Alexei Bueno
Castro Alves - Herdeiro do
entusiasmo
in Folha de São Paulo, 16/03/97
A presença de Castro Alves, no sesquicentenário que
agora se comemora, mantém-se através do país com uma vitalidade
quase física, a mesma, de resto, que acompanhou o seu decenário de
morte, em 1881, bem como os seus cinquentenários e centenários de
morte e nascimento em anos diversos.
Castro Alves é, no Brasil, o poeta por antonomásia,
assim como Eminescu ou Púchkin, para ficarmos entre os românticos, o
são para a Romênia e para a Rússia. Em países que não tiveram ou não
puderam ter uma Idade Média e uma Renascença literárias, é
geralmente entre os românticos que surgem esses vultos emblemáticos.
Se Gonçalves Dias conserva uma primazia patriarcal na nossa poesia
de nação independente, a grande presença continua sendo a de Castro
Alves, ainda que não pareça estar de todo esgotada a bizantina
disputa de prevalência entre os dois.
A Gonçalves Dias, é inegável, devemos cerca de uma
dezena de obras-primas seminais da nossa poesia romântica, ``I-Juca-Pirama''
acima de todas, o maior poema do nosso romantismo e talvez de toda a
poesia brasileira, obra de uma ímpar sabedoria dramática e
estrutural. Sua correção de sintaxe, por uma ótica lusitana, é
insuperável entre os poetas da escola, bem como o seu exato senso de
medida.
Castro Alves difere disso tudo. Sua linguagem é a
mais acabada instalação de uma dicção nacional dentro do nosso
romantismo. Parte de sua poesia, sobretudo a inicial, nasce sob o
signo de um arroubo que nem sempre impede a deselegância e o mau
gosto. Por outro lado, nele e na geração que o precedeu, os últimos
arcaísmos lexicais que ainda prejudicam Gonçalves Dias desaparecem.
O que define a superioridade de Castro Alves, dentro desse quadro, é
a criação, entre os 17 e 24 anos, de 40 ou 50 poemas que são o
apogeu da poesia romântica, não só no Brasil como na língua
portuguesa.
De ``Mocidade e Morte'' a ``O Fantasma e a Canção'',
de ``O Vidente'' a ``Saudação a Palmares'', de ``Vozes d'África'' a
``Coup d'Etrier'', não há como reproduzir aqui a lista. Do grupo
clássico dos nossos grandes românticos, Gonçalves Dias, Álvares de
Azevedo, Casemiro, Varela, Laurindo Rabelo, Junqueira Freire, apenas
Castro Alves não é um poeta para antologias mais ou menos numerosas.
A obra existe, sem ser necessário dela se extrair grandes momentos.
Com tudo que tem de desigual, o conjunto formado por ``Espumas
Flutuantes'', ``Os Escravos'', ``A Cachoeira de Paulo Afonso'' e as
poesias coligidas é, de longe, a maior realização da poesia
romântica brasileira. A primeira superioridade evidente de Castro
Alves reside na riqueza metafórica. Bem longe do uso de simples
comparações disseminado na escola, toda a sua poesia se constrói
sobre a metáfora, às vezes em encadeamento incessante, como vemos em
``A Queimada'':
``A floresta rugindo as comas curva...
As asas foscas o gavião recurva,
Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas,
Galopando no ar.
E a chama lavra qual jibóia informe,
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas
Que espadanam o sangue das cascatas
Do roto coração!...''.
Inseparável da metaforização, como aí está, a
pletórica e barroca expressividade verbal (no quarto dos versos
citados chega a se reproduzir o eco dos troncos que se partem), bem
como o cromatismo e a plasticidade que fazem de Castro Alves o nosso
Géricault ou o nosso Delacroix. E sempre a reconstituição sensorial
por meio da metáfora:
``Quando a fanfarra tocas na montanha,
A matilha dos ecos te acompanha
Ladrando pela ponta dos penedos''.
Específica também do poeta é a capacidade de corporificar
metaforicamente os conceitos mais abstratos:
``Sim! quando o tempo entre os dedos
Quebra um século, uma nação,
Encontra nomes tão grandes
Que não lhe cabem na mão'',
em que, no ineditismo da imagem violenta,
reencontramos o velhíssimo topos da imortalidade dos grandes homens.
Há poemas construídos inteiramente pela sucessão de metáforas
sugeridas por um mesmo objeto, como em ``Aquela Mão'', de um
fetichismo obsessivo. E há, finalmente, os grandes momentos de união
sinfônica de todas essas estesias metafóricas, plásticas e sonoras,
como na abertura de ``O Navio Negreiro'' ou no final de ``A
Cachoeira de Paulo Afonso''. Em certos momentos, a magia verbal do
poeta nos aproxima do simbolismo:
``Vem! formosa mulher -camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas'',
ou neste verso, que chega a lembrar a arte de Camilo Pessanha:
``Sobre as névoas te libras vaporoso...'',
do último dos sonetos de ``Os Anjos da Meia-noite'', os maiores do
romantismo brasileiro.
Castro Alves é, coisa muito coerente num romântico,
um poeta da altura, da ascensão fulminante, e nisso só se
aproximaram dele na poesia brasileira o Cruz e Sousa da fase
apocalíptica e dos últimos sonetos e o Augusto dos Anjos dos poemas
longos. A maior traição à exata compreensão de uma arte como a sua é
o uso de conceitos estéticos de um classicismo racionalista, para um
poeta de uma linha que é justamente o oposto disso, e à qual se
filiam, além da tradição hínica grega, o barroco, o romantismo, o
expressionismo e o surrealismo.
Mário de Andrade, no conhecido e indefensável texto
sobre Castro Alves, antepõe-lhe o anseio de cultura de Álvares de
Azevedo e a vontade de organização de Gonçalves Dias, exemplos,
aliás, para a literatura brasileira. Como se toda a grande arte
fosse obrigatório fruto de uma postura estudiosamente culta e
organizada (o que nem todas as vidas propiciam). Não creio que de
ordem e aplicação tenha surgido a arte de um Rimbaud, por exemplo,
mas pode lá um país subdesenvolvido libertar a sua literatura dessas
intervenções messiânicas?
É estranho que um homem da cultura de Mário de
Andrade, mesmo vestido com a casaca de Salieri, tenha tentado
ignorar a totalidade de uma das linhas primordiais da poesia
ocidental, a que vem do conceito grego de ``mania'', do entusiasmo,
etimologicamente falando, passa pela inspiração romântica e chega,
em plena origem da poesia moderna, ao ``déréglément général de tous
les sens'' (o desregramento geral de todos os sentidos), na verdade
uma única e mesma coisa. Mais lamentável no famoso ensaio, em
verdade, é a questão da poesia abolicionista calcada na piedade e
não na compreensão sociológica do problema, o que não merece nem
comentário. A verdade é que a inesgotável riqueza da poesia de
Castro Alves, a amorosa, a lírica, a épica, a social, não foi nem de
longe suficientemente explorada pela crítica brasileira.
Continuamos, à receita disso, com o homem e o poeta,
intocados. O primeiro, morto aos 24 anos após uma vida vertiginosa,
não teve tempo de decair de sua beleza física e moral de herói
byroniano, nem de se converter a algum neoliberalismo do século
passado. O segundo segue perpetuamente lido, para grande deleite de
todos os que conhecem português. Numa época em que a poesia oficial
é uma espécie de secreção dos departamentos de letras das
universidades, a grandeza fulminante de Castro Alves figura como uma
consolação e um escárnio.
Alexei Bueno é poeta e tradutor, autor de A Juventude dos Deuses
(Topbooks).
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