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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

Sob o signo de câncer

 

Nem eu mesmo sei por que ou para que estou escrevendo isto. O único motivo que consigo enxergar é a vontade que tenho de contar tudo a alguém e nunca terei esta oportunidade se não o fizer agora. Talvez jamais haverá algum leitor para estas palavras. Pouca gente decifrará estas garatujas e a probabilidade de que o destino delas será o fogo é altíssima. Tenho muito medo de que a minha mulher me surpreenda escrevendo, pois se tomar conhecimento do conteúdo do texto, o destruirá imediatamente e assim eu não teria a menor chance de desabafar tudo o que sinto.

Não direi uma palavra sobre os meus sofrimentos físicos. Por quê? Primeiro porque me sentiria como um copista medieval que estivesse reproduzindo todos os mistérios dolorosos do evangelho; por outras palavras, todos já os conhecem, embora poucos os tenham experimentado na própria carne. Depois, porque não disponho de forças, tempo, oportunidade, privacidade e nem mesmo de papel e lápis suficientes para isto. Portanto, prefiro me concentrar naquilo que mais me magoa e que tem tudo para ir comigo para a sepultura sem que ninguém jamais tome conhecimento, a menos que estes rabiscos se salvem e alguém se interesse por eles.

Defequei sangue pela primeira vez na noite do último reveillon. Já me encontrava trajado a rigor e estava prestes a sair para o baile quando veio a vontade. Sentei-me no vaso sanitário e pensava que estaria com diarréia. Nunca tinha sentido isto sem nenhum motivo como fora o caso naquela noite. Quanto mais defecava, mais aumentava a vontade. Percebi um cheiro estranho, ergui-me um pouco do vaso e vi que havia eliminado cerca de meio litro de sangue vivo. Senti tonturas e suei frio. Meu pulso era rápido, minha pressão arterial estava baixa. Depois de algum tempo de ter perdido aquela quantidade de sangue me senti melhor, mas não tive mais disposição para sair da cama. Minha mulher ficou contrariadíssima. Ainda cogitou de sair sozinha e perguntou se eu faria alguma objeção. Claro que neguei. Não sei o que teria se passado em sua cabeça, pois desistiu de ir ao baile, embora tenha permanecido com um péssimo humor. As duas filhas foram com os namorados.

No feriado do ano novo defequei mais sangue, embora numa quantidade bem menor. No dia seguinte fui ao proctologista. Ele me examinou minuciosamente e, ao terminar, me disse que eu ficasse tranqüilo, pois tudo indicava que não teria passado de uma ruptura de hemorróidas, mas por medida de segurança eu teria de me submeter a um exame em que um tubo longo e flexível teria de penetrar cerca de quarenta centímetros no meu intestino, através do ânus. Como sempre tive hemorróidas, indaguei-o se tal procedimento não poderia ser evitado ou, pelo menos, adiado, até que eventualmente eu viesse a ter uma nova crise. Ele concordou, mas me recomendou que ao menor sinal de sangue nas fezes entrasse imediatamente em contato com ele.

Cerca de três meses depois voltei a ter hemorragia, e no outro dia, fui submetido ao tal exame. O médico não adiantou nenhum diagnóstico imediato. Disse apenas que havia encontrado um pequeno pólipo no meu intestino grosso e que havia retirado um fragmento para biópsia. Uma semana depois soube que estava com câncer e teria de ser operado imediatamente. Fiz todos os exames e, como me encontrava muito debilitado, fui internado três dias antes da cirurgia para receber transfusões de sangue. Hoje está completando quinze dias que fui operado. Como já declarei, não quero dizer nada acerca das dores que senti e ainda sinto, senão da montanha da qual desabei desde quando tive a primeira hemorragia, a fim de refletir acerca das mudanças que um homem pode sofrer em tão pouco tempo. Não citarei os fatos que me sucederam em ordem cronológica. Prefiro o critério da importância que atribuo a cada um deles.

A primeira decepção que tive foi a que considero menos grave. Quando me internei fiquei alojado em acomodações privadas onde poderia dispor de alguma pessoa para me fazer companhia, embora eu não estivesse bem certo de quem seria essa pessoa. A única certeza que tinha era que não deveria ser alguém da minha família. Quando cheguei em casa com o resultado do exame e falei que teria de ser operado, minha mulher disse logo que nem ela, nem minhas filhas poderiam me servir de companhia. Talvez me visitassem dia sim, dia não. Foi então que contratei um auxiliar de enfermagem; um homem a quem jamais eu tinha visto antes, mas era somente com quem eu poderia contar. No dia seguinte em que me operei veio ao meu apartamento uma pessoa da administração e declarou que eu teria de me mudar para uma enfermaria – sem direito a acompanhante – pois o meu plano de saúde não cobriria as despesas daquele tipo de acomodações. Vi-me, então, compelido a ter de ficar sozinho.

Há seis dias tomei conhecimento da bancarrota financeira em que me encontrava envolvido e da qual estava completamente alheio. Não era rico, mas sempre pertenci à chamada classe média alta. Possuo aplicações financeiras diversas, vários imóveis e levava um padrão de vida compatível com as minhas posses. Acabei de tomar conhecimento do motivo da minha derrocada financeira. Soube tudo através de um representante do meu banqueiro. Minha mulher tinha um amante a quem mantinha de tudo; supria, inclusive, o seu vício de toxicomania. Como sempre havíamos partilhado eqüitativamente os nossos bens, ela dispunha de crédito tanto quanto eu. Endividou-se até a raiz dos cabelos. Foi ela, inclusive, quem trocou todos os planos de saúde da família pelos mais baratos a fim de dispor de cada vez mais recursos para manter o amante e o seu vício. Portanto, todos os meus bens terão de ser vendidos e, ainda assim, o dinheiro da venda cobrirá apenas a metade das dívidas. Foi por este motivo que tive de deixar o apartamento individual e vir parar nesta precária enfermaria de trinta leitos onde existe uma quantidade ínfima de funcionários para atender a tantos doentes.

Somente no terceiro dia depois da operação foi que encontrei uma bolsa ao meu lado direito. Quando perguntei à enfermeira o que era aquilo ela me disse que era um coletor de fezes pois eu as estaria eliminando por um buraco feito na minha barriga. Aquilo foi um choque, mas quando o médico veio me visitar e declarou que eu iria viver assim permanentemente quase desfaleci. Ele nunca tinha me falado sobre isto. Eu também tinha uma amante. Ela não pôde ser a minha acompanhante enquanto estive no apartamento a fim de evitar escândalo e ódio por parte dos meus familiares. É quinze anos mais jovem do que eu, mas foi a única mulher com quem me realizei sexualmente. Vinha me visitar todos os dias; evidentemente, sempre em ocasiões não coincidentes com as raras visitas da minha mulher e das minhas filhas. Confessou-me que chegou a voltar diversas vezes da porta da enfermaria por causa disto. Entretanto, desde quando contei a história da tal bolsa que seria, a partir de então, minha eterna companheira, minha amante deixou, subitamente de me visitar.

Agora que estou chegando ao fim, concluo que não fiz nada do que prometi, isto é, contar o meu tormento desprezando a ordem cronológica dos fatos em detrimento daquilo que considerava mais importante. Com efeito, que diferença faz estar morrendo na suíte de um hotel cinco estrelas ou no catre imundo de uma favela promíscua? Que importância tem ter perdido ou não a minha amante? Que tipo de relacionamento eu poderia ainda vir a ter com ela a não ser uma cadeia de sucessivas humilhações? Que conseqüências trágicas eu poderia esperar por ter perdido todos os meus bens materiais? O único “bem importante” que ainda me resta é este fiapo de vida destituído de quaisquer resquícios de esperanças.