Vássia Silveira
De médico e louco...
O Alienista é um dos mais extensos
contos de Machado de Assis e certamente um dos textos que melhor
retrata a veia irônica do autor. É certo que o discurso irônico
permeia toda a obra machadiana, mas, no Alienista, a ironia é usada
como um pincel forte com o qual o autor-narrador vai desenhando os
traços que acabam por fazer de Simão Bacamarte um personagem
risível, ‘vítima’ de um cientificismo ingênuo e inócuo.
Em uma das seis conferências Norton
que proferiu na Universidade de Harvard, em Cambridge, Umberto Eco
disse que “(...) Quando entramos no bosque da ficção, temos de
assinar um acordo ficcional com o autor e estar dispostos a aceitar,
por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come a Chapeuzinho
Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o
extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua
ressurreição). Imaginamos o lobo peludo e com orelhas pontudas, mais
ou menos como os lobos que encontramos nos bosques de verdade, e
achamos muito natural que Chapeuzinho Vermelho se comporte com uma
menina e sua mãe como uma adulta preocupada e responsável. Por quê?
Porque isso é o que acontece no mundo de nossa experiência (...), o
mundo real” (In: Eco, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994).
Não há dúvida de que é esse acordo
ficcional que garante ao leitor do conto de Machado de Assis a
bizarra esperança de que os ímpetos científicos do alienista - a
despeito da Ciência, que é “coisa séria, e merece ser tratada com
seriedade” –, serão freados. Há, portanto, em Machado, uma centelha
de piedade com seus leitores, um sentimento que o deixa mais à
vontade para cometer pequenas torturas como o fato do personagem
Simão Bacamarte não mostrar nenhum conhecimento – a não ser o
empírico – a respeito da Loucura. E é exatamente com esse sentimento
que mistura piedade, sarcasmo e muito humor que o autor realista vai
construindo sua crítica a um mundo que se mostrava rendido pelos
encantos da Ciência.
É preciso notar aqui, que o tema da
Loucura – essa senhora desvairada e sedutora – é recorrente na obra
machadiana. Kátia Muricy, por exemplo, apontou Quincas Borba (um dos
romances da fase madura de Machado de Assis) como ‘o mais
desencantado romance’ do autor. E justificou: “A começar pelo
título, que nomeia não mais o filósofo do humanitismo, o singular
amigo de Brás Cubas, mas o seu comovente cão. Mais acertadamente,
nomeia a lembrança do filósofo, indica o que restou de sua vida, o
seu legado: Rubião e Quincas Borba, o cão. Para um, as idéias só
irão se arranjar em cadeias delirantes; para outro, elas são menos
que ‘poeira de idéias’. O legado de Quincas Borba é essa ausência de
razão, na sandice ou na irracionalidade” (In: Muricy, Kátia. A razão
cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo,
Companhia das letras, 1988).
É claro que a loucura, como tema, é
tratada de forma diferente no conto e no romance acima citado. Em
Quincas Borba, Rubião se refugia na loucura por encontrar
resistências no novo mundo que a herança e a Corte do Rio de Janeiro
lhe descortinavam. Era um anacrônico, um deslocado. No Alienista,
porém, a loucura – ou o estudo dela - é antes de tudo uma arma com a
qual Simão Bacamarte cresce aos olhos da sociedade. Uma sociedade
ainda deslumbrada pelo poder e pela fama. Aqui, anacrônicos e
deslocados são os que não compreendem a árdua tarefa com a qual se
imbuiu o médico: descobrir, classificar e curar, com a ajuda da
Ciência, a insanidade dos homens.
E é exatamente pela mobilidade com a
qual se movem as demais personagens do Alienista que Machado vai
construindo sua feroz crítica a sociedade. Uma sociedade movida por
interesses mesquinhos – como no caso do boticário Crispin Soares ou
do barbeiro Porfírio. Considerado por muito críticos como o mais
importante autor realista brasileiro, Machado de Assis não poupou
nem mesmo a corrente na qual se inseria. Sim, pois não seria também
O Alienista uma crítica ao cientificismo tão em voga na ficção do
Realismo brasileiro? Antes de qualquer resposta, importa notar que
Machado utiliza-se da incessante busca pela ‘verdade científica’
como uma forma de criticar àqueles que encontravam na Ciência o
álibi para toda e qualquer atitude. Ainda que sem razão.
Assim, chegamos ao projeto da Casa
Verde. E no ambicioso tratado sobre a Loucura, de Simão Bacamarte. É
aqui que se encerra a crítica machadiana: quem são os loucos? O que
é a loucura? Se a Ciência é a resposta para muitas indagações
humanas, vale aqui lembrar que nem sempre o homem sabe como
percorrer o caminho das respostas. A personagem de Simão Bacamarte
surge como uma síntese que mostra a impotência ou a arrogância (?)
do homem que se apropria das leis da Ciência e que em nome delas
comete equívocos, promove tragédias e injustiças.
Desde os primórdios da humanidade, a
loucura, assim como o amor e o ódio, é uma sombra que espreita o
homem. Tema fascinante, ela alimenta a irascível fúria enciumada de
Orfeu ou os delírios cavalheirescos de Dom Quixote. Foi seguindo os
seus passos, que Van Gogh decepou a própria orelha. E foi graças a
ela, que se encontrou a justificativa para encerrar num sanatório a
escultora Camille Claudel. No mundo real ou na ficção, a loucura se
faz presente. E se nos românticos ela surgia como uma das
alternativas trágicas (assim como o álcool, o degredo e a morte) que
encerrava o destino de personagens que se mantinham fiéis a
sentimentos nobres, no realismo machadiano a loucura vai surgir como
uma força estranha ao homem confrontado como uma realidade –
econômica e comercial – que o coloca em xeque diante de suas
certezas.
A História mostra que para todo adágio
popular há uma situação primeira que o justifica. E se é verdade que
a loucura nos espreita, talvez encontremos na tosca figura do
alienista Simão Bacamarte a explicação para a sabedoria popular que
até hoje diz que ‘de médico e louco, todos nós temos um pouco’. Viva
a Machado de Assis!
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