Ray Silveira
A biópsia hepática
Ao decidir me oferecer como voluntário
para uma experiência médica, jamais me preocupei em medir
conseqüências. Para os jovens, pouco importa se o Céu incendeia, ou
se a Terra implode. Só interessa o fogaréu dos sonhos... O troar da
explosão dos ideais. Embora os primeiros logo se transformem em
pesadelos, e os estilhaços dos segundos caiam sobre a própria
cabeça. A idéia, pelo menos na minha ótica, era disponibilizar o meu
fígado para uma única biópsia, por ter sido, no passado, acometido
de uma doença grave: a hepatite C, e ter ficado curado. A equipe era
constituída de vários cientistas, mas só me recordo dos nomes de
três: o do chefe, doutor Amazeus, o da doutora Águeda, responsável
pela colheita do material, e o do doutor Herculano. Este último
viria a se tornar figura de destaque nessa história. Então, não
haveria como esquecê-lo. Havia outro que não cheguei a ver. Soube da
sua presença na equipe através do doutor Herculano. Tratava-se do
anestesista: doutor Flexa da Silva, também conhecido por doutor
Flexinha.
A imagem da médica ficou-me gravada
eternamente na memória. Até porque, foi a figura mais presente e
mais próxima de mim. Não era uma bela mulher. Tampouco era feia.
Aparentava quarenta anos. Tinha uma cabeça pequena, em relação ao
corpo, nariz aquilino e lábios proeminentes, resultantes de
acentuada prognatismo. Olhos bem abertos, vigilantes... Atentos.
Como se espreitasse constantemente uma presa. Ao empunhar qualquer
instrumento cirúrgico, fazia com tamanho vigor que, em vez de mãos,
parecia possuir garras.
Infelizmente, o material da biópsia
resultou inadequado. Menos por imperícia da doutora, do que pela
qualidade do fixador enviado pela Patologia. Lamentamos muito. Como
chefe, sugiro que se submeta a um novo exame. O seu gesto nobre, ao
colaborar com a ciência, não deve se tornar em vão. Dentro de uma
semana o fígado estará completamente regenerado. Não haverá qualquer
prejuízo. O único incômodo: deixar-se puncionar uma vez mais pelas
habilidosas mãos da doutora Águeda.
Eu mesmo ignoro a motivação lógica que
me levou a assumir aquele papel de animal de laboratório. Se é que
houve tal motivação. Tenho de ser sincero: não se tratou de nenhum
“gesto nobre para colaborar com a ciência”, como falou o médico - e
estou certo de que ele sabia disso -, nem muito menos o “troar das
explosões dos ideais”, conforme eu próprio simulei parecer no
princípio desta narrativa. Quem sabe, tudo não passasse de uma
necessidade mórbida de auto-afirmação. Ver o meu nome em destaque
nos jornais da Terra inteira, se daquela experiência resultasse
algum fato inédito... Uma descoberta de importância proporcional à
da penicilina. Então, desperdiçar a oportunidade, sobretudo depois
de ter passado pelo incômodo da primeira tentativa, seria
insensatez. Portanto, nem carecia daquele discurso. Seria eu o
primeiro a reclamar a segunda ferroada. Estava imota a mó do meu
moinho. Precisava de um rebojo de emoções.
Só que desta vez, nada transcorreu
igual à primeira. Houve várias tentativas frustradas, antes da
doutora acertar com o local exato onde deveria enfiar a agulha. A
dor foi intensa. E ouvi comentários assustadores de outros membros
da equipe, pois acompanhavam tudo pelo ultra-som. Veja, está
sangrando muito. Você deve ter puncionado a artéria. Melhor parar. O
risco de hemorragia pós-operatória é alto. Eu estava disposto a ser
herói, não cadáver. Daria tudo para ser famoso, mas preferia a
insignificância de um zémané em cima do chão, à notoriedade de cem
mil Pelés dentro dum caixão...
Um minuto de fisionomia fala mais do
que arrobas de palavras. Desta vez, quem veio me dizer o resultado
do exame foi a doutora Águeda. Não precisou falar nada parecido com
“infelizmente”. O hálito da médica recendia a fracasso. Por favor,
doutora, me poupe... Não pretendo ouvir qualquer explicação. Mas...
Não tem mas. Já escutei mas demais. Aqui se encerra a minha...
“Colaboração com a ciência”. Que tal ganhar trinta mil dólares? Quê?
Isso mesmo, que tal trinta mil dólares em troca de só mais uma
tentativa? Eu ganhava trinta mil dólares... Por ano... Por que acha
que me pagariam isso, se já me submeti a duas outras sem receber um
centavo?
Bem, o senhor era um voluntário. Não
precisávamos informá-lo sobre a existência de um Fundo Internacional
financiando as pesquisas. O interesse no seu fígado é evidente: não
conhecemos outro caso de cura absoluta de hepatite C. Perder o
senhor seria praticamente o fim... Pelo menos para esta equipe...
Receberei em espécie e adiantado, estou certo? Certíssimo, embora
particularmente não ache conveniente conservar esta quantia durante
e imediatamente depois de um exame como este. Apesar de
relativamente seguro, não se pode garantir com absoluto rigor a
ausência de complicações... Bem, de fato, a senhora está certa... OK.
Então, peço depositarem na minha conta bancária o valor equivalente
em moeda nacional. Confio na senhora. Promete se encarregar desta
etapa da operação? A doutora Águeda Prometeu.
Com efeito, nos dias atuais, a biópsia
hepática é um procedimento relativamente simples, seguro e indolor.
Guiado pelo ultra-som, o operador introduz, através da pele, uma
agulha fina que corta ou aspira uma quantidade mínima de fígado para
exame microscópico. Geralmente, é realizada com anestesia local. Foi
assim que procederam comigo nas duas ocasiões anteriores. Desta vez
foi diferente. Talvez, por causa da ameaça de complicações durante o
último procedimento, decidiram me anestesiar. Ao despertar
encontrava-me completamente só, deitado num leito de hospital. Tinha
os pés e as mãos atados às grades da cama através de correntes.
Sentia dores terríveis no fígado e um cheiro de terror. Um curativo,
ensopado de sangue, recobria o local da intervenção.
Mantive-me nesta posição enquanto se
passavam minutos arrastados de preguiçosas horas. Num indeterminado
instante de um ignorado dia, entrou a doutora Águeda seguida de
auxiliares. Um destes, tomou o meu braço, puncionou uma veia e
instalou um soro. Só me lembro até aí. Ao recuperar a consciência me
encontrava num ambiente que, a princípio, me pareceu um mundo
extraterrestre. Pessoas estranhas murmuravam palavras ininteligíveis
e se movimentavam ao meu redor. Sequer me olhavam. Dia e noite, para
mim, deixaram de existir. Desta vez, havia outras pessoas deitadas a
me olharem com curiosidade e comentavam entre si qualquer coisa que
não pude distinguir. Todas estavam vestidas de branco e eu insistia
em associar gestos, atitudes, movimentos, semblantes e imagens, a
filmes, programas de televisão e livros onde já assistira ou lera
sobre certas experiências relatadas por indivíduos supostamente
redivivos. As dores no fígado eram insuportáveis. O curativo se
encontrava encharcado de sangue. Gritava, mas só um desespero mudo
escutava.
Daí em diante fiquei sozinho e não me
deram mais anestesia. Sempre seguida de alguns homens, entrava, com
certa periodicidade, cujo intervalo não tenho como estimar, a
doutora Águeda. Quatro deles me continham pela força, enquanto ela
arrancava o curativo e introduzia um longo ferro no lado direito da
minha barriga, e só retirava quando trazia, na extremidade, um
fragmento de coloração púrpura, gotejando sangue. Cobria,
apressadamente, o local e saía do recinto, me deixando apavorado e
desesperado de dor.
Não sentia fome. Porém, um doloroso
vazio no estômago reclamava a ingestão de algum alimento. Calculo em
mais de vinte e quatro horas o tempo passado sob o efeito desta
estranha sensação. Como se adivinhasse, alguém pôs na minha boca um
canudo do qual suguei um líquido muito remotamente parecido com suco
de laranja. Não era. Tratava-se de um sabor fora do comum. Um gosto
amargo de nunca mais...
Na ocasião seguinte, mal distingui a
doutora, comecei a gritar. Não grite! Assim será pior pra você. Não
tema. Seu fígado será preservado. Só intervimos ao ter certeza, da
regeneração hepática, através do ultra-som. Não devia falar sobre
isso. Se o faço, é apenas para acalmá-lo. Quanto aos seus gritos,
não preocupam nem um pouco. Ninguém pode escutar. Esta sala é à
prova de som. Herculano, dê-me a broca saca-bocados...
Depois fiquei sabendo, através deste
médico, o doutor Herculano: já havia mais de trinta dias que me
encontrava naquelas condições. Completara também um mês sem ingerir
alimento algum, com exceção daquele líquido insípido. Mais tarde, ia
sendo transportado não sei para onde, numa cadeira de rodas,
empurrada por enfermeiros, quando um médico de cerca de trinta e
poucos anos me interpelou em inglês: "Where are you?" "In a
hospital, I suppose". "Where are you going?" “I’d like to go home,
but I’m not sure about that". "Home?" E se ria. "When do you intend
to go home?" "Yesterday night". "Yesterday?" E soltou uma gargalhada
só comparável com aquelas que os demônios devem disparar no inferno
ao sentirem prazer diante do sofrimento dos sentenciados. "I’m sorry,
Doctor. Pardon me for my mistake, please. I intended to say
‘Tomorrow night’. I’m too weak to talk so well." Já ia longe. Nem se
interessou em escutar as últimas palavras...
Não assisti à próxima sessão de
tortura. Desfaleci, mal vi entrarem a doutora Águeda e sua equipe.
Ao recuperar a consciência, encontrava-me sozinho e doía como nunca.
Fiz um esforço para abrir os olhos e percebi estar enfaixado. E a
faixa encharcada de sangue, principalmente do lado direito do
abdome. Só então, notei a presença de outra pessoa: o doutor
Herculano. O auxiliar da doutora Águeda se encontrava junto ao
leito. Por favor, doutor... Psiu, não fale. Estou aqui para ajudar.
Não acreditei, todavia, fingi. Afinal, não tinha nada a perder.
Foi através dele que fiquei sabendo
onde estava, o nome dos outros membros da equipe, há quanto tempo me
encontrava naquele inferno e o motivo real de tudo aquilo. Confia em
mim. Não posso prever quanto tempo. No entanto, juro que em breve
sairás daqui. Tenho contas antigas a ajustar com a Águeda. Tu serás
o meu leitmotiv... Uma espécie de álibi para me safar dela sem
sofrer conseqüências. Além do mais, serei beneficiário de um
dispositivo legal chamado delação premiada. Mais que isso,
serei uma espécie de benemérito. Tu servirás de testemunha... Como e
quando farei o que te prometi, não posso dizer agora. Escuta bem:
tudo estará acabado se abrires o bico para aquela bicuda da Águeda...
Jamais troquei contigo sequer um cumprimento, entendeste bem? Por
enquanto, confia em mim. Aliás, não tens alternativa senão confiar.
E saiu sem se despedir.
Não sei precisar. Devo ter padecido
mais umas quatro ou cinco sessões de tortura. Passei a desconfiar da
conversa do doutor Herculano. Cheguei mesmo a cogitar de falar sobre
isso com a doutora Águeda. Não o fiz. Somente por causa disso estou
relatando essa história. Na manhã da última sessão de tortura,
Herculano apareceu sozinho. Ao vê-lo entrar suspirei de alívio,
embora não visse motivo algum para me aliviar naquele instante,
tamanhas eram as dores. Seguinte: toma este spray. Esconde bem. Está
cheio de pó-de-mico. Quando a Águeda se debruçar sobre ti, asperge
os olhos dela.
Segura firme e não erra. Do contrário
será o meu fim. Do teu, não será o fim, não, será o zero absoluto.
Nada sobrará de ti. O Amazeus, em pessoa, te transformará em
grânulos menores do que os deste pó. Entendeste? Depois de muita
insistência consegui convencer o chefe. Não suportarias mais,
aquelas biópsias a não ser sob anestesia geral. Então, consegui
introduzir um anestesista na sessão desta tarde. Será o doutor Flexa
da Silva, o Flexinha. Ao atirares o pó nos olhos da bruxa voadora,
ela ficará cega. Somente eu serei capaz de socorrê-la. O Flexa me
ajudará. Pedirei para ele injetar na veia, duas ampolas de
analgésico. Já estão preparadas. Só que substituí por solução de
estricnina, conservando o rótulo. Não é apenas para a tua satisfação
que estou contando isso. É para confiares em mim e não vacilares no
momento de agir... Como já falei, a tua ação será decisiva...
No começo, declarei que a minha
motivação maior ao oferecer o meu fígado singular, para experiências
médicas, tinha como único objetivo chamar atenção, atrair os
holofotes da mídia, enfim, aparecer. Depois do que passei, isso se
tornou irrelevante. Quem ia, de fato, se beneficiar com a descoberta
da cura da hepatite C, se acaso a experiência tivesse tido êxito,
seriam os meus torturadores. Quanto a mim, obtive mais do que
pretendia. Pois meu nome se tornou imortal. Então, fui previdente,
sem querer. Por um mero acaso, sou o signo da prudência...
Simbolizo o homem que, para beneficiar
a humanidade, enfrentou o suplício inexorável, embora o resultado
imediato tenha sido insatisfatório. Para a aplicação da justiça, os
meios são mais importantes do que os próprios resultados. A maioria
dos mártires não alcançou os ideais pelos quais se sacrificou. Nem
por isso são menos reverenciados, nem menor a grandeza do seu
martírio. A grande luta das conquistas civilizadoras e da propagação
de seus benefícios à custa de sacrifício e sofrimento é o maior
mérito, senão o único, da condição humana. Duvido que o meu heroísmo
seja esquecido durante os próximos milênios. Bem melhor do que
ganhar míseros trinta mil dólares, vocês não concordam?
Escrevi essa história, ainda deitado
no meu leito de tortura, enquanto esperava ajuda externa. Como você,
leitor, cuidei que terminava aqui a minha tragédia. Não termina.
Herculano acaba de entrar. O homem é uma pilha de nervos. Mal
consegue balbuciar:
- Estamos acabados... O Flexa não
injetou estricnina na veia da Águeda... Eu mesmo sou o culpado...
Substituí a buscopironamina por ketamina...
Para os leigos: o idiota do Herculano
trocou o analgésico por um anestésico...
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