Silas Correa Leite
A mídia banalizou Carlos Drumond de
Andrade
Por ocasião da data
que corresponderia ao seu século de vida, se estivesse vivo no
findar do ano passado, o país todo sofreu - sob o foco e a febre da
mídia - um verdadeiro "Ano Drumond", então vivenciado como nunca se
viu antes, tornando repentinamente (e sem fazer ao seu estilo e
gosto) um poeta Cult bem marotamente algo Pop.
Curto e grosso:
Banalizaram Drumond.
O que deveria ser um
confeito de justíssima homenagem, virou uma espécie assim (como se
diz lá em Itararé) de "carne de pescoço". No programeco brega de
rádio, tava lá o locutor conservador recitando o bendito "E Agora
José?". Ao fim do sem seca Jornal Nacional, cada dia era uma
descoberta bem espúria dessa invenção chamada poesia, banalizada até
atropelos e incorreções no imediatismo de últimas horas.
Era criança
bocejando ao declarar não entendendo patavinas a tal "Pedra No Meio
do Caminho"; era um ou outro poema do velho mestre de Itabira
musicado às pressas e cantado mal-e-mal num horror pseudopop
tamanho. Ou ainda uma professorinha desses quintais alhures querendo
fazer jogral com a poesia-crônica de um Drumond extremamente
subjetivo e com sua poesia de contradições e enluos, pouco
convencional. Falando sério: aqui e ali, foi duro de agüentar. Em
alguns casos até mesmo mataram novamente o Drumond que eu adoro.
Isso quando não,
também no açodado do momento, um jornalista meio babaquara recitando
seu repertório de um Drumond velho ou água-com-açúcar (nem tudo
pode ser perfeito), quando não, trocando um poema de outro poeta
pelo acervo de Drumond, ou ainda, pior, declamando uma croniqueta
apócrifa dizendo que era um mimo de Drumond, quando era
clandestina, falsa, piegas. Haja paciência.
Claro que Drumond é
um dos dez melhores poetas do Brasil em 500 anos, para dizer o
mínimo, claro que ele ser lido e cantado em verso e prosa é uma
beleza, tudo isso se não fosse mais um enviesado da mídia não tendo
mais o que fazer, o que criar, o que investigar (como as falcatruas
da Cultura e Educação no reino inumano do tucanato) resolveu colocar
o poeta da pedra no enfoque de tantas honras e também de tantos
padecimentos vernaculares e constrangimentos de todas as formas
inimagináveis.
Gosto de ler poesia,
não de ouvi-las declamadas ou teatralizadas. Drumond era de um
intimismo universal, mas ainda assim poetaço de de ser lido,
curtido, alimentando-se homeopaticamente com suas jazidas, não com
enxurradas de homenagens e veiculações bobas querendo procurar no
Drumond o que nem mesmo o Drumond se sabia, muito menos a metáfora
pedra de seu caminho como investigação de rupturas ou jogo de
palavras cruzadas, até porque, ele era mesmo um trocadilhista de mão
cheia e com fino humor irônico no tranversal de sua cabeça única.
Assim, acordar
Drumond, beber Drumond, comer Drumond, ver a empregada com o
livro rifado do sebo dele, ver o cidadão de rua citando-o porque
ouviu no decoreba do filho por força da imposição do open doping da
mídia, foi um desespero. Pobre Drumond.
Talvez nem
comemorasse mesmo o aniversário se fizesse vivíssimo o centenário em
carne e osso e pedra, mas saber-se atacado de todas as formas,
lambido pela fama temporária, ocasional e tendenciosa (para dizer o
mínimo), depois certamente cair no esquecimento (brasileiro tem
memória curta) foi muito chato.
A pessoa dúbia do
Drumond. Quem não é? A filha com nome de flor. A mulher mal
reconhecida. A amante (quem?) que talvez fosse e seria, no entanto,
contudo, todavia, porém...ninguém sabe, ninguém viu. Chutes. A vida
em cargo público. As amizades em verde-amarelo. O seu lado coisa, o
seu lado socialista. Os amigos mineiros e suas panelas de ferro. As
entradas e bandeiras. Até um estátua fizeram pra ele num calçadão
chique do Rio entojado de um ocasional turismo bocó com seus piscinões de águas pardas. Foi um angu de caroços. Que tristeza.
Drumond que faria
cem anos em 30/1202, da Rosa do Povo ao Farewell, das análises
certinhas pra boi dormir, às falsas conversas fiadas dele, o que ele
quis desdizer no que disse, os erros e acertos, as iluminuras e a
tez chão. Aventuras e lambanças. Ave Drumond.
Isso para não dizer
das açodadas imperfeitas pajelanças de ocasião, com a mineiridade
forte da mídia trocando alhos por manjedouras, momentos por
difusões, créditos por invencionices, sempre, claro, tudo muito bem
roteirizado ao sabor do vento favorável, no oportunismo dos
entrelaços. Sai de baixo.
O sujeito empírico
da persona da Drumond. Ele era só o que era?. Ou mal se conduzia
entre o ser de si, os self de um não-lugar e o pensar um humanismo
de resultados? E o lado sombra de Drumond? Reflexões e alusões. E
ainda bobas ilações do arco da velha.
Drumond de terno e
gravata, Drumond de sonhos e esperanças. Um vaidoso Drumond oficineiro no tear de seu íntimo revisitado, sempre, a poética
indizível da contradição, a alma obscura - ou só confete no
palavreiro, com o vetor irônico de seu lagar: as caras e as
coragens... Afinal, que Drumond há em Drumond? Decifra-me e eu te
devoro...
Aquele só nosso, que
amávamos como um butim especial, de poucos, de especiais, sentidores
e sensíveis, tornou-se uma aventura popularesca sob o manto diáfano
da fantasia charlatã, e de uma mídia que gosta de datas, pontos,
spot light, camarins e coxias, e pouco de difundir a cultura
literária, principalmente a poesia de qualidade propriamente dita.
A
melancolia-angústia de Drumond. A pá de cal sobre todas as
tentativas de revelar seu lado avesso. O seu sentido plural-comuntário de vida, sem verniz político assumido sob uma as/piração
explícita e prático-funcional.
O Drumond faquir
nos arames e pregos de sua teia excepcional de vivendas e noiteadeiros. Um
Drumond lúcido, por isso mesmo brigando com
palavras, cortando-as, interrompendo fluxos e rebites emocionais,
para tocar o cerne do humanus enquanto finito bicho também. Um
Drumond ora agnóstico, ora no sagracial de sua inspiração
privilegiada tocando os euses
Quem era Drumond?
Se ele soubesse, não seria poeta, claro. Pior: a mídia entrando de
roldão em sua eventual magna data, deu um banho de inversão de
valores, mesmices repetitivas, tocou fios pouco críveis, popularizou
a banalidade, alimentou lucros, impulsionou curiosos a beberem do nectar dos deuses engodado pelo furacão
Drumond, enfim, a sua bela
poesia foi virada de cabeça pra baixo, e pouco valoraram mesmo da
qualidade dele como criador, de seu fazer poético, de sua alma nau
procurando os fungos desse mundo tão conturbado antes dele, e,
certamente ainda mais tenebroso e amoral, com lucros injustos,
feudos palaciais, riquezas impunes - muito ouro e pouco pão - depois
dele, principalmente por causa das camufladas mineirices políticas
liberais de ocasião, a partir de historicidade aprendidas lá nos
idos das trevas da inquisição, das derramas e barrocas, das fugas de
escravos a argumentações ilícitas nos clubes dos egos, até esses
tempos em que uma data manda mais que o conteúdo em si, em que o
nome foi pop, quando, realmente, o seu esplêndido material de
trabalho ainda fica restrito a feudos editoriais e ainda assim a
preços exorbitantes.
Banalizaram
Drumond. A Mídia em geral exagerou nas doses do óbvio ululante. Nem
por isso deixarei de amá-lo, claro. Mas, confesso, por esses dias de
quarentena - até que o esqueçam, que o deixem em paz - vou voltar a
ler Rilke, Neruda, Lorca, Yets, Ezra, Pessoa, Silvia Plath, e, das
magistrais pratas da terra brasilis, João Cabral de Melo Neto,
Manuel Bandeira, Castro Alves, e outros tantos.
E dos vivíssimos e
saradinhos, Manuel de Barros, Carlos Nejar, Soares Feitosa e Ledo
Ivo, além dos novos como Lau Siqueira, Erorci Santana, Ana Peluso e
tantos outros inventores do inexistente...
E, fazendo essa
espécie de ocasional retiro espiritual pós-dumondiano, se alguém for
louco de, num apurado de falsa cultura de ocasião, me recitar na
bucha "E Agora, José?", vou guardar meus maus bofes, curtir minha
biles cervejiana e berrar, cobrando do próprio homenageado:
E agora, Drumond?
Leia Carlos Drummond de Andrade
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