Raymundo Silveira
Causa Mortis
Faz quarenta
anos que matei um homem. Nunca ninguém descobriu, porém não suporto
mais este peso terrível que carrego na consciência. Entretanto,
ninguém pense que foi apenas o remorso que me levou a decidir contar
tudo; foi também a certeza de que sairia impune porque ninguém
poderia mais me processar, pois o crime há muito tempo já
prescreveu. Sou, portanto, o exemplo típico de um canalha cínico que
não agüenta mais carregar este “peso” sozinho, mas só o está
relatando pela certeza de que não será punido. Se houvesse a menor
possibilidade de que eu tivesse ainda de pagar pelo homicídio que
perpetrei, não tenham dúvidas de que toleraria conviver com esta
inquietação para sempre.
A mente humana é
muito mais complexa do que imagina a nossa vã psicologia. Talvez
ninguém jamais tenha ouvido falar de alguém que se dispusesse a
confessar, quarenta anos depois, um assassinato por causa de uma
ambivalência, isto é, por querer evitar o sofrimento de ter de
conviver sozinho com um terrível segredo, mas ao mesmo tempo, se
rejubila porque saiu impune. Não acredito que casos como o meu sejam
assim tão freqüentes. Mais curioso ainda é outro fenômeno que se
passa na minha mente. Apesar do remorso, não estou arrependido, pelo
contrário, faria tudo outra vez. Por isso desconfio que não se trata
exatamente de um remorso, pois este consiste numa inquietação da
consciência por um crime cometido (o que de fato sinto), mas que vem
sempre acompanhado de sentimento de culpa (o que eu não sinto). Como
disse, não estou sequer arrependido; pelo contrário faria tudo outra
vez se tivesse certeza da impunidade. A única coisa que me incomoda
é este segredo e a compulsão que sinto de o revelar. Muito estranho
mesmo.
O meu delito é
mais grave do que qualquer outro porque foi cometido através da
profissão cuja função é aliviar a dor e prolongar a vida do ser
humano e, mesmo depois do crime, não deixei de exercer a medicina
por causa dele. Pelo contrário, tive todas as honrarias e os méritos
que um médico pode alcançar na vida profissional. Hoje me encontro
aposentado e por isto é mínimo o risco de perdê-los. E mesmo que
isto viesse a acontecer não me traria nenhum desgosto porque entendo
que qualquer prazer só é efetivo enquanto o gozamos. Não estou nem
um pouco preocupado com que tirem de mim algo que já desfrutei. O
passado – excetuando este sigilo que trago comigo e me inquieta -
não me importa nem um pouco. Sou, portanto, um criminoso cínico que
quer viver acomodado e em paz com a sua consciência, mas nunca um
hipócrita. Alguém poderia se surpreender com esta expressão: “em paz
com a sua consciência”. Sim, depois que me livrar deste segredo
hediondo, ficarei leve como uma pena de passarinho e viverei feliz
pelo resto dos meus dias.
Eu tinha trinta
anos quando aconteceu. Nada sucedeu por acaso, pelo contrário, foi
tudo muito bem planejado. Minha mulher estava me enganando com um
amigo, mas os dois jamais desconfiaram de que eu sabia de tudo. Como
passava o dia operando e rara era a noite em que não tinha plantão,
eles estavam sempre juntos. Dormiam, inclusive, na minha própria
cama. Quando soube, sofri muito, mas não deixei transparecer nada.
Certa noite, enquanto nos preparávamos para jantar juntos pus,
disfarçadamente, várias gotas de um poderoso laxante, de efeito
retardado, no suco do meu comborço. Às altas horas daquela madrugada
ele entrou no hospital onde eu estava de plantão se contorcendo de
dores e declarando que já havia evacuado várias vezes. Simulei
examiná-lo sozinho e declarei que se tratava de uma crise de
apendicite e ele teria de ser operado imediatamente. Como era leigo,
não duvidou nem um pouco. Os colegas sempre confiavam uns nos
outros, portanto também não duvidaram do meu diagnóstico e decidimos
operá-lo.
Numa operação de
apendicite não complicada o corte é mínimo e o cirurgião manipula as
alças intestinais antes de expor o apêndice. Enquanto assim
procedia, em vez de manusear o intestino fui direto com os dedos no
ureter direito do paciente, descolei-o com uma pinça, contornei-o
com um fio de algodão e o atei. Estava, portanto, bloqueada a
passagem de urina do rim para a bexiga. O colega que estava me
ajudando não desconfiou de nada, pois não podia ver o que meus dedos
faziam. Só depois disto, expus o intestino grosso e retirei o
apêndice. Um ano e seis meses depois, o rim direito do meu “amigo”
tinha virado uma “cabaça” e teve de ser retirado. Escolhi um médico
recém-formado e inexperiente para me ajudar e aproveitei para
amarrar o outro ureter. Dois meses mais tarde, estava morto. Até
este exato momento só eu conhecia a causa da morte. Pensando melhor,
fui eu mesmo a causa da morte.
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