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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

O Broco

 

Já tinha sessenta anos e a função mais graduada que teve na vida foi aquela que exercia no momento: carregar o dia inteiro, postado na Praça dos Voluntários, uma placa com os dizeres: “compra-se ouro”. Ninguém sabia o seu nome; era conhecido apenas como “O Broco”. Numa certa manhã sentiu subitamente muita dor de cabeça, dormência no braço direito e tonturas. Sentou no fio de pedra, apoiou nos joelhos os cotovelos, cruzou os braços e sobre estes reclinou a cabeça. Permaneceu nesta posição muito pouco tempo; logo depois caiu de costas em cima da calçada e começou a vomitar e a se bater como uma galinha a que se puxa o pescoço. “O Broco tá morrendo” – disse um companheiro de “profissão” sem saber pra quem falava. Transeuntes passavam apressados e olhavam com indiferença; alguns nem isto. Os seus companheiros, os vendedores ambulantes e os desocupados formaram um círculo em torno dele; queriam prestar algum socorro, mas não sabiam como fazer.

Não tinha casa; não tinha nenhum lugar pra onde ir, não tinha parentes a quem comunicar a sua crise. Dormia em qualquer lugar: nos bancos das praças, debaixo dos viadutos, em cima das calçadas. Alimentava-se de restos de comida que encontrava no lixo e se vestia de trapos. Trazia a face e os pés sempre inchados devido a uma doença crônica dos rins. Sabia também que tinha pressão muito alta porque alguns estudantes de medicina instalaram certo dia uma mesinha na praça exclusivamente para medir a pressão de quem quisesse. Disseram-lhe que devia procurar um médico para lhe receitar algum remédio e que deixasse de comer sal. O Broco disse “tá certo”, mas havia dias em que, nem que ele quisesse, não havia sequer o próprio sal pra ele comer, que dirá comida sem sal. Não tinha parentes e nem amigos. Comunicava-se apenas com os seus companheiros também portadores de placas “compra-se ouro” e com os seus “empregadores” a quem encaminhava alguém desesperado por dinheiro e que estivesse disposto a vender uma aliança, um anel um par de brincos de ouro por menos da metade do valor. Sobre esta transação, quando havia, lhe pagavam cinco por cento e isto era toda a sua renda.

Tentaram encontrar algum dono de automóvel que se dispusesse a conduzi-lo para o Pronto Socorro, mas ninguém se ofereceu. Pegaram-no pelas pernas e pela cabeça e meteram-no num táxi. O taxista perguntou quem iria acompanhá-lo e quem pagaria a corrida. Como ninguém soube responder nem uma coisa nem outra, tiveram de retirá-lo de dentro do carro e pô-lo de volta no mesmo lugar. Um dos seus companheiros ligou de um orelhão para o 192; portanto, não havia mais nada a fazer, exceto esperar. Neste exato momento aproximou-se uma mulher aparentando cerca de 45 a 50 anos e tão maltrapilha quanto ele, embora exibisse um semblante de gente sadia; sentou na calçada, levantou-lhe a cabeça, pô-la sobre as suas coxas e passou a lhe afagar o rosto com uma das mãos, enquanto com a outra alisava seus cabelos. Ele parou de se bater e sorriu levemente. Veio a ambulância do Corpo de Bombeiros, puseram-no numa maca e já iam dando partida quando ouviram a mulher gritar que aquele era o seu marido; que ela tinha de acompanhá-lo. O Broco nunca foi casado. Cerca de um mês depois foi visto portando o placar “compra-se ouro”. Estava menos inchado, mais limpo, menos maltrapilho. Todas as pessoas que o conheciam da Praça dos Voluntários e assistiram ao seu ataque dizem que os médicos salvaram a vida dele. Não foi. Quem salvou vida do Broco foi um milagre. O milagre do amor.