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Sérgio Alcides




Sebastião Uchoa Leite: poesia à espreita


29.11.2003
 

 

Sérgio Alcides

Acabou a espreita para Sebastião Uchoa Leite, morto quinta-feira passada. Continua a nossa, a dos vivos, a dos leitores. Ele partiu para seu encontro com o verme: uma oportunidade de ver-se, enfim: “Só / Com o / Pó / Miro a / Metade / Vivo o / Ver-me”. Enquanto isso, como ele diria, permanecemos restritos ao verme da consciência, e vamos roendo o que ele deixou escrito, em alguns dos livros mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do século XX e dos primeiros anos deste XXI.

A seqüência dos quatro últimos forma quase uma frase – reveladora de toda uma poética: A uma incógnita (1991), A ficção vida (1993), A espreita (2000), A regra secreta (2002). Antilírico, satírico e auto-irônico, Sebastião Uchoa Leite escreveu sob o signo da espreita sua pesquisa sobre a incógnita e secreta regra da vida, que termina por expulsar-nos dela. Mas, enquanto a morte o espreita, o poeta espreita a vida. E, através da leitura, nós também nos colocamos à espreita: do corpo, da cidade, do mundo – dos lugares onde a vida transcorre.

Poeta, tradutor e ensaísta, Sebastião nasceu em Timbaúba, em Pernambuco, em 1935. Estava radicado no Rio desde 1965, e vinha enfrentando na última década uma longa batalha contra uma doença cardíaca. Morreu aos 68 anos, poucas semanas depois de ver A regra secreta ganhar os R$ 30 mil pela segunda colocação no recém-criado Prêmio Portugal Telecom. Além de sua própria poesia, também deixa um legado importante com traduções impecáveis de autores como Lewis Carroll, Stendhal e François Villon.

O poeta teve a sua formação profundamente marcada pelo clima fervilhante do Recife nos anos 1950. Pertenceu a um grupo de jovens escritores e intelectuais que também nos deu, entre outros, os críticos Luiz Costa Lima e João Alexandre Barbosa. Sua estréia se deu em 1960 com o livro Dez sonetos sem matéria, publicado na capital pernambucana pela lendária editora artesanal O Gráfico Amador. Quem vê a apatia dos meios literários e editoriais nordestinos de hoje nem acredita na atividade e no vigor daqueles tempos anteriores ao golpe de 1964 e à expansão das redes de televisão do Sudeste.

Na época, a figura de poeta que se agigantava a cada publicação era o também pernambucano João Cabral de Melo Neto. Mais tarde, Sebastião ainda entrou em contato com o grupo dos concretistas de São Paulo, mas nunca aderiu completamente ao movimento de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Sua postura, sem ser reacionária, foi de independência. Isso permitiu que ele incorporasse contribuições importantes dos concretos, como a pesquisa formal associada ao anti-subjetivismo cabralino. Mas ao mesmo tempo o preservava contra possíveis ingenuidades do construtivismo estético, de sua exagerada confiança no reino da técnica e do progresso – que comprometeria o projeto poético de Sebastião, mais voltado para a corrosão do que para a construção.

De Cabral, o que ele guardou de mais valioso não foi tanto o arsenal de idéias fixas sobre o sertão e a forma pedregosa – trata-se agora de um poeta essencialmente urbano. O que Sebastião tem de mais cabralino é a recusa do sentimentalismo, a tentativa de solapar a cada verso a ideologia do individualismo, a unidade do “eu” e a pretensão de fazer do poema um reflexo das emoções de um vago “eu lírico”. Como em Rimbaud, em Sebastião o “eu” é sempre um outro, perplexo consigo próprio: “quando acordo no entressono vejo-me / como se estivesse fora de mim mesmo”. Esse encontro não costuma ser agradável: “é uma espécie de susto; / ali estou eu / parado como se fosse um outro / contratado para cometer um crime”. Como ele escreveu, numa veia mais cômica: “Sou meu próprio / Espantalho”.

Assim, a espreita do mundo é também uma espionagem pelo vazio interior – e o “eu” é sempre um suspeito. Nessa investigação, vem à tona a voracidade das pulsões e dos conflitos humanos, que ameaçam o autocontrole exigido pela civilização (e pela poesia). Inclusive porque o amor também nos espreita sem parar: “Eros / Não dispensa / Agarra / O que à garra / Compensa”. Daí que as cartas do Tarô particular de Sebastião sejam sempre, no mínimo, assustadoras (como o Vampiro, a Pantera, a Serpente), quando não repugnantes (como a Barata, o Rato, o Verme). Para ele, “todos nos identificamos com a solidão da fera, que não ataca por maldade, mas porque deve”.

Entronca aí todo um interesse satírico da poesia de Sebastião por clichês da cultura popularesca: as histórias de terror, os filmes policiais, o roman noir, o mundo kitsch. Faz parte de sua poética desmistificadora “sujar” a mão no imaginário contemporâneo do cinema e da televisão, para tirar a poesia de seu pedestal olímpico. Mas (ao contrário de seus atuais imitadores), o poeta consegue se apropriar de temas da indústria cultural sem se deixar absorver por ela, e sobretudo sem autocomplacência. Em Sebastião, a poesia se inocula, criticamente: “Não é possível pensar / a verdade / exceto como veneno”.

Às vezes, porém, o veneno é tão amargo quanto engraçado, e o humor negro é uma das melhores qualidades do poeta que pensava incessantemente no seu “pequeno fim”. Na tristeza de sua morte, ainda podemos rir do epitáfio que ele próprio escreveu para si: “Aqui jaz / para o seu deleite / sebastião / uchoa / leite”. É estranho, mas só agora podemos perceber o que essa “tirada” tem de, no fundo, belo – ainda que não saibamos ao certo o que é.