Thiago de Mello
Fortuna crítica: Erorci Santana
Uma Vida e Seu Ofício
Claridão e
antemanhã. O projeto da eternidade está presente em De uma vez por
Todas, muita poesia e alguma prosa, substancioso volume publicado
pela Civilização Brasileira, da lavra e safra boa, supra-sumo de
Thiago de Mello; escritor por ofício, dom e precisão, caboclo — como
ele mesmo faz questão de frisar — nascido em Barreirinha.
Barreirinha? Pequena cidade plantada há mais de um século no coração
da floresta amazônica, a 400 quilômetros de Manaus, umas vinte horas
de viagem pelo baixo Amazonas, habitada por três mil almas, metade
delas crianças. Entre estas, o próprio poeta. Para esse lugar, senão
inóspito distante das grandes aglomerações humanas brasileiras,
tornou o poeta, desgarrado em tantas andanças, para continuar a
laboração de sua obra, comprometida com o ideal de liberdade,
centrada no ilibado amor pela humanidade. Aí o poeta reafirmou sua
singular essência. Aqui, no coração do livro, o veterano-poeta mais
despoluído de nossos tempos mapeia as circunstâncias de sua vida,
faz um inventário de seus setenta anos, às vezes de modo explícito,
às vezes subjacente, mas sempre como uma forma de homenagem ao ganho
do aprendizado, ofertando a rosa despudoradamente aberta dessa vida
aos seus amigos, aos seus leitores.
Há os acenos de
uma paradoxal despedida, já evidenciada no próprio título das obras
e nos poemas reunidos sob os capítulos de A Metáfora Nua, onde o
poeta revela os fundamentos de sua poética, e em Travessia, onde o
balanço da vida fica mais evidenciado e comovedor, pois diz mais à
vida da gente que à do próprio poeta. É como se encerrasse de vez o
episódio de penas e alegrias em que consiste a vida e sua mais exata
expressão, a poesia e seus desdobramentos: a obsessão pela palavra,
de que é padecente de todo poeta, ente que lambe o verbo e depois se
alucina, no dizer daquele outro anacoreta, o Manoel de Barros, o
feral combate corpo-a-corpo travado entre o vate e a palavra.
Despedida
paradoxal porque, mais que resignação e abandono, sente-se a
afirmação de sua condição de poeta e de homem vivíssimo e militante
pela causa de uma ética, um feixe de valores perdidos ou jamais
sedimentados, instauração da confiança no amor e na utopia.
Assumidamente, essa despedida circunscreve-se à mensagem da palavra
publicada, a mensageira, que passa a existir em seu próprio vôo,
como se lê no emblemático poema de abertura intitulado O Livro, em
que o poeta principia assim:
"Este livro, de um homem e sua vida,
que nada traz de novo, além do amor,
me despede da mágica aventura
de dar sonho sonoro à humana argila
e transformar estrelas em palavras:
mistura de alegria e agonia."
Mais adiante,
no mesmo poema, o poeta declara que jamais poderá se apartar da
poesia, de seu canto "a serviço do amor, lucidamente". Nem tampouco
da vida, que agarra "com as garras de todos os sentidos, / o que ela
ainda me dá, sempre encantada."
Há também um
outro aspecto a ser considerado. Essa poesia quer-se signo de
redenção pela via do resgate dos valores da infância, a reafirmação
da pureza. Tem, por isso, o condão de comover, num tempo em que as
cruéis amarras dessa civilização plutocrática botaram no limbo o
sentido mais espiritual, mais lírico da vida. Mestre consumado,
poeta constelar, tanto no sentido da ampliação dos temas quanto
naquele do efeito fulgurante, a maneira de ver, dizer e viver a vida
faz de Thiago poeta da doçura, o grande arauto da fraternidade,
mesmo quando revela sua indignação diante do "riso dos malfeitores"
/ riso de perversas cores".
E justamente
por situar-se num extremo onde a idéia do ser veste-se de dignidade
e preito, essa poesia não aceita uma abordagem fria. Ela constrói um
universo ideal e demanda a participação do leitor nessa construção.
Tampouco aceita adereços na sua qualificação. Lançar mão, por
exemplo de qualquer instrumental teórico para falar dessa latente e
pujante beleza seria sua aniquilação. Há que entrar com humildade,
reverência ou inteligência emocionada nesses poemas, que não são
mais fragmentos mas simbiose da vida e da arte, como declaram estes
versos:
"Este poema sou eu. Todo o livro sou eu.
Como sou eu os cabelos que
enbranqueceram,
como as safenas que o Jatene tirou da perna
e hoje vivem felizes juntinho do meu
coração."
E o que é a
vida de qualquer pessoa senão lição, mesmo que avessa e tortuosa.
Valeu observar que não há culpa nem dor nesse inventário. Daí não
ter espaço para a vazão do fingimento apontado por Fernando Pessoa.
A Arte e o
fluxo vital se entrelaçam. É preciso dizer que Thiago de Mello faz
parte e é o herdeiro de uma plêiade de poetas que fazem questão de
não marcar diferença entre o ato de viver e o de escrever,
emprestando à arte da poesia o substrato da alma. São esses que
buscam a eficácia poética na maneira de dizer, mais que na virtuose
da palavra, de uma dicção poética antagônica àquela que busca no
adorno e na figuração verbal e metafórica, na sofisticação mental e
na profusão imagética a sua razão de ser. Entre esses poetas, irmãos
em armas de Thiago, está o mais modelar, Manuel Bandeira, com quem
consagrou grande amizade. A pontada simbiose da vida e da arte fica
melhor evidenciada na primeira estrofe do poema A Difícil
Transparência:
"Meu poema está construído
com a matéria verbal dos homens
para os quais escrevo.
Arrumo por música o verso
ao qual dou minha cadência,
quando é preciso dizer
o que em mim lateja límpido
no pensar e no sentir."
Essa busca da "claridão"
poética é perseguida em cada gesto da escrita. Ainda em A Difícil
Transparência se revela esse zelo, esse cuidado com a percepção do
leitor:
"De mim digo que cuido
(...)
por mais que saiba que toda palavra,
mesmo a que parece a mais inocente,
é cheia de bocas e de olhos.
Metáforas são cheias de faces,
mas que simples sejam,
como as escamas de cores fugazes."
Por fim, à luz
dessa poesia limpa, saudável, luminosa e libertária, deplora-se aqui
a danação dessa forma de arte na mão de poetas obcecados por
ampliá-la ao imponderável, ao incognoscível, "os impenetráveis",
denunciados por Thiago na sua nunca suficiente celebrada cordura.
Desespero muito comum nesse século presunçoso e vanguardeiro, essa
obsessão pelo novo levou muitos poetas à garimpagem dos nadas, à
anti-poesia, à não-mais-poesia, articulação do verso já fora de seu
reino, fuga suicida de seu vasto império de possibilidades. Seja
isso a recusa ou a evasão do paraíso, uma célebre maneira de chegar
ao inferno da inexpressividade.
Mesmo que De
uma vez por Todas signifique, como faz crer, uma despedida do livro,
fica a voz ardente de Thiago de Mello dentro do peito, um bastião
contra os cínicos que preferem enganar a favor do apocalipse.
Leia a obra de Erorci Santana
|