Antônio Carlos Secchin
Antônio Carlos Secchin
entrevistado por
Luís Antonio Cajazeira Ramos
Luís Antonio Cajazeira Ramos: — Em sua
bagagem para três dias em Salvador, apenas seus livros de crítica
literária: João Cabral de Melo Neto e Machado de Assis. Você não
trouxe sua poesia. O crítico é mais importante do que o poeta?
Antônio Carlos Secchin: — O crítico
acha que sim, mas o poeta pensa o oposto. No fundo, acho que ambos
estão certos e errados. A poesia (pelo menos pretensamente) costuma
invadir a linguagem do ensaísta Secchin, e um olhar autocrítico
severo nunca abandonou o poeta Antonio Carlos.
LACR: — Sua tese de mestrado tem como
objeto genérico a mesma do doutorado: João Cabral. Por quê?
Comodismo, identificação, questão de método, idolatria?
ACS: — Costumo dizer que, como estudo a
obra dele há mais de 20 anos, em breve serei o primeiro cidadão a
reivindicar junto ao INSS uma aposentadoria em João Cabral. Faltou
acrescentar que, além das teses de mestrado e doutorado (que,
juntas, formam o livro João Cabral: a poesia do menos, TOPBOOKS),
dediquei a ele o pós-doutorado, e preparei as edições dos Primeiros
poemas (Faculdade de Letras da UFRJ) e a coletânea Os melhores
poemas (Global). Quando analiso sua obra, a imagem que me ocorre é
esta: um obsessivo falando de outro. É por aí, suponho, que ocorre
uma identificação.
LACR: — As releituras exaustivas da
obra cabralina foram transferidas para sua criação poética? Se não
(ou se sim), onde residem suas influências?
ACS: — Minha poesia é completamente
diversa da dele. Estudo os seus textos para aprender como ele faz,
magistralmente, a poesia que eu não devo nem quero fazer. Um grande
poeta não costuma deixar herdeiros, e sim produzir epígonos. A luz
que vem de lá ofusca os que desejam chegar muito perto; a saída,
então, é inventar outros caminhos. Um poeta apenas mediano abre
espaços que não explora a fundo e, aí sim, permite que os sucessores
levem às últimas conseqüências seus gestos desbravadores (penso aqui
em Mário de Andrade). O artista maior abre mil portas, mas as deixa
trancadas quando vai embora.
LACR: — Você é um jovem, um doutor
antes dos trinta, trabalhado desde cedo para uma leitura crítica da
literatura e da cultura. Essa formação acadêmica bitola ou alavanca?
ACS: — Acho quase impossível aspirar a
ser um bom escritor sem estar provido de um lastro extenso de
informação, acadêmica ou não. A crença ingênua na palavra “pura”,
“espontânea”, ruiu com o Romantismo. Hoje em dia, um poeta
“espontâneo” está condenado a repetir, à revelia, o discurso dos 570
poetas que ele não leu. A ignorância não lhe serve mais de alibi.
Sou professor universitário desde os 23 anos, e não sei em que outra
atividade profissional eu encontraria tanta receptividade e estímulo
para me ocupar do que realmente me interessa: o diálogo entre a
palavra e o mundo.
LACR: — A crítica acadêmica ou em
profundidade perdeu o pouco espaço na mídia, hoje ocupado pelo
resenhismo polivalente. Há uma crise da crítica?
ACS: — O que vem ocorrendo é uma danosa
e artificial segmentação do discurso crítico. Em geral, quando se
escreve para a universidade, o tom se torna pesado, pedante,
capricha-se no vocabulário como se palavras mais arrevesadas
conferissem profundidade a pensamentos muitas vezes rasteiros. Por
outro lado, o espaço da mídia banaliza-se com palpiteiros de toda
espécie, que mal sabem distinguir entre um verso e uma linha. As
resenhas se transformam em trombetas encomiásticas e se confundem
com releases das editoras, numa espécie de ação entre amigos para
inflar a vaidade dos autores. O ideal é que o texto escrito para os
jornais não abdique de seu caráter crítico a tal ponto que possa —
por que não? — também circular na Universidade. E que o texto
produzido na Universidade, se transposto para um periódico, abdique
da opacidade de linguagem, caso deseje surtir um mínimo de efeito.
LACR: — Ninguém fica imune à salada
cultural contemporânea, à televisão, ao espetáculo, à globalização,
ao banal. Como integrar isso tudo com trabalho intelectual e criação
literária?
ACS: — Não penso que seja possível
ficar imune à globanalização da cultura. O simulacro, o trivial, a
bijuteria e o pensamento prêt-à-porter são realidades tão ostensivas
quanto o foram os saraus e os lampiões no século XIX. Num e noutro
caso, não houve impedimento para que se produzisse boa e má
literatura. Descarto o apocalipse e não engrosso o coro dos
contentes. O talento, quando existe, desafina o coro e adia o fim do
mundo.
LACR: — Alguém escreveu ficção no
Brasil depois de Machado de Assis? O que é a ficção brasileira?
ACS: — É alguma coisa dividida entre a
família de José de Alencar, composta dos querem “explicar o Brasil”,
e a família dos Assis, que querem “se explicar, no Brasil”. Ambas
deram seus belos frutos: Jorge Amado, na primeira, Clarice, na
segunda. Sem falar (viva a nossa mestiçagem!) nos rebentos híbridos:
Graciliano, Guimarães.
LACR: — Harold Bloom aponta dois
poetas, Pessoa e Neruda, de culturas periféricas, como os do século
XX, o que muitos consideram exotismo Há lugar no cenário mundial
para a poesia lusófona, particularmente a brasileira?
ACS: — Infelizmente, não. Ninguém lê em
português, tradução de poesia é quase impossível e o retorno
comercial é nulo. A fortuna de Pessoa se deve ao fato de que uma
parte de sua estupenda obra se expressa numa “poesia de pensamento”,
de índole mais filosófica e com menos jogos verbais explícitos (
veja a “Tabacaria “, por exemplo), o que a torna mais suscetível de
ser bem traduzida. Perde relativamente pouco, ao contrário do que
ocorreria com um Jorge de Lima, que perderia tudo.
LACR: — Depois de meio século do
Concretismo como poesia oficial, para que direção caminham os
horizontes da poesia brasileira?
ACS: — Não penso que o Concretismo
tenha sido a poesia oficial das últimas décadas. A grande
referência, mesmo sem manifestos ou palavras de ordem, foi João
Cabral. Que ele tenha sido erigido em patrono de algumas seitas não
diminui Cabral, nem legitima as seitas. De minha parte, entendo o
poeta como um solitário profissional. Dois poetas juntos já vira
complô; três, academia. O poeta deve ser, literalmente, um
desorientado e um desconfiado da direção que lhe apontam. Se já sabe
para onde vai não vale a pena chegar lá.
LACR: — O que é que tem dentro do
acarajé, além de vatapá, camarão, pimenta, ACM e Carlinhos Brown?
ACS: — Segundo o Aurélio, tem massa de
feijão-fradinho frita em azeite de dendê. A poesia também é uma
massa mestiça, produto de várias misturas, embora nem todos os
ingredientes que você citou sejam palatáveis para o meu gosto.
Antonio Carlos Secchin é poeta e ensaísta, autor de 6
livros, dentre os quais Poesia e desordem (1996) e João Cabral: a
poesia do menos (2a ed. 1999). Doutor em Letras, é Professor Titular
de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ.
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