Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

Urariano Mota


 

Quando veio o amor *

 

As referências aos nomes das tuas amigas que eu falava, as pequenas histórias de fatos e interesses em mim, que eu te contava, todas eram franca e aberta mentira. Quando eu dizia, quando me perguntavas, que minha maior atração era por Selma, e a partir disto eu passava a exaltar, exageradamente, algumas das suas virtudes, pernas, olhos, por exemplo, o meu grande prazer era sentir tu desceres a falsa pretendida do ponto em que eu a erguia. Eu te dizia: - Um dia ela cruzou as pernas e eu pude ver boa parte das suas coxas. Que coisa bonita!, dizia-te. E tu, ato contínuo, jogavas-me de volta esta reação: - Besteira. Coxas por coxas, eu também tenho... e dizendo isto me exibias o que eu sempre desejara. Não sei se meus olhos se enchiam de luz, se deles lançavam-se flamas, mas ao vê-los naquelas horas, ao vê-los na minha perturbação, tu mais erguias a tua saia, e era simplesmente bestial, brutal, o modo como eu continha em mim o impulso de não te assaltar. Era simplesmente doloroso o esforço que eu fazia para não me denunciar, o quanto escondia o pênis por entre as pernas apertado, e, é natural, bem o notavas, o quanto meu interesse por Selma de repente ficava em silêncio.

Depois eu gaguejava, deves lembrar. Eu lamentava, nessas ocasiões, eu me lamentava somente para mim que não estivéssemos em uma funda e escura mata, eu e tu, e mais ninguém, sem perseguição e olhos de nenhuma sociedade, para que cercados apenas pela noite eu te pegasse nas coxas, no rosto, e te gritasse que não mais havia ou haveria Selma. Quando me exibias as coxas nessas ocasiões, era o mesmo que tu me chamares para ficar nu em público, num palco, diante de um auditório, e me prometeres, se eu assim ficasse, o troféu das tuas coxas. Mas o público não me deixaria isto, Carmem. O meu pecado não queria aquela recepção. Tu eras minha irmã, e por isso o meu pênis que se levantara eu o prendia, com força e sufoco eu o prendia, para que ele não arrebentasse, e fosse num arremesso louco pelo auditório até a tua profanação. Vejo-te ainda com a saia azul levantada, em coxas de raros pêlos, coxas entreabertas, enquanto a tua voz me chegava, como se de voz elas precisassem: - “Eu também tenho. Veja”.

Então eu te dava as costas, porque grande era o meu envolvimento. (Sabes o que é rejeitar o que mais se deseja? Sabes o que é jogar ao chão o prato que se quer abraçar? Sabes o que é expulsar de si o que se quer moldar no próprio corpo, sabes? Então sabes o meu dar as costas.) Talvez notasses a minha perturbação, acredito mesmo que sorrias às minhas costas, porque a tua voz mudava o timbre e o tom, o seu enunciado e a sua emissão, como se falasses por entre uma câmara que te cortasse as sílabas: - Eu ... tam...bém...te...nho! Devias estar a ponto de explodir, numa quente, calorosa, carnal e perversa risada. Eu caminhava a mal caminhar, e podia sentir a sombra do teu assalto às minhas costas, como se me abraçasses, como se friccionasses tuas coxas em mim, para que eu me virasse, e com o pênis em ponta eu te penetrasse. Eu sentia, eu via a nuvem do teu assalto. E então eu pedia a Deus baixinho, eu pedia à tua rival, à Santíssima Virgem Maria, pedia para que permitisse isto, mas que permitisse, eu pedia a Deus, com o arremesso do teu corpo sobre mim. Mas Deus, mas a Santíssima Virgem Maria, mas Nosso Senhor Jesus Cristo, estava escrito, apenas se associavam para me macerar, para me ferir com a tua voz entrecortada pelo riso, “vejas agora, vejas aqui as minhas coxas”. A Santíssima Virgem mais uma vez me provava, me mostrava ser inútil a minha pulsão. Pois mais uma vez Ela me dava o desejo e a impossibilidade da sua execução. Deus e a Santíssima impunham aos meus 15 anos uma senilidade precoce: a carnalidade e a vedação.

A segunda mentira, e agora mesmo eu sinto o teu perfume, me feres com o teu cheiro agora, quando te recordo nisto: a segunda mentira que eu te fazia era quando eu te levava os nomes de amigos e conhecidos que eu deixava a impressão de que te desejavam. Aí, para mais acabada mentira, grande era a minha perfídia. Que eles viessem a te desejar, se soubessem que te eram prometidos, era natural. Qualquer homem era um potencial desejoso do teu corpo. Ou da tua pessoa, como eu te dizia, para melhor perfídia. Mas eles não te desejariam nos termos em que eu te falava. Os termos eram meus, Carmem, e de terceiros eu me servia para te falar. Como nestes termos:

- Você já viu Gilvan?

- Não, eu ainda não notei ...

- Procure notá-lo. Veja como ele olha você.

- Sim, mas como?

- Ele come você com os olhos...

- Que é isso?

- É olhar desejando com os olhos, deixar a moça nua. Parece que ele adivinha você nua.

E assim dizia olhando-te com intenso fervor. Assim como os crentes conseguem o milagre pela Oração, e põem a origem do milagre na Oração, nas palavras da Oração, quando o verdadeiro milagre é a força que os crentes põem nas palavras da Oração, a fé, enfim, e este é o milagre, que consegue o outro, o milagre físico, palpável, que todos notam, assim como os crentes em prece com igual fé eu te olhava. Sim, a esta altura tu notavas o hipotético olhar de Gilvan no meu concreto olhar sobre o teu pescoço, o teu rosto, os teus seios. Um olhar que varria a tua intimidade. Que era ao mesmo tempo lúbrico e estético. Que bela fêmea, eu te dizia com os olhos de Gilvan. Sim, a esta altura tu percebias o olhar da fé, do desejo, porque por força dele, por força do seu milagre, a tua voz se quebrava de outra maneira, e te punhas quase chorosa, dengosa, mais sussurrante, quando me respondias:
- Eu acho que sei como é este olhar.


* De “Boa noite, irmão”

 

 

 

 

 

14.10.2005