Raymundo Silveira
Digam que não estou
Digam que não estou.
Intransitivamente. Se exigirem um objeto abjeto, digam que estou um
crápula. Se reivindicarem complemento, digam que foi fixado nas
enzimas catalisadoras da minha sordidez. Se, ainda assim,
perguntarem pra onde eu fui, respondam que saí aquariando fevereiros
de gandaias pela vida afora. Não estou para os vendedores nem para
os seus cobradores, telefonemas enfadonhos ou declarações amorosas,
falsas ou verdadeiras, para homens atordoados de trovões, ou
mulheres resplandecentes de relâmpagos, para crianças chorando com
fome ou gritando de dor, para os seus pais aflitos envoltos no manto
da desgraça e recobertos com o pálio da miséria, para banqueiros,
salafrários, santos, agiotas, agitadores, pacifistas, pedintes,
prêmios de loteria, automóveis (do ano, do mês, do dia, da hora ou
do minuto), amigos prestantes ou afoitos desafetos afeitos a
afetações de amizades, para luares de prata ou aluás elaborados com
o néctar dos deuses do Olimpo, para cavalheiros, cafajestes,
gentis-homens, ou crápulas como eu, para o papa, para o bispo, para
o pároco e para todo o clero, para o chefe da nação e do estado,
para o dalai lama em suas vestes vermelho-alaranjadas e para o dalai
lodo vestido de verde musgo, para os loucos de paixão ou de loucura
mesmo, para os bêbados, para os ébrios de ambições e os sóbrios
consumidos nas chamas das águas ardentes da abstinência compulsória,
para a puta mais safada ou para as freiras cobertas, da cabeça aos
pés, com o hábito da caridade, para leides dai, ou para lordes dão,
para príncipes, ou para molabentos, para seres imaculados recendendo
a sândalo, ou lazarentos exalando, em vida, os fedores da
decomposição cadavérica. Digam que não estou pra “seu” ninguém.
Exceto para a senhora morte.
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