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Pedro Lyra




Poesia e Libertação em Roberto Pontes

 

Um dos temas mais problemáticos da teoria literária contemporânea é a sobrevivência do épico. Dada a natureza por essência histórica deste gênero, creio que o problema não pode ser questionado antes de colocado num determinado tempo. Deste modo, a falência e/ou apogeu do épico se encontram vinculados à existência/inexistência de grandes acontecimentos sociais que, numa certa fase da história humana, ofereçam ou não temas de conteúdo épico.

Por que a Antigüidade e o Renascimento foram tão fecundos neste gênero? Simplesmente: pela ocorrência, nessas épocas, de fatos sociais de grandes implicações humanas no sentido universal. Aplicada a tese ao momento presente, o problema se resolve: não foi o épico que morreu como gênero literário, mas um certo épico de linguagem inadequada ao nosso tempo, um épico de conceituação sedimentada nos limites de uma estética restrita ao ideário clássico – o pomposo e solene épico de Homero, Virgílio, Camões, próprio para as sociedades que o geraram e consumiram, como só elas poderiam gerá-lo e consumí-lo.

A aparente falência do épico em nossa época se explica por esta evidência: a instabilidade do mundo contemporâneo – este pragmatismo materialesco a que nos atiraram – por um lado nega ao escritor o tempo indispensável para o labor épico (pelo menos, para o labor épico "a la antigua") e, por outro lado, nega também ao leitor essa mesma parcela de tempo necessário para o convívio com os longos poemas que requerem exegese.

Mas o epos está presente em qualquer tempo. E a nossa época é, sem talvez, a mais fecunda de toda a história humana em essência épica: aí estão ainda as radiações atômicas da última guerra mundial e das mais recentes bombas de intimidação e exibição; aí estão as lutas de classe propagando a revolução socialista por todo o globo; aí está o surgimento deste vasto Terceiro Mundo para uma nova realidade mundial; e aí está, por fim, a conquista do espaço, afirmando o domínio do homem sobre o seu universo próximo. Tudo isso, junto ou isolado, se oferece ao poeta contemporâneo como num desafio: um desafio àquele que se proponha a deixar, numa obra de fôlego, uma imagem poética deste tempo desesperado.

Pois bem: um desses temas – o último – acaba de ser tratado, num longo poema, por um jovem poeta cearense: Roberto Pontes, prêmio "Esso–Jornal de Letras" de 1970 (com o ensaio Vanguarda Brasileira: Introdução e Tese), no livro-poema Lições de Espaço: Teletipos, Módulos e Quânticas [1] , premiado pela Universidade Federal no mesmo ano.

Com certeza, podemos vincular este poema à corrente vanguardista da poesia brasileira: vanguarda pelo tema, vanguarda pela linguagem. Nisto, cabe notar que Roberto não circunscreveu o fazer vanguardista ao problema da linguagem: sendo vanguarda o que sugere um passo à frente – o que, incorporando um dado novo ao patrimônio preexistente, aponte um rumo a seguir – ele se situa como vanguardista menos numa perspectiva lingüística do que numa perspectiva social.

Trabalhando exclusivamente com a palavra, Roberto Pontes compreende que tem de explorá-la ao máximo, para compensar a ausência da contribuição não-solicitada ao figurativo. Por isso ele está sempre experimentando, reinventando, neologizando a matéria-prima do verbo. As múltiplas tendências, os vários processos, a polivalência usual da palavra – todas as diretivas da vanguarada vocabular foram amalgamadas em Lições de Espaço por um tenaz esforço pessoal crítico-teórico-criativo em torno de poetas e movimentos vanguardistas, donde resultou um poema antes de tudo pesquisa-informação, atualizadas pela unidade de linguagem conseguida do primeiro ao último verso.

Através da simples leitura do poema é possível notar a familiaridade do autor com os experimentalistas da tradição internacional, como Mallarmé, Pound, Joyce, Cummings, Apollinaire, Maiacovski, ou com os da melhor vertente nacional nacional, como Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Haroldo de Campos, Mário Chamie. Através dessa convergência de processos, o autor destas lições de espaço integra-se, via experimentalismo com a palavra, na determinante verbal da vanguarda brasileira – na mesma perspectiva em que Guimarães Rosa também é vanguarda, na prosa.

Ele consegue reinventar o épico através de uma inusitada contenção verbal, de uma fala renovada, de um discurso condensado, na melhor terminologia poundiana. Por isso, sendo os seus blocos de verso uma síntese da cultura humana, eles requerem um nível receptor exigente. Mas é exatamente no nível solicitado que se concentra a melhor poesia.

O poema está dividido em três livros.

O primeiro apresenta, em doze pequenos poemas, a problemática do espaço numa perspectiva regional. O espaço é o Nordeste brasileiro. Os poemas vão abrindo, pouco a pouco, um leque de problemas ecológicos, econômicos, antropológicos e sociais de sua sofrida região, ao mesmo tempo em que anatemiza a conivência que os conserva.

O poeta se define diante dos problemas em apenas um texto, apesar de sempre curto, apresentados numa linguagem tão estéril quanto a própria natureza nordestina. Mais que em qualquer outra parte do poema, é neste primeiro livro que se tem a perfeita adequação da linguagem ao tema focalizado: através da aridez da linguagem chega-se a uma idéia da aridez da vida que ela representa.

No poema
 

o piso não fabula a verdura
engastada na poeira e no salitre
nem mesmo as próprias raízes
desbebidas no lençol de anidro

o solo ingere as forras tessituras
dessangradas dos folículos e folhas
ele suga a sudorência do granito
seus produtos se arrimam na caliça

a terra não concebe o nobre cepo do cedro
cisma a figura inane do xerófito
o gozo estriado dos fibromas
e a indigência epitelial da citra (p.10)

 

o poeta descreve esse espaço e revela a natureza do solo naquilo que ele pode germinar. Mas esse solo não germina o que pode – "a terra não concebe" – esterilizado pela incipiência da agricultura:
 

o fazendeiro
de safras

lavra a dor
e lavrador

lavra dores

dá cifras
e não decifra
a grandeza do lavrar (p.22)

 

uma agricultura desinstrumentalizada, que explora mais o homem ("lavra a dor") do que a terra, num processo onde o sertanejo, ignorante de sua função social ("dá cifras/ e não decifra/ a grandeza do lavrar"), é o forte que, antes de tudo, ainda depende da chuva, preso a um sistema medievalizado que lhe proporciona uma subsistência de conveniência, como na expressiva síntese práxis-concretista destes dois versos-palavra:
 

salário
solário (p.18)

 

O segundo livro apresenta, em quarenta poemas de seis versos em média, a configuração do espaço numa perspectiva planetária. O espaço é a Terra. E, para entendê-lo, o poeta ressalta o uso que o homem faz do raciocínio, da inteligência, da sensibilidade e do seu poder de criação. Com o espaço circundante compreendido, vem a apreensão do universo – tônica do segundo livro. E, numa linguagem agora lírica, o poeta tenta uma definição do planeta, apoiado em informações científicas:
 

o universo
tem seu porte e suporte
em elétrons nêutrons prótons
é urgência ao poema
a fissão da massa atômica
a micro física quântica
os princípia matemática

tem o limite dos cardos
cortantes da metafísica
estrela sistema cosmos
o fascínio da galáxia
o silêncio da palavra
o carpir em abstrato

cem mil milhares de sóis
igual lote de anos-luz
o poeta assim disserta
premissas e teoremas
de sua esfera anilada

entre parábolas e elipses
que vagam por aí em expansão
burila zumbidos de metal
(p. 37-40)

 

Nesse livro, nos deparamos com freqüentes alusões à História Antiga, como (p.69): egeus, pirâmides, acrópoles; à ciência: não euclidiana (p. 42), scutum sobiesky (p. 43), mecânica do vôo (p. 73); também à tecnologia: bússola (p. 56); artifício de pólvora (p. 56), satélites (p. 69); e à arte: bizantino (p. 70), barroco (p. 70), pisa (p. 71) etc. – enfim, uma focalização globalizante da cultura humana acumulada em tantos séculos de civilização. Para essa compreensão do nosso espaço vital, o poeta tem o homem e seus produtos como ponto de referência: como se dissesse que o universo só tem sentido se o seu centro deixar de ser a nossa melhor tradição humanista. O segundo livro persegue, pois, uma re-humanização do universo.

Finalmente, o terceiro: em dezoito teletipos (notícias informativas da conquista do cosmo, em ordem cronológica), três módulos (as três etapas da conquista) e cinco quânticas (cânticos – em transsemia com o vocábulo "quanta" da Física incorporado à poética como sinônimo de "cântico"ou "cantiga" – em louvor a esses feitos), nesses vinte e seis minipoemas ele focaliza o espaço numa perspectiva cósmica. O espaço agora é o vácuo, o éter, o infinito. E o poeta narra, como se estivesse dentro de todos os foguetes e satélites já lançados ao cosmo, toda a escalada sideral desde Gagarin:
 

hoje eclodiu a chama
o oriente cavalga o cosmos
seu cavalo sputnik
vai sem chouto
a 7 mil km por segundo
rompe a barra magnética
o cinto atmosférico
abre a cortina do espectro
e proclama nova era
(teletipo 1957, p.82)

 

até Armstrong:
 

mar da tranqüilidade

face a muitos sintomas
e sinais de iniludível crescimento
não mais se pode ocultar
a lua esteja grávida
de gente
(teletipo 1969, p.103)

 

Roberto Pontes escolheu um tema pertinente a e representativo de nossa época. Talvez o maior feito de toda a História humana, realizado em parceria pelo homem oriental e ocidental: um prelúdio ao comportamento político do homem futuro?

A conquista do espaço e dos planetas. A chegada do homem à lua. Um sonho de tantos milênios, desde o mitológico Ícaro até Santos Dummont, passando por Júlio Verne. Não interessa a carga política do feito, nem o teatralismo de algumas aventuras, nem a precariedade daquela parceria. O poeta vê no fato um significado mais grave: a inauguração da Era Cósmica, o princípio de um tão questionado planetarismo. "Hoje é o amanhã do ontem que se foi"– diz ele (p. 104). O homem em nova encruzilhada diante da História. Mas, para contrabalançar o euforismo do último livro (o homem de corpo-e-alma no espaço) e negar o anti-humanismo de um elitismo tecnocrata (o deslumbramento romântico pelas "viagens" das superpotências), o poeta abriu o seu poema com um grito de protesto contra o subdesenvolvimento da sua região – o homem com o solado do pé sobre o chão calcinado e com as mãos feridas na labuta diária. Não só por isso: também para questionar o cibernético sonho macluhaniano do vilarejo universal. Pois o mundo de hoje só é uma aldeia quando a Intelsat mobiliza o seu sofisticado sistema de telecomunicações para mostrar à humanidade... uma partida de futebol, a missa romana do galo, a queda do astronauta na lua. Mas onde está o grosso da população mundial quando "os grandes"se reúnem, fora do alcance das câmaras de tevê, para decidir os destinos dos povos? Não: o grosso da vida humana de hoje não se compõe de shows. E se desenrola noutro palco, multifragmentado. Quer dizer: o poeta quis demonstrar – e conseguiu – que, em pleno desabrochar da idade do Cosmo, a massificação conserva, em nosso planeta, seres humanos e situações sociais contemporâneos da Idade da Pedra.

Por tudo isso, seu livro é um marco: um documento que reinventa a linguagem épica. O último poema do livro
 

cavalgar na luz
cavalgar na luz

retorno ao rio do tempo
onde a vida cresce e diminui
o meu transporte é a velocidade
e sou um rei
a cavalgar na luz

a cavalgar na luz
sou imortal e tudo sei
faço parar meu corpo no espaço
controlo a vida na velocidade
sou cavaleiro
a cavalgar na luz

a cavalgar na luz
bebo verdes ondas de energia
há um sol diverso em minhas veias
pois reconheço meus ecos de origem
e a minha voz
a cavalgar na luz

a cavalgar na luz
sou imortal e tudo posso
até mesmo lançar o maior passo
ou retornar ao ponto de onde vim
ou nem sequer saber se vivo ou se morri

a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
(finito/infinito, p. 107)

 

parece interromper bruscamente e fugir do tema abordado. Parece indicar que o homem não quer apenas o espaço. Não deseja dominar o cosmo, mas triunfar sobre o finito e o infinito, a fim de resolver o enigma da pedra filosofal, da fonte da juventude: a fusão com os elementos naturais, a paralisação do tempo ao atingir-se a velocidade da luz para a superação da própria morte. Seria a libertação total – não a simples libertação social de barreiras econômicas ou políticas, mas a libertação material de barreiras físicas ou naturais, que o homem pode operar quando aprender "a cavalgar na luz", onde "sou imortal e tudo posso", ou seja: quando o homem se tornar humano, senhor de seu próprio destino. Utopia? A dimensão maior da História sempre foi a de uma Utopia.

Poeta de expressão forte e fácil, Roberto Pontes transmite em Lições de Espaço a mais vasta mensagem de humanismo da poesia cearense contemporânea e, mesmo, da poesia brasileira.

O livro está aí, circulando restritamente e quase anônimo em edição decorrente do prêmio. E porque, com toda certeza, acrescentará uma parcela ao nosso pequeno patrimônio poético, ele já nasce exigindo uma edição nacional.[2]




Notas:

[1] PONTES, Roberto. Lições de Espaço – Teletipos, Módulos e Quânticas. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1971.

[2] Este texto aparece aqui em sua terceira redação: nas duas últimas (a segunda para incorporação como prefácio ao poema), agradeço a colaboração do próprio poeta, pelos muitos diálogos que ajudaram no esclarecimento de algumas passagens.

 



Roberto Pontes
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