Raymundo Silveira
A escolha
“To
be, or not to be: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep(...)”
(William Shakespeare: Hamlet - Soliloquy)”
A paisagem era
de tirar o fôlego. Do zênite até o horizonte o céu era azul, mas um
azul cuja tonalidade era diferente do azul-turquesa que se costuma
fitar no firmamento num dia sem nuvens e com o Sol a pino. Não era
também como o azul do mar profundo em dia claro como aquele que se
vê nas fotografias tiradas das naves espaciais através de uma
atmosfera desanuviada; era uma cor tirante para entre a safira e o
anil, se estendendo por toda a abóbada celeste na amplidão do espaço
límpido, translúcido, diáfano, perdendo-se no apogeu infinito e
depois descendo e se esbatendo contra o marrom terracota do
horizonte, mas ainda assim configurando uma linha de limites quase
precisos como se separasse duas porções bem distintas do universo.
À varanda da
casa da fazenda sentavam-se dois homens, ambos aparentando entre
trinta e trinta e cinco anos, a contemplar aquele panorama enquanto
conversavam. Dizia um deles: “Somos colegas e somos amigos, mas eu
te considero muito mais do que isso: considero-te meu irmão,
portanto me sinto compelido a te dizer a mesma verdade que eu
haveria de querer ouvir de ti se acaso estivesse no teu lugar.
Antes, porém, quero te confessar que aquilo que vou te dizer me dói
quase tanto quanto a dor que sentirás quando terminares de me ouvir.
Se eu achasse que tu fosses um homem fraco, pusilânime, covarde,
jamais diria o que irás ouvir agora; aliás, se fosses assim sequer a
minha amizade tu terias. Somos ambos médicos, já assistimos
praticamente a todas as misérias deste mundo e estou convencido de
que nenhum de nós dois alimenta a mínima ilusão quanto à fatalidade.
Primeiro falarei sobre o prognóstico do teu caso. Embora não sejas
neurologista, vais entender tudo muito bem. Depois, se quiseres,
direi o que faria se estivesse em teu lugar. A verdade, Marcelo, é
que tiveste uma fratura completa da medula espinhal ao nível da
sexta vértebra cervical. Quanto a isto não há a menor dúvida. Fiz
questão de que o Aloísio, o Tadeu e o Porfírio que, como sabes,
foram meus colegas de residência, também te examinassem. Além disto,
o resultado da Ressonância Magnética é inquestionável. Há, portanto,
cem por cento de certeza de que jamais te levantarás e caminharás
pelos teus próprios esforços.”
Enquanto Adriano
falava, Marcelo olhava muito mais aquém daquele círculo de beleza
inebriante, porém inerte. Aqui florescia a vida sob a forma de
vastos e verdejantes cafezais dispostos em fileiras separadas
simetricamente umas das outras, mais parecendo um jardim muito bem
cuidado do que uma lavoura. Por trás, se distinguia também o vulto
cinza dos dois dentes de um serrote como se fora a boca escancarada
de uma velha banguela permanentemente a gargalhar. Cerca de um
quarto de quilômetro ao Norte do último renque dos pés de café
corria um ribeirão a cuja margem esquerda jazia uma espécie de
trapiche sustentado por estacas de pau a pique que, visto dali,
lembrava as cores castanho-escuras e as formas imprecisas de
idêntica estrutura que aparece na tela “The Thames at Westminster”
de Claude Monet e que se encontra na National Galllery de Londres.
Tendo sido
bruscamente retirado de seu entorpecimento, Marcelo experimentou
intermitente e simultaneamente vários tipos de sentimentos: ódio,
autopiedade, desespero, abandono, resignação, inveja, revolta,
ceticismo, angústia, e até mesmo uns laivos longínquos de fé. Só não
sentiu, em momento algum, o menor sinal de esperança. Sentia-se
muito mais próximo da morte do que da vida; mais um animal de
laboratório do que gente; mais desgraçado do que o ser humano mais
infeliz. As palavras do amigo equivaliam à sentença firme de um juiz
que o estivesse a condená-lo à pena capital sem que coubesse nenhuma
apelação. Há apenas duas semanas era uma pessoa que transbordava
alegria de viver. Tinha tudo o que alguém na sua idade pode almejar
na vida: sucesso profissional, beleza, saúde, dinheiro, mulheres,
enfim, o mundo aos seus pés. Subitamente, um acidente
automobilístico que poderia ter sido evitado, acabou com tudo
aquilo. Nunca fora uma pessoa, nem muito menos um motorista,
imprudente. Todavia, existem estímulos excepcionais a que nenhum
homem é capaz de resistir. Raramente bebia. Na noite do acidente
estivera numa festa e ingerira apenas cinco copos de cervejas em
mais de quatro horas. Não tinha namoradas, tinha fãs. Naquela noite
uma delas pediu-lhe uma carona e entendeu de masturbá-lo em plena
auto-estrada. Tentou resistir, mas ela já o abocanhara. Nesta
circunstância não existe homem prudente; trata-se de um apelo
irresistível da natureza do qual raríssimos conseguem se livrar. O
choque com a carreta seria frontal – e agora ele pensava: “antes
tivesse sido”. Girou o volante do Mercedes todo para a direita e o
automóvel capotou cinco vezes.
“Não vou te dar
conselho algum. Seria um leviano, um tolo, um inconseqüente; mais do
que isso, não seria teu amigo se decidisse te aconselhar. Irei
simplesmente analisar a tua situação como faria comigo mesmo se
estivesse no teu lugar. Serei objetivo; evitarei desnecessários e
aborrecidos rodeios. “Temos” duas opções; estou usando a primeira
pessoa do plural porque irei te falar exatamente como se nós ambos
estivéssemos nas mesmas condições. Temos duas opções: o suicídio e a
meia-vida. Vamos analisar com profundidade cada uma delas. Perdoa a
minha franqueza, mas se escolheres a primeira alternativa não será
propriamente um suicídio; será meio suicídio, já que terás apenas
meia vida daqui para a frente. Outro fator que favorece esta escolha
é que, mais cedo ou mais tarde, morrerás de qualquer maneira, como
todos nós também morreremos. Mesmo para algumas pessoas que são
agora como eras antes do acidente, viver ou morrer pouco importa.
Com efeito, que sentido poderia haver em se matar de trabalhar,
lutar, competir? Como atribuir importância ao sucesso, à fama, ao
dinheiro, à glória, enfim, se tudo resultará mais tarde ou mais cedo
na aniquilação total? Qual a diferença entre morrer neste exato
instante, mais tarde, amanhã, daqui a alguns meses, um ano, dez,
vinte, trinta ou sessenta? Ponderando tudo racionalmente, não seria
mais vantajoso acabar logo de vez do que insistir numa batalha
inglória, cujo resultado seria uma derrota definitiva; um final
irrecorrível, agravado pela velhice e todo o seu séquito de mazelas:
angústia, diminuição da acuidade dos sentidos, dores terríveis,
doenças degenerativas, solidão? Vê bem! Estou me referindo a alguém
sadio e feliz como eras antes. Então projeta este raciocínio para o
homem (ou o meio homem) que és agora”.
Marcelo escutava
tudo sem murmurar uma palavra; sem um gemido; sem emitir um único
suspiro. Antes de o amigo fazer este discurso já propendia para a
hipótese do suicídio. Durante a fala de Adriano tomou esta resolução
e experimentava agora um imenso alívio. “Amigo, pode parar. Já estou
decidido. Não imaginas o bem que me fizeste. Só te peço um imenso
favor. Nem considero um favor, mas sim um ato de infinita lealdade.
Tu me ajudarás?” “Não. Não posso! Infelizmente não sou imune às leis
nem aos efeitos acumulados e retardados da hipocrisia humana. Se
fizesse isso, tu não estarias cometendo suicídio; eu é que estaria
praticando um assassinato. Infelizmente, meu querido irmão, esta
será a única instância na qual não contarás com a minha ajuda.
Provavelmente, não terás a ajuda de ninguém. Terá de ser um ato teu;
somente teu. Não está ao meu alcance sequer te aconselhar o método
que deverás escolher a fim de que tenhas um fim rápido e o mais
indolor possível. Mas tu me interrompeste antes do tempo. Temos de
analisar o reverso da medalha”. “Por favor, me poupa deste tormento.
Não quero ouvir mais nada. Minha decisão é irrevogável”. “Vais ter
de escutar, sim. Lembra-te que eu disse que agiria contigo do mesmo
modo como queria que agisses comigo se estivéssemos em situações
invertidas. Nunca te esqueças disto seja qual for a tua resolução.
Tenho de te dizer que esta que dizes já teres tomado é prematura.
Espera, por favor, que eu termine de falar”.
“Estamos”
vivos. Espero não ser mais necessário repetir o porquê deste plural.
Não obstante estarmos meio-vivos, estamos vivos. Entretanto, jamais
me verias desempenhar aqui o papel de um membro dos chamados centros
de valorização da vida. Portanto, quero que fiques bem consciente de
que aquilo que ouvirás a seguir não contém qualquer fundamento de
natureza mística, ingênua, ou piegas. Baseia-se exclusivamente em
argumentos tão frios quanto os que utilizei ao comentar a hipótese
do suicídio. O que significa estar vivo? Esta é uma indagação
subjetiva porque cada ser humano tem uma resposta diferente para
ela. Certamente tens a tua. Portanto, vou falar da minha resposta.
Num único ponto, porém, haveremos de concordar: só se está vivo uma
vez. Viver, por conseguinte, talvez seja o único fenômeno que jamais
se repetirá em relação aos seres humanos. Tudo o mais poderá ser
reiterado. Não é impossível que num futuro remoto a ciência
encontrará até mesmo um meio de reverter o processo de
envelhecimento. Mas reviver é tão impossível quanto viver para
sempre. Este fator tem de ser seriamente ponderado durante a tua
decisão, a qual tem de ser baseada exclusivamente em elementos
racionais. Jamais poderás te dar ao luxo de te deixares levar pelas
emoções”
“Além disto,
caro amigo, viver é um privilégio. Não te espantes! Com toda a sua
carga de tormentos, viver é uma prerrogativa única, estritamente
pessoal e intransferível. Portanto, viver, ou meio viver como é o
teu caso, é uma enorme vantagem e vou te demonstrar por quê. Se não
tivesses nascido tu nunca saberias disso, mas jamais experimentarias
qualquer emoção agradável. Nunca verias uma flor, uma cachoeira, um
pôr-do-sol, uma obra de arte; jamais sentirias um cheiro de terra
molhada, ou o perfume de um jardim; nem ouvirias a melodia
maravilhosa da Nona Sinfonia de Beethoven. Não sofrerias nenhuma
dor, mas também não conhecerias qualquer espécie de prazer. Imagina,
se fosse possível, o que não dariam Galileu Galilei para ter
assistido à descida do homem na Lua; Isaac Newton para conhecer a
Teoria da Relatividade; Ambroise Paré para ver e praticar um
transplante de órgão; Johann Sebastian Bach para escutar a sua
maravilhosa “Die Kunst der Fuge” num prosaico Compact Disc. Então, é
ou não é um privilégio estares vivo (ou meio-vivo)? Todavia, isto é
o de menos. Quando não estiveres vivo nunca mais saberás o que é dar
nem receber amor. Agora, sim, pondera estas duas situações e depois
pode tomar a tua resolução! É precisamente o que eu faria se
estivesse no teu lugar.”
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