ilha Barataria, e o despacham para lá com dignidades
de chefe de estado. Tudo isso não passa da mais sórdida gozação. O
cavalo de madeira onde os dois heróis foram amarrados e vendados
recebeu lufadas de ar quente para simular um vôo que nunca
realizaram, Altisidora em nenhum momento se apaixonou por Quixote, o
macaco de metal é apenas uma estátua, quem posa no carro alegórico
disfarçado de Dulcinéia não é ninguém menos do que o mordomo dos
Duques vestido de mulher e a ilha que Sancho governa não é uma ilha,
mas um condado dos Duques, que por sua vez puseram como seu
assistente um médico que, sob as desculpas de zelar por sua saúde, o
impede de comer tudo o que ele quer comer na sua condição de glutão.
Diante dessa dieta forçada, Sancho desiste de vez do governo da ilha
logo depois de um assalto a suas fronteiras, forjado pelos próprios
duques, e volta para o lado de seu amo, que já vagueia ébrio pelas
dependências dos nobres em meio a simulacros de simulacros e a
falsificações de falsificações que têm por única finalidade a
diversão deles e de seus pares. Ambos se cansam daquelas aventuras
sem ao menos desconfiarem de todo o teatro no qual se embrenharam, e
partem de volta para a sua errância cavalheiresca.
Se dom Quixote elevou a poesia acima da história e a
fantasia acima da realidade, foi para reinvestir as coisas à sua
volta de sentido, para que elas voltassem a ser signos de uma
escrita sagrada que Deus cifra no mundo e que com ela nos mostra a
totalidade de sua criação. Mas mesmo assim há um descompasso entre o
sentido profundo, porém ausente, dessas coisas, e aquilo que o herói
quer lhes dar. Ao fim e ao cabo, barris de vinhos não são dragões, e
querer que eles sejam é forjar em pinceladas grossas e borrões mal
feitos uma dimensão sublime da vida que há muito já se tornou
impossível. Mas agora há o efeito reversivo: não só o mundo está
desinvestido de encanto e de sentidos ocultos, como ele é quem
devora dom Quixote ao transformá-lo em ficção e personagem de uma
diatribe infernal. A mentira da poesia encarnou em um homem e foi
dada ao mundo: Alonso Quijano deixou de ser um fidalgo anônimo de um
pequeno vilarejo da Mancha e se transformou em dom Quixote, ou seja,
fez da fábula dos livros de cavalaria uma verdade. Agora esse mesmo
mundo o devolve à ficção e o manipula, pagando a sua verdade com
mais uma mentira: e ele se torna um boneco e objeto da manipulação
de seus criadores, que são todos os seus contemporâneos, leitores do
Quixote. Para Quixote todas as coisas do mundo, tal e qual as vemos,
só existem como correlatas das coisas existentes nos livros de
cavalaria, da mesma forma que para as pessoas que estão nesse mundo
dom Quixote de carne e osso só existe como signo e homem de papel,
como personagem das aventuras do engenhoso fidalgo, criado por
Cervantes. Assim o desconcerto do mundo vai se dilatando e se
aprofundando, e há uma completa inversão de todos os valores e
sentidos. A contrafação da contrafação e a cópia da cópia se
oferecem como a única verdade plausível, com tais ardis que
dificilmente podemos provar o contrário. Porque sugerir que toda
verdade só existe dentro dos limites da ficção e que há uma completa
reversibilidade entre elas é o mesmo que dizer que nós, eu e você
leitor, não existimos de fato. Somos tragados pelo livro e
transformados pela pena maligna de Cervantes em um enunciado. Em
outras palavras, e para falar com Borges, se os personagens são
reais e existem – é possível que nós não existamos e não o sejamos.
E aqui a tela As Meninas de Velázquez pode ilustrar plasticamente um
conceito metafísico: a representação nos coloca do lado de dentro do
espelho e conseqüentemente do lado de fora do mundo. Ela se oferece
como verdadeira realidade, e só assim eterniza aquele instante
delicado da vida da pequena princesa. Mas a sua eternidade custa a
nossa vida e para saboreá-la pagamos o preço de nos tornarmos
fantasmas.
Na prosa do mundo a vida não é apenas um ingrediente
do qual o autor lança mão para compor sua obra, mas é aquela força
centrípeta que age no seu interior e estoura os limites da própria
representação. No reino dos paradoxos, é o amor pela negatividade
que funda mundos possíveis e desmancha outros que pareciam
verdadeiros. E se os paradoxos são monstros da verdade, como quer
Baltasar Gracián, é porque eles negam em si e na esfera humana a
participação de qualquer Substância infalível. Se me contradigo é
sinal de que estou vivo, e não a serviço de um sistema ou de uma
estrutura abstrata de conceitos – diria Nietzsche. Tendo em vista
essas questões, Northorp Frye defende a tese de que a obra de
Cervantes inaugura uma visão de mundo totalmente profana. Nela as
coisas não remetem mais a causas transcendentes e as linhas cifradas
que Deus escreve no livro do mundo parecem se apagar. Tudo são
enunciados que se complementam e se anulam mutuamente, um horizonte
de eventos que remetem uns aos outros e só nesse processo criam seus
sentidos provisórios. Seria a morte de Deus? Acho essa hipótese
exagerada. Podemos dizer com segurança apenas que o Quixote
representa o crepúsculo da Providência, o que é bem diferente, e com
ele se tornará cada vez mais difícil explicar o mundo a partir de
uma causa eficiente harmoniosa, derivada de uma causa formal una e a
partir de uma Inteligência perfeita. Afinal, tudo é tropeço e
acidente, tudo é falsidade e simulação, tudo é teatro e mentira,
tudo é improvisação e mimetismo, tudo é pantomima e máscara. Mas ao
mesmo tempo isso não exclui a presença manifesta de alguma coisa que
nos transcende e ultrapassa, e muito menos anula a participação do
mistério em todos os atos que não possamos domar ou explicar. No
fundo de tudo e no coração do mais tácito silêncio haverá sempre
algo que é indevassável pela argúcia das palavras e que é a origem e
o fim de todas as coisas.
E assim prossegue a saga da completa negação,
encarnada sob as pelancas e a compleição raquítica do caricato
Cavaleiro da Triste Figura. E ela consiste em negar toda e qualquer
estabilidade da Substância, e dizer que tudo só existe como um
simulacro criado pela percepção sob diversas perspectivas e sob
determinadas condições. Essa saga põe em choque duas grandes
entidades: a idealidade da poesia e da ficção e a contingência da
história e do real. Mas o resultado desse embate é a destruição das
duas, bem como das correspondências amistosas entre as palavras e as
coisas – e entre ambas e a Coisa transcendente e eterna que é Deus.
Estabelece-se uma disjunção, uma fratura que desfaz as suas
naturezas e as torna conversíveis umas nas outras. É sobre essa
disjunção que se assenta a negação da negação, em uma vertigem
destrutiva e auto-destrutiva que não deixa nenhuma verdade em pé. Ao
fim, nos remete ao vazio, que pode ser tanto uma ascese pelas vias
de uma curiosa teologia negativa, que afirma o Inominável pela
recusa a todos os nomes, quanto aquele grau zero de sentido que
parece ser o ponto de partido disso que se convencionou chamar de
modernidade. E se é para falar em modernidade, a recepção posterior
do Quixote é suas sucessivas interpretações não correm à larga da
quantidade de sentidos que a obra oferece em sua estrutura.
Esses diversos níveis de leitura de um mesmo mito não
se restringem ao percurso do personagem dom Quixote, mas estão
marcados também pela trajetória errante do livro Quixote. Não seria
de admirar que essa figura algo patética não reencarnasse no mundo
sob a roupa de toda uma pletora de ideologias e de projetos
políticos? Não seria de estranhar que um tal produto da fantasia não
fosse revestido de idealismo e de utopia ao limite da alucinação e
da própria loucura pelo mudo real? E foi isso mais ou menos o que
aconteceu. Descarto aqui as interpretações mais vulgares e
tendenciosas, que pretendem ver o mito cervantino como uma espécie
de guerreiro socialista ou precursor de um hipotético e equívoco
futuro utópico. Mas comecemos pelo fim, porque as coisas nascem do
seu fim não de seu começo, e é aquilo que elas virão a ser na
eternidade que define o valor do que elas foram e são, nos diria
Vieira no engenhoso Sermão do Santíssimo Sacramento, ao defender a
glória pregressa da encarnação de Jesus em Maria. Um dos primeiros
críticos a lançar novos olhos sobre a saga do cavaleiro da Triste
Figura foi Erich Auerbach. Sabemos da famosa história, segundo a
qual ele escreveu sua obra Mimesis em Istambul, exilado por causa
das perseguições advindas com a Segunda Guerra Mundial. Talvez isso
tenha conferido o sabor estilístico especial que esses ensaios têm,
escritos todos longe das bibliotecas e tendo como material apenas a
memória do seu autor. Além disso, talvez essa condição tenha
contribuído para a originalidade de sua abordagem, que vai se situar
de maneira marcante entre os estudos literários das décadas de 40 e
50. Porque Auerbach será o primeiro intelectual, depois de muito
tempo, a situar o Quixote exclusivamente como uma obra do gênero
cômico. Com bastante propriedade, porque se pensarmos que uma das
primeiras recepções críticas e criativas que o Quixote teve foi a
paródia de Avellaneda, tudo se esclarece, e sabemos que não há
nenhum teor trágico na história do cavaleiro manchego. Mas as coisas
não são tão simples assim.
Um dos primeiros comentários ao Quixote saiu da pena
incansável e torrencial de José Pellicer de Salas y Tovar. É além do
mais um comentário oportuno para dirimir algumas dúvidas em relação
à escrita de Los Trabajos de Persiles y Segismunda, publicada
postumamente, e que trata de uma aventura espiritual em forma de
peregrinação, obra das mais importantes e ambiciosas de Cervantes,
mas inexplicavelmente relegada a um segundo plano de sua obra. Não
se sabe quando começou a ser redigida, mas Pellicer diz que
Cervantes já trabalhava nela durante a confecção dos últimos
capítulos da primeira parte do Quixote – o que quer dizer que ambas
são praticamente simultâneas e seria muito instrutivo pensá-las em
conexão, uma com a outra. O fato é que o Quixote seguiu seu curso e
foi sendo incorporado por cada um dos séculos que lhe sucedem, e
sendo lido por cada um deles da maneira que melhor lhes aprouvesse.
Tenho a hipótese, nem de todo confirmada, de que o romance de idéias
francês do século XVIII, com Voltaire, Lesage e Diderot, entre
outros, e seus correspondentes ingleses, o Tom Jones de Fielding,
Defoe, Richardson e principalmente Laurence Sterne, são descendentes
em linha reta de Swift, de Miguel de Cervantes e da prosa picaresca
espanhola do século XVI e XVII. São também leituras desses autores,
e no caso específico francês creio que uma leitura que valoriza mais
o lado abstrato da narração de idéias e da dramatização de
conceitos, do que o aspecto mais telúrico e um tanto quanto rústico,
se podemos dizer assim, da arte de Cervantes. A comédia não chega a
ceder a uma filosofia dialogal em forma de narrativa, já que o
aspecto cômico está presente na maioria dos contos de Voltaire, por
exemplo. Mas há uma predominância do elemento alegórico sobre o
indicativo. O século XVIII transforma a arte de Cervantes em uma
plataforma política de crítica ao providencialismo católico,
disfarçada ou explicitamente colhida no percurso acidentado e pícaro
de seus personagens, mas sem, contudo, abrir mão da universalidade
subliminar que há sob cada uma dessas particularidades e eventos
acidentais. Foi um casamento muito feliz, e sua base pode ser
definida assim: o romance de idéias é um desdobramento da prosa
espanhola no qual o caráter alegórico dos personagens prevalece
sobre o elemento puramente narrativo e descritivo. O Quixote quer em
primeiro lugar mostrar uma cena, um fato, um acontecimento, uma
história, e assim a pensa de forma exemplar; o romance de idéias
quer plasmar alguns conceitos nos caracteres de alguns personagens,
e narrar a saga da inteligência rumo à libertação da idolatria e à
tolerância em um percurso constante de emersão das trevas em direção
à luz.
Com a tradução do Quixote para o alemão levada a cabo
por Tieck nas primeiras décadas do século XIX as coisas começam a
mudar de figura. Afinal, em pleno clima de Sturm und Drang, o que
esperar senão uma leitura das peripécias do cavaleiro que levasse em
conta a sua hipotética profundidade humana em detrimento da sua
natureza cômica inequívoca? E assim começou a nascer o mito de um
dom Quixote trágico, forjado pelas mãos dos românticos, sobretudo
pelos irmãos Schlegel, segundo o qual o descompasso entre o mundo e
o indivíduo, e a conseqüente desarmonia dos sentidos daí advinda, só
podiam resultar da inadequação entre aquela subjetividade intrínseca
que, por meio do seu idealismo, mergulha em busca do Absoluto, e o
movimento dialético de destruição e contradição que a Natureza
implacável lhe devolve em troca. Essas serão as diretrizes do mito
quixotesco romântico, baseado em primeiro lugar na convicção de uma
inadequação entre o homem e o mundo, e, em segundo, no conflito
entre um mundo ideal e perfeito, porque produto do sonho e da
imaginação, e a sórdida crueza do real, que só pode ser habitado se
for transformado dialeticamente. É desnecessário dizer que essa
interpretação conferiu uma espessura ao mito cervantino até então
desconhecida, e serviu também para embaralhar uma série de coisas.
Entre elas, uma há que se destacar, e é das mais sérias: essa visão,
ao identificar dom Quixote à própria encarnação das forças ideais em
confronto com as contingências reais, movimento característico da
evolução do Espírito, fez tudo o que não podia fazer com ele, ou
seja, transformou-o em uma tola positividade. Com isso toda aquela
dimensão transcendente de negação e o elemento genérico mesmo da
representação (a paródia) vão por água abaixo, bem como as infinitas
camadas de sentido que essa mesma negação gera quando tomada como o
coração da própria obra e sob uma perspectiva retroflexa: quando se
anuncia como uma negação da negação. E foi assim que a empobrecemos
em troca de alguns enunciados filosóficos de gosto tão duvidoso
quanto a idoneidade intelectual dos filósofos que os forjaram.
Essas sucessivas reencarnações do Quixote e as
interpretações mais ou menos abstratas, tipológicas ou positivas da
sua estrutura mítica, e aqui penso o mito no sentido em que
Aristóteles o define, como o conjunto composto pela trama dos
argumentos, caracteres e ações, começam a nos interessar de perto
quando pensamos na teoria do romance desenvolvida por George Lukács.
O crítico húngaro define o romance como sendo o desenvolvimento da
natureza vertical da narrativa, em oposição à sua estrutura
horizontal. Para ele o romance nasce quando o escritor começa a
focalizar em profundidade os personagens dentro da cena e a
trabalhar o conteúdo psicológico desses mesmos personagens, uns em
relação aos outros. Para Lukács o Quixote é ainda o exemplo de
narrativa onde há o predomínio do idealismo abstrato, ou seja, onde
o mundo é vasto e cheio de peripécias e ações, mas no qual a
interioridade dos personagens é restrita ou em alguns casos quase
inexistente. É uma narrativa onde predomina o eixo sintagmático das
escolhas e a multiplicidade de situações, locais e cenas. A essa
prosa idealista abstrata se sucede um outro tipo, que é propriamente
a forma romanesca, e que consiste no oposto dessas características:
aprofundamento psicológico, unidade em detrimento de multiplicidade,
escolha paradigmática, focalização fechada e densidade existencial
em oposição ao movimento e à sobreposição de ações. É esse o tipo de
narrativa romanesca que Lukács define como sendo uma narrativa do
desencanto romântico. Ora, não é preciso ir muito longe, nem levar
em conta o fato de Lukács ser um crítico marxista, para perceber que
sua proposta é uma variação em torno da interpretação romântica. Se
o romance é o gênero burguês par excellence, e é nele que se dá o
drama dos indivíduos modernos e se encenam as relações de classes,
como quer a crítica marxista, a definição de sua estrutura vai estar
sempre a serviço desse desenvolvimento sociológico e em
contraposição a um fator bem mais concreto, que é de ordem
estilística e retórica, fator este que vez ou outra serve como mero
argumento para endossar as premissas que essa crítica já traga de
antemão na manga da camisa.
Esse demérito do idealismo abstrato em proveito do
romantismo da desilusão é estratégico e malicioso. Tem em vista
provar que somente este último pode levar a cabo a representação de
uma sociedade burguesa em todas a suas faces, e só assim pode
proceder a uma crítica de seus costumes. A partir dessas crenças
também se isola toda produção que mantenha débito ou afinidade com a
grande tradição alegórica que o crítico húngaro chama de idealista
abstrata como sendo contraproducente e equívoca. E eis que estamos
de novo às voltas com o positivismo mais cândido do século XIX. E é
ele o instrumento que Lukács usa da maneira mais hesitante possível
para diminuir autores da envergadura de Franz Kafka, James Joyce e
Samuel Beckett, sob o pretexto pueril de que a dimensão alegórica da
obra desses autores corresponderia a uma atitude evasiva em relação
ao mundo, que apenas o sinaliza ao invés de mergulhar em sua
estrutura e analisá-lo, como o faria um bom escritor à Zola, sendo
que qualquer leitor sensato percebe justamente o contrário: que o
aspecto alegórico da obra desses autores deita raízes em uma
tradição secular infinitamente mais rica e ampla do que um pueril
parti pris realista, e que ao referir indireta e alegoricamente eles
estão exatamente elevando a negação dessas mesmas estruturas sociais
a uma dimensão metafísica, e dando ao mundo uma espécie de teologia
negativa que refaz e revira todas as suas instâncias sem ter que se
imiscuir de maneira descritiva em seu funcionamento. Mas as
contradições dessa divisão não param aqui, e podem ser rastreadas na
própria arquitetura narrativa do Quixote, que Lukács reputa ser uma
obra idealista abstrata.
Além das mudanças ocorridas na segunda parte, onde o
mundo todo se torna um grande teatro, a vida vira uma metáfora da
leitura e a escrita um espelho da própria criação do mundo, o que
notamos é que há um afunilamento da ação e uma maior densidade dos
diálogos e, portanto, dos personagens. Passamos da multiplicidade de
episódios, entremeados de pequenas novelas literalmente
interpoladas, ou seja, de uma estrutura aberta, porosa, que tende
mais à ação do que à reflexão e cuja finalidade parece ser gerar o
cômico por intermédio do virtuosismo que vira o mundo de cabeça para
baixo, e entramos em uma outra atmosfera, onde a ação é mais
retilínea, sem tantas vozes e sem tantas interrupções. A
heterogeneidade cede à homogeneidade narrativa, a ponto do narrador
da história Cide Hamete Benengeli a uma certa altura se demonstrar
enfadado, porque já não tem mais a gama de opções estilísticas de
que dispunha na primeira parte. Mas o faz com um propósito: cativar
ainda mais os leitores da obra, que se interessavam, sobretudo pelo
itinerário errante dos heróis, sendo os demais personagens e
histórias paralelos de valor secundário nesse caso. Isso demonstra
que a divisão entre uma narrativa baseada nos princípios de um
idealismo abstrato, em oposição a uma outra, que estaria nas raízes
do gênero romance propriamente dito, e que se baseia na desilusão
romântica dos personagens que passam da crença à descrença e da
ilusão à desilusão, é insuficiente, porque incapaz de dar conta de
um close reading um pouco mais acentuada em uma obra como essa.
Aliás, poderíamos lançar até uma questão, que consiste no seguinte:
uma das tônicas de todas as letras quinhentistas e seiscentistas é o
desengano. Ele consiste na passagem de um estado de natureza e de
latência a um outro, onde as forças da civilização se mostram às
claras e os personagens reconhecem a verdade que finalmente se lhes
revela, mostrando o quanto eles estavam enganados, às voltas com
sombras e equívocos e, mais do que isso, tomando-os como reais.
Calderón de la Barca é um mestre nisso, mas podemos enfileirar uma
quantidade copiosa de autores que dispensaram atenção considerável
ao tema, entre eles Camões, Gracián, Sá de Miranda, Gregório de
Matos, Quevedo, Vieira, os poetas metafísicos ingleses e tantas
outras obras em prosa menos conhecidas que trabalharam esse
lugar-comum à exaustão, que em última instância já se encontra nos
antigos. E se for para pensar em termos filosóficos, basta analisar
um apanhado de ensaios de Montaigne, onde ele propõe um Deus cuja
indiferença infinita parece ser o corolário mesmo de sua divindade e
a única maneira dele continuar sendo Deus, à revelia da falta de
sentido da vida sobre a terra, ou analisar algumas sentenças de
Pascal para se ter uma idéia de como o engano e o simulacro estavam
arraigados a essa época, e forneciam a base de orientação estóica em
um mundo onde a Providência vinha deixando de interceder em
benefício do todo, vive alijada em uma espécie de redoma, e onde em
última instância o homem está a sós com a solidão aterradora dos
espaços infinitos.
É certo que essa última sugestão fica por conta de um
âmbito jansenista. Mas as demais caem como uma luva ao contexto de
Cervantes. E podemos muito bem nos perguntar até que ponto esse
lugar-comum que narra o percurso do engano ao desengano pode ser
lido como uma desilusão romântica. E aqui creio que a chave para
compreender essa obra magnífica continue sendo o paradoxo, que é de
extração estóica e vem ligada à doutrina da ataraxia, ou seja, a um
ideal de distanciamento tão acentuado que chega a beirar o sadismo
ou, em última análise e, por que não?, a loucura. Se o elogio da
loucura que Cervantes leva a suas últimas conseqüências em seu mundo
às avessas foi bebido em Erasmo de Rotterdam não resta a menor
dúvida. E sendo o autor o leitor voraz que foi dificilmente não
tenha tido oportunidade de conhecer a obra do grande moralista
holandês. Harmonizando as peças do paradoxo sob uma falsa dialética
e multiplicando o jogo dos sentidos ad nauseam temos a negatividade.
Ela me parece ser o coração do Quixote. E é da sua condição
irredutível a qualquer predicação definitiva e da sua recusa a
quaisquer tipos de nomenclaturas que nascem as infinidades de suas
leituras possíveis. E se o espírito se deleita na diversidade, como
queriam Montaigne e Gracián, é dessa infinidade de leituras que
nasce também o prazer intelectual inesgotável que essa obra nos
proporciona. Dostoievski não estava exagerando ou criando uma mera
frase de efeito quando disse que se alguém lhe perguntasse o que vem
a ser a vida ele lhe entregaria um exemplar do Quixote. Nele o
sentido é um devir em constante transformação e por isso mesmo
inapreensível, uma disjunção permanente entre as palavras e as
coisas e entre as substâncias e suas propriedades. Mas se nos diz
que nunca estamos do lado da verdade, ao menos tempo não chega a
dizer em nenhum momento que ela de fato não exista. E esse é o fio
com o qual Cervantes manipula suas marionetes e ao fim e ao cabo nos
manipula, com o cinismo de quem conhece os homens a tal ponto que é
capaz de se fazer de tolo diante dos mesmos, fingindo uma completa
ignorância em relação a tudo para que assim sua verdade seja cada
vez mais preciosa no fundo dessas aparências ilusórias e opacas. E
aqui qualquer relação com Machado de Assis é bem-vinda e mais do que
oportuna. Um e outro são irmãos espirituais.
Em termos de amplitude temática e filosófica, de
resolução formal e de significação filosófica, o único equivalente
poético do Quixote que me ocorre é a Comédia de Dante. Embora a
riqueza de caracterização de tipos humanos e de afetos, de situações
e de conteúdos sociais e psicológicos, bem como sua inapelável e
pulsante esfera vital em que se movem seus personagens o aproxime de
Shakespeare, creio que haja uma unidade mítica subjacente a toda a
estrutura da obra que só encontra correspondência na obra máxima do
poeta florentino. E para ele também vale a famosa declaração de T.
S. Eliot a respeito deste poema teológico: é um dos pontos mais
altos que a prosa de ficção já conseguiu atingir e um acontecimento
que dificilmente se repetirá. Muitos podem pensar que tudo na obra
de Miguel de Cervantes seja um jogo que pretende restaurar um velho
ceticismo. Nada contra os jogos, mas não sei se é possível fazer
essa afirmação, mesmo tendo em conta as palavras do próprio escritor
no diálogo de dom Quixote e do cônego, que se inicia no capítulo
XLVII da primeira parte. Nele encontramos uma espécie de súmula das
idéias artísticas cervantinas, e uma defesa da predominância do
deleite sobre o ensinamento, segundo aquela tripartição retórica
famosa dos antigos. Creio que aqui também estejamos diante daquele
gênero híbrido e de um tipo curioso de comédia metafórica: aquela
para qual o riso é sempre um índice de corrupção, fato que, se não
chega a ser trágico, está longe de ser resolvido como uma
manifestação puramente epidítica e festiva. Se quiserem, em outras
palavras, estamos diante de um jogo no qual se está o tempo todo
perdendo porque só é possível perder. E isso decanta e altera toda
sua natureza afirmativa com tons de claro e escuro até então
desconhecidos. A profundidade dessas águas só vai se revelando aos
poucos, no decorrer da ação, episódio a episódio vai sendo
construída por uma inteligência diabólica com uma pena impecável.
Ambas as partes são circulares: a primeira começa e termina em seu
vilarejo, após uma série de aventuras obviamente frustradas, e a
segunda idem, e tem na cidade Zaragoza o seu destino não cumprido,
pois o cavaleiro só chega a Barcelona. Entre dois fracassos, aqui
entra outro aspecto interessante. No final da obra, dom Quixote
volta vencido desta cidade para sua vila, após travar um duelo com o
cavaleiro da Blanca Luna, no qual penhora nada mais nada menos do
que o próprio exercício da cavalaria. Esse cavaleiro lhe é bastante
familiar, embora esteja encapuzado e o herói não o reconheça. É seu
vizinho e amigo, o licenciado Sansão Carrasco. Forjou essa mentira
para devolvê-lo à sua sobrinha e tirá-lo de vez da vida perigosa da
cavalaria andante à qual sua loucura o havia conduzido. Quixote
volta para a casa menos confiante na sua missão do que saiu, e de
certo modo desencantado e sem tanta convicção nos encantadores, em
Dulcinéia, nos dragões e em tudo mais. Nós, seus leitores, pelo
contrário, sofremos a sensação contrária: ao fechar o livro pouca
coisa sobra ao redor que se mantenha íntegra e imune à corrosão
cáustica de uma lucidez que não pode e não quer enxergar o mundo de
outra forma. Desmonte após desmonte, desconstrução após
desconstrução e máscaras que se sobrepõem a máscaras. Enfim somos
donos de uma lucidez que nos possibilita ver o quanto o mundo ainda
está aquém de si mesmo e o quanto a fantasia que lhe ultrapassa só
serve como evasão e paliativo para a nossa mais gritante e
inexorável miséria.
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