Vicente Franz Cecim
Ó Serdespanto:
Azougue 10 anos entrevista Vicente Franz Cecim
Azougue: O que é Andara?
VFC: O que é Andara? Posso responder como Flaubert respondeu: Madame
Bovary c’est moi. Andara sou eu, me vivendo em sonhos de Escritura
de mim mesmo.
Azougue: Isso é Andara em relação a você. E o que é Andara em
relação à Literatura?
VFC: Em relação à Literatura, Andara não é mais Literatura, é
Escritura e desvio onto-introspectivo, em relação à Literatura.
Azougue: E o que é isso? Apresentando “Biografia de uma Árvore” de
Fabrício Carpinejar, você falou em “a Literatura praticada como
ontologia, a Palavra praticada como vida.” É isso que tenta em
Andara?
VFC: Sim. Andara? Andara é Coisa que viaja por dentro e no sentido
inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao calcanhar de Aquiles do
homem, ali onde ele é mais sensível à Hipótese Onírica e Lúdica e
Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do ponto
em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós,
homens, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres.
Azougue: E esses vislumbres em Andara permitem ver o que?
VFC: O Onde e o Quando o natural e o sobrenatural ainda não haviam
sido deformados como oposições que se excluem mutuamente.
Azougue: Esse ponto seria aquele que Breton mencionou no “Manifesto
Surrealista”, ponto em que “cessam todas as contradições”?
VFC: Mas, antes, Plotino já havia falado isso. Está lá, na sua
famosa Circunferência que é Infinita porque seu centro está em toda
parte. E não só Plotino. É uma ancestral percepção iniciática.
Azougue: Andara então se inscreve nessa Tradição?
VFC: Digamos que Andara se opõe à Matriz dos dualismos. De todos os
dualismos. Ela é Demanda do Um através do Vários.
Azougue: Mas se vale de opostos. A ave, a serpente. Está nos seus
livros de Andara.
VFC: Sim. Mas se se vale do permanente embate entre as Luzes e as
Trevas, entre a Asa e a Serpente, desde o primeiro livro visível
escrito através de mim em 1979, justamente chamado ‘A asa e a
serpente’, até o mais recente livro de Andara, o ainda inédito ‘O
escuro da semente’, que está terminando de se escrever, agora em
2001, através de mim, é só para negar, não o Imanente pelo
Transcendente, nem o contrário, mas as deformações maniqueístas que
a Civilização foi nos legando e impondo a nós. Andara é um ir sem
ir, em demanda do Ponto Vélico onde Visível e Invisível se engendram
mutuamente. Aquele Ponto Vélico do qual uma vez Victor Hugo disse
que, numa embarcação, é “o lugar de convergência, ponto de
intersecção misterioso até para o construtor da embarcação, onde se
somam as forças dispersas em todo o velame desfraldado.”
Azougue: Andara então busca esse ponto de convergência misterioso.
Misterioso até para você, o construtor do barco de Andara?
VFC: Sim. Misterioso sobretudo para mim, que sou o que menos sei de
Andara. Mero Instrumento que ela usa para se fazer existir, como o
Castelo de Kubla Khan usou Kubla Khan em sonhos para tentar uma
primeira vez existir, mas ficou reduzido a ruínas, e depois tentou
existir uma segunda vez sob a forma de um poema do Castelo de Kubla
Khan usando Coleridge, mas o poema ficou inacabado, ruína verbal,
porque Coleridge interrompeu a transcrição para o papel do poema do
Castelo sonhado não em pedras, mas desta vez em Palavras, para ir
atender seu alfaiate que batia na porta e quando voltou, havia
esquecido todo o resto do poema. É no que dá suspender por um
instante a Vigília Onírica e permitir que penetre a Vigília Prosaica
dos cotidianos. Borges, que gostava de contar essa história
exemplar, com humor metafísico perguntava: “Qual será a terceira
forma que isso que tenta existir assumirá?” Talvez essa terceira
forma seja Andara. Pelo menos isso eu sei de Andara: que ela me usa
para se existir.
Azougue: Mas você também não está buscando, através da invenção de
Andara, respostas para as eternas indagações humanas? É onde busca,
onde Andara busca em você, onde você busca em Andara?
VFC: Andara busca Ali, Lá, Aqui, seja onde for. E vai me levando com
ela. Andara quer atingir aquele lugar do qual Eckhart diz: “Ali onde
os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes.” Está lá,
transcrito em “Os animais da terra”, o segundo livro visível de
Andara, de 1980. É uma busca antiga, como se vê. Um vôo bem antigo
em mim, através de mim.
Azougue: Mas em Andara você a certa altura diz: “Embora a ave mais
bela seja aquela que se recusa a voar.” Cadê o vôo, para onde voou?
VFC: Para isso, para se dar a essa Busca, Andara tinha que ser, e
nisso se tornou, Lugar de Nenhum Lugar, o que equivalesse a dizer
Lugar de Todos os Lugares.
Azougue: Você é filho nativo da Amazônia, que você costuma chamar de
“A Floresta Sagrada”. Um dia até enviou um e-mail dizendo que a
Amazônia era para você o que a Floresta Negra foi para Heidegger,
lembra?
VFC: Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da
Amazônia, que, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em
epifania. Se não existisse a Amazônia e não se desse a circunstância
fatal de eu ter nascido lá, talvez não houvesse Andara. Certamente,
não: não haveria Andara. Então, Andara começou se nutrindo da
Amazônia. Da Realidade da Amazônia. Mas da Realidade Onírica da
Amazônia. A Amazônia é um tecido infindável de lendas, fábulas. Lá,
aqui, parece não haver fronteiras muito nítidas demarcando onde
termina a Realidade e começa o Sonho, e vice-versa. Em Andara também
é assim. Mas não falo da Amazônia que aparece, mimetizada, na
Literatura de Cultura, a erudita, a que se faz escrevendo palavras:
falo da literatura Oral da região. Dessas raízes é que foi nascendo
a não-árvore de Andara. Árvore que se iniciou como Árvore de
Palavras, mas aos poucos foi buscando se tornar o que hoje é: uma
não-Árvore de Palavras. Árvore Invisível. Esse tipo de Árvore,
ninguém pode incendiar e reduzir a cinzas com fazem com as árvores
da Amazônia.
Azougue: Você diz, então, que em relação à sua Amazônia, Andara é
região verbal. Uma outra região.
VFC: Na Invenção de Andara, se retoma o sentido do Verbo como Sopro
criador. Novamente o Demiurgo se faz presente. Mas o Demiurgo, neste
caso, é só um homem: eu: coisa enquanto Imanente, efêmera. O que não
impede que haja um Ímã em mim, pulsando pelo Transcendente. Não
posso soprar o barro e criar vida, mas posso soprar as Palavras de
dentro de mim e criar um Mundo Verbal. Nesse sopro, não digo:
Faça-se a Luz. Apenas oro por ela. Nesse mundo, de Andara, não
sopro: Desfaçam-se as Trevas. Apenas rogo a elas, como Caminho de
segredos por algum motivo necessário, que, se desvelando, vão me
deixando passar. Comigo vai todo o Cortejo de Neblinas de Andara.
Azougue: Em um dos seus livros visíveis você diz: “Personagem, coisa
que, aliás, não existe e aqui está a noção de fantasma no lugar de
personagem.” Quem lhe acompanha então nesse cortejo de Andara?
VFC: Pois em Andara já não há personagens, coisas, acontecimentos:
há seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos
imersos em rarefeitas Neblinas.
Azougue: Andara vem do verbo andar?
VFC: Vêm? Será? Eu mesmo às vezes me pergunto isso: Andara vem do
verbo Andar? Não sei, só sei que também quanto a isso nada sei. São
sempre obscuras e encerradas em si as coisas de Andara. “Vida ama
ocultar-se”, dizia Heráclito. Eu, como um outro Obscuro, um obscuro
mais selvagem, também me surpreendo freqüentemente me dizendo, a
cada novo livro visível que estou escrevendo de Andara: Andara ama
ocultar-se. E rio comigo mesmo, mas às vezes me intimida, me dá
medo. É uma convivência, essa minha com Andara, com muitas Alegrias
que eu não encontraria em nenhum outro lugar, mas também muito cheia
de espessuras e súbitas fendas de entrevistas revelações. “Na
obscuridade o ouro reluz”, dizia Pound. E Maupassant, tão belo e
hoje tão injustamente esquecido, falava da presença insidiosa e
temível de um Outro, oculto, por trás dele quando escrevia. Mas
jovem, eu muitas vezes também percebi esse ‘Outro', lendo por trás
dos meus ombros o que eu escrevia. Se era à noite, sozinho na
madrugada, eu parava de escrever e ia dormir abraçado à mulher quem
fosse na ocasião, assustado. Foram os primórdios de uma pré-Andara,
pequeno contos que eu escrevia, ensaiando o Passo para penetrar em
Andara e nela me perder, me fundir para sempre, como hoje estou.
Azougue: Mas você ainda não respondeu. Andara vem do verbo andar? Ou
‘ela' também lhe proíbe de dizer isso? É um segredo entre vocês
dois: criador e criatura?
VFC: Pois é. Mas quem é o Criador, quem é a Criatura? Essa é uma
outra das raras coisas que eu sei de Andara: Ela é o Criador, eu sou
a Criatura. Em nosso caso, toda a história da Literatura se inverte.
No livro “Silencioso como o Paraíso”, que tem duas entradas, duas
capas, duas frentes, dois inícios e dois fins, mas nenhuma saída, eu
sussurrei isso para o leitor, quase pelas costas de Andara. Numa das
Entradas do livro, coloquei uma frase de Ângelus Silesius: “A
criatura é o seu gosto de brincar.” E na outra Entrada outra frase
de Ângelus Silesius: “À divindade agrada o jogo de criar.” Fiz como
Dante, que pôs aquele aviso terrível na porta do Inferno: “Ó vós que
entrais, deixai toda a Esperança.” Mas em Andara não há nada a
temer: exceto o Temor e o Tremor, citando o título do livro de
Kierkgaard, de nos vermos a nós mesmos e à Vida que, em seu Pudor,
porque a Vida é uma coisa feminina e casta e cheia de Pudor, sob as
Aparências, sob sua Epiderme dissimulada, se oculta de nós.
Azougue: Sim, sim. Mas você ainda não disse se o nome Andara vem do
verbo andar. Você está proibido, por Andara, também de comer do
Fruto Proibido?
VFC: Ah, me lembrou “O Eterno Adão”. Vocês conhecem? Uma novela
póstuma espantosa de um outro e oculto Júlio Verne, que ficou velada
pelo êxito das “20 mil léguas submarinas”, uma obra prima
extraordinária.A família, depois da morte dele, escondeu do mundo.
Mas “O Eterno Adão” é uma outra coisa, mais secreta, como aquele “O
Castelo dos Cárpatos”, que ele ainda publicou em vida. Atroz poesia,
como o “Nosferatus” de Murnau.
Azougue: Bem, você não pode responder. Nós entendemos isso. Andara é
o Criador e você apenas a Criatura, e o Criador lhe proíbe de
responder. Mudemos de assunto, então. Tudo bem assim?
VFC: Pois é. Se Andara vem de Andar, do verbo andar. Posso tentar
responder isso. Vejamos, por onde começar? Pelo menos não pensei
nisso quando emergiu em mim sua Geografia Verbal e foi tomando
corpo. Mas agora, de tanto me perguntarem, passei eu mesmo a me
fazer a pergunta: Andara provém do verbo Andar? Possa ser, acho que
sim. Afinal, é Viagem, não é?: a ‘Viagem a Andara’. Peregrinação,
Lugar de peregrinações através dos livros visíveis que escrevo de
Andara. Mas também sendo o não-livro, o ‘Livro Invisível’ que não
escrevo, que vai se formando como Livro Neblina a partir dos livros
escritos e que só pode ser lido pelo leitor em Imaginação. No começo
de ‘Viagem a Andara, o livro invisível’ eu disse: Situação dos
livros de Andara: condenados à visibilidade para que Andara, a
viagem ela mesma, possa existir como pura ilusão. Então, disso nasce
uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportável Tensão: Tensão
que só pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro
tempoespaço, espaçotempo que não mais o da Literatura instalada ora
no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a
Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa só Espessura de
Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso resolvia
mais: a sua exigência extrema, a exigência que me fazia e continua
fazendo, desde seu início até hoje, e lá se vão já 25 anos, era a de
uma Abolição de qualquer Espessura. Sob essa pressão, aonde ela me
conduziu aos meus limites, junto com os deslimites dela, os
deslimites em que queria se instaurar, explodi para fora e para
dentro de mim num Tempo Verbal que fosse o Único em que Andara
pudesse se dar, não se dando, e falar não se falando, entre o
Invisível e o Visível: o Tempo da Hipótese.
Azougue: Hipótese no sentido de uma abertura total a todas as
possibilidades? Mesmo as que pareçam mais improváveis?
VFC: Sim, é isso. Essa Abertura Total. Andar leva a ando, andei,
andarei. Andara nunca quis nada disso, desses andares apaziguadores
das palavras. Andara quer o Sonho Verbal dos sendo, fosse, estaria,
haveria de, houvesse, enfim, do: Andara. Eu Andara, tu Andaras, ele
Andara. Por onde andaríamos, andássemos todos quando andamos em
Andara, através de Andara, através dos livros visíveis de Andara? E
andando através de nós, sempre, o Livro Invisível de Andara? Através
de Andara, vivo repetindo, não se irá a parte alguma. Pois o sentido
da Viagem a Andara é a Viagem em si mesma. A si mesma. Através de
Andara vamos, de alguma forma vamos. Sim. Ou não vamos? Nunca fomos,
nunca iremos? Também parece que Sim. Mas vamos num ir sem ir, num ir
ficando, e permanecemos num ficar indo, a meta esteja atrás, ora
adiante. Ora meta alguma, ora todas as metas. Quais? Mas quais? A
meta sem meta com meta, por isso, Andara é a Viagem ela mesma, em
si. Em Andara, estejamos indo, sempre, inapelavelmente, não há
remédio, através de Luzes, através de Sombras. Neblinas humanas
através de Neblina de Mundo. Andara? Para tentar dizê-la de uma só
vez e mais uma vez, claro que inutilmente, pois ela nunca se entrega
inteiramente, Andara é, enfim: Demanda de Penumbra: Demanda do Graal
dessa luz crepuscular e ao mesmo tempo dessa luz de Aurora, dessa
entreluz onde já nenhum Sol exterior brilha mais ocultando a Luz ao
mesmo tempo Natural e Sobrenatural que todas coisas, tudo, emite de
Si, e disso já falava Paracelso, e é um Saber dos Alquimistas, se
dando a perceber, se dando a conhecer em suas Identidades Veladas.
Em Andara, estamos cegos para ver. Ou, talvez, fiquemos cegos por
tanto ver Clarões na Noite em que tudo é Chama Oculta. Por isso eu
disse no começo da nossa Entrevista: Andara já não é mais o que um
dia foi a Literatura, como uma certa Tradição, se espessando em nós,
nos acostumou a aceitar. Teve que ser um outro tecido mais fino de
Escritura para poder se fazer desvio ontológico, introspectivo, em
relação ao homem e em relação à vida inteira, a Manifesta e a
Oculta. Em relação à Literatura, como prática da palavra
designativa, palavra nefasta que cada vez mais se instala entre nós,
Andara só sabe falar a Voz das Perguntas, muita perguntas. Mas de um
certo jeito que quase abole a necessidade de respostas. As respostas
já estando contidas nas perguntas, ao serem formuladas.
Azougue: Andara então, todos os livros de Andara, são uma imensa
pergunta?
VFC: Sim. Andara é toda ela Escritura de Pergunta, mas que se
inventa mundo, mundo verbal, não só após ter recebido as respostas,
e sim no próprio ato de perguntar. De se perguntar suas respostas à
Vida. A Surda que nos Ouve. Lá no começo, com Flaubert, eu disse que
Andara sou eu. Ah, e o que sou eu?
Azougue: Sim, nós também gostaríamos de saber. Quem, ou o que, é
você?
VFC. Eu? Eu sou um ser de espanto, um ser despanto, um serdespanto.
Já disse isso antes. ‘Ó Serdespanto’, é o título do penúltimo livro
visível de Andara editado em 2001 em Portugal, mas ainda inédito no
Brasil. Eu sou aquele Serdespanto. Coisa aérea entre Céu e Terra,
imerso em Perplexidades, as nossas Perplexidades de Existirmos em
Homem. Haja, também, as Perplexidades das coisas em se existirem em
Montanhas, Peixe, Centopéias, Estrelas, Galáxias e das Sombras em se
existirem Sombras. Pois eu sou Serdespanto. Como tudo é. E sou
também “Os animais da terra”, todos os animais da terra. Assim pelo
menos me fui também desde esse segundo livro escrito de Andara,
publicado em 1981. Também sou a Asa e sou a Serpente. Em Andara,
sou, somos, sempre Queda e Ascensão, Ascensões e Quedas.
Azougue: Qual é a mais abrangente e a mais clara definição de
Andara, se isso lhe é permitido dizer? Com todo o respeito pela sua
misteriosa Andara? Podemos responder a isso e encerrar por aqui.
VFC: Queria terminar, depois de Flaubert, com Cervantes. Cervantes
disse melhor do que eu próprio, por mais que sempre tente, posso
dizer, o que é Andara, o que fosse, o seja Andara. E o que é, num
sentido vertiginoso, de Queda para o Alto, essencialmente a
Literatura. Mas para isso ela, a Literatura, teve que vir se
ultrapassando em Escritura. E, no “Livro Invisível de Andara”, eu
próprio me descubro usado por essas incessantes ultrapassagens, como
porta-voz de um outro Advento, este, um Advento Infinito,
infinitamente além, ou aquém, até mesmo da Escritura, a Escritura
sendo esse espaçotempo verbal tão arduamente conquistado, aos
poucos, e que se dá em plena liberdade de Invenção das Palavras e
das Coisas, para ficar só nos escritores que mantiveram e mantém
contato com o ato de ‘contar', como é o meu caso, em Andara, porque
eu continuo contando histórias, embora sejam as histórias já quase
não-histórias de Andara e contadas da maneira oscilante entre o se
dizer e o não-se dizer de Andara, isto é: o texto se tornando o
Espetáculo, a atração da Noite que a Penumbra Andara encena, e a
história ou ainda quase-história contada, se invertendo os pólos, a
sua Consciência.
Azougue: Então, apesar de toda a inovação que Andara traz para a
Literatura, você ainda conta histórias?
VFC: Sim. Não há nada de negativo em contar histórias, o homem ainda
está no estágio de ouvir histórias, de se contar histórias, a
Amazônia e as histórias fantásticas que a minha mãe Yara Cecim,
também escritora, me contava para fazer dormir, me ensinaram isso: a
amar e respeitar isso, as histórias dos seres, dos homens, da vida.
Eu ia adormecendo e mergulhava nessas histórias da Infância, me
tornava também personagem delas. Se apagava a fronteira entre a
Vigília Diurna e o Sonhar Noturno. Isso também nutriu, certamente
nutriu muito Andara, quando eu ainda nem suspeitava que ela me
viesse um dia, como acabou vindo. A própria Vida talvez não seja
mais do que uma História que vivemos como personagens de um Autor
desconhecido. Não necessariamente aquela “história cheia de Som e
Fúria, contada por um idiota, e que não significa nada”, como disse
Shakespeare. Isso, não. Não devemos fazer definições definitivas
sobre nada. Mas no sentido em que o mesmo Shakespeare disse que
“somos feito do mesmo estofo de que são feitos os sonhos”, uma
percepção muito medieval. Andara, aliás, e isso eu posso dizer: é
uma coisa muito medieval. Eu sou um homem medieval, de uma certa
maneira. A Idade Média, sem que eu saiba porque, sempre me atraiu.
Então, esses autores, precursores e consolidadores de uma Literatura
de Escritura, antecipadores e consolidadores de uma compreensão
sempre mais e mais libertária da Literatura como Simulacro da Viva
Vivida, às vezes revelador, às vezes mais velador da vida ainda,
esses escritores que foram grandes encenadores de Alegorias,
Fábulas, Parábolas, mestres da Metáfora viva mais viva que a Vida
Vivida, agentes iniciatórios na conscientização do Sermos o Sonho de
Sermos, rompedores dos grilhões da Mimética, superadores do homo
faber no fazer literário pelo homo sapiens, superadores do homo
sapiens no saber literário pelo homo ludens, povoadores do Onírico,
transeuntes do humano ao que já chamo de ´o Umanoh’, gente, para
ficarmos só no denso Ocidente, ah, tão pouco sabemos do sutil
Oriente, e no Ocidente mais recente, como: o Chrétien de Troyes do
ciclo da Demanda do Graal, o Baltazar Gracián do "El Criticón", John
Bunyan, Rabelais, Cervantes, Swift, o intolerado Sade, Lawrence
Stern, Kleist, também os narradores Novalis de "Saïs" e Hoelderlin
de "Hiperión", Lewis Carroll, os alegóricos Melville e Hawthorne, o
Horace Walpolle de "O Castelo de Otranto", o Lautréamont no limite
do narrativo de "Maldoror" ,Dostoiévski, claro, por suas espreitas à
Alma encerrada no Corpo, e o a todos superior: o milagre Kafka,
Bruno Schulz, encantador, Gyula Krúdy, tão encantador quanto ele,
Proust, Céline, Musil, o diáfano taoista Hermann Hesse, Jean Giono,
Witold Gombrowicz, Julien Grac, Broch, sobretudo o de "A morte de
Virgílio", Malcolm Lowry, o infinito rarefeito Beckett, e o zen
Salinger, estranhador de cotidianos, o humilde desconhecido
maravilhoso Amos Tutuola, que só aprendeu a escrever depois de
adulto, autor do perturbador “O bebedor do vinho de palmeira”, na
Nigéria, e aqui também queria lembrar um escritor considerado de
segunda categoria que eu, nem um pouco preocupado com os critérios
de qualidade literária, porque o que busco é mais do que o mero
talento, amo muito e muito me nutriu para Andara, não exatamente por
sua Escritura, mas como abertura para todos os Imaginários, Stephan
Wull, que fez vulgares livros delirantes de ficção científica como
“La Mort Vivant”/ “A Cadeia das 7”: metáfora juvenil em mim
antecipadora da Metáfora Central de Andara: a convergência, para o
Um, do Vários em que se dispersou. Quem já leu Andara e por acaso
Wull saberá por que falo isso. E já que chegamos a esse considerado
gênero menor, mas na verdade um dos mais libertários territórios
entreabertos pela Literatura como sonda cega que se atira à frente
de si mesma, e o futuro me confirmará, a ficção científica: também
cito o senhor Herbert Georges Wells, sobretudo o daquele período
fecundo que durou uns dez anos, na transição do século XIX para o
XX, quando escreveu "O homem invisível", "A máquina infernal do
tempo", "Uma história dos tempos futuros”, miragens espantosas do
que pudesse ser a vida, em seus des-dobramentos, assim mesmo, de
desdobrar suas Dobras. E Rulfo, no México, Guimarães Rosa, no
Brasil. Esses dois últimos, imensos Xamãs. Vocês notaram que eu não
citei o mais esperado: Joyce. Não me explico porque, mas então cito:
Joyce. Enfim, todos esses que foram gradualmente pegando o Desvio da
Literatura para a Escritura, fosse através da progressiva ampliação
do Imaginário em demanda de seus Deslimites, fosse através da
progressiva desmontagem das cristalizações das palavras em frases
mortas na Mesa de Dissecação de Lautréamont, fosse pela contaminação
que introduziram com a inserção do hemisfério oriental na Literatura
ocidental. Com esses contaminadores, ganhamos em Ausências, ou em
Presenças apenas Pressentidas. E aí está Edmond Jabès lendo, no
Livro, o Livro enquanto Vida, não é? Esses, ou quase todos eles, são
precursores, consolidadores, e já ultrapassadores da própria
Escritura. Mas eu falava de Andara ter estranhamente me eleito seu
porta-voz de um Advento Infinito, infinitamente além, ou aquém, até
mesmo da Escritura. Será que posso contar?
Azougue: Conta, conta.
VFC: Pois bem. Andara, o que ela parece mais querer, é o Advento de
uma Literatura Fantasma. Fantasma como são os seres de Neblina que a
percorrem. Mas ainda mais sutil que eles. Andara, os livros
escritos, os livros visíveis de Andara, ainda pudessem ser lidos por
quem assim quiser, ou não puder mais que isso, como Literatura
Fantástica. Mas o “Livro Invisível de Andara”, aquele que não-é
escrito, aquele que já é não-livro, esse: Isso, já é Literatura
Fantasma. Literatura de Ausência. Está para a Literatura como os
números trans-finitos de Georg Cantor, talvez eu pudesse comparar,
que se iniciam ali, seja Onde isso for, onde os números finitos se
acabam. Literatura Fantasma é Literatura de Ausência de Literatura.
De Ausência até mesmo da Presença Rarefeita da Escritura, por mais
rarefeita que ela seja. Está num além em nós. Nietzsche perguntando
pela voz de Zaratustra: “O homem é coisa ultrapassável, o que
fizeste para ultrapassar o homem, o que fizeste para atingir o Além
do Homem?” Pois ele nunca falou em Super-Homem, isso foi manipulação
do Nazismo: ‘über mensh’, ele disse, e isso é dizer: Além do Homem.
Mas essa é uma visão ocidental, a visão ocidental de Nietzsche.
Andara se desampara é no Tao. Andara quisesse fosse as Outras três
partes do discurso que se mantém secretas, não são postas em
movimento, mencionadas pelo Hino do Rig Veda, que diz que só
conhecemos a quarta, que é a língua dos homens. Andara não busca
nada assim, como neste trecho de Nietzsche, com um sentido único de
Ida: Andara busca, no homem, tanto o ‘ umanoh’ quanto o ‘umano’,
tanto o além quanto o aquém do homem. Mas eu queria terminar com
Cervantes, depois de termos iniciarmos com Flaubert. Andara sou eu.
De uma certa forma, sim. Mas há uma definição melhor de Andara por
Cervantes. Está lá, na abertura daquele seu belo, sobrenaturalmente
Belo, “Os trabalhos de Persiles e Sigismunda”, obra que
comovidamente ele terminou em seu leito de morte, morrendo, embora
em vez de Morte ou prefira a palavra Metamorfose, e escrevendo a
última página e se despedindo do Leitor e informando que estava
terminando naquele ponto o livro porque o Livro da sua vida estava,
naquele exato momento, também fechando as suas páginas visíveis.
Aquela Voz é Andara.
Azougue: Qual voz?
VFC: “Os trabalhos de Persiles e Sigismunda” começam com uma voz
gritando do fundo da terra, se lançando para superfície da terra e
para o alto e para a luz, lá encima, lá fora da Escuridão em que se
encontra aquele que depois viremos a saber que era Persiles
encerrado numa Masmorra no subsolo. Mas no início, só o que sabemos
é que é uma Voz e, depois, ficamos sabendo que é voz humana. A
Literatura é essa Voz que se lança do Escuro. Essa Voz que busca
ascender da Escuridão é a Literatura buscando ascender para o
claro-escuro da Escritura. É a Voz da Escritura querendo ascender
para o Além do claro-escuro da Escritura. É também a vozinha débil
dos livros visíveis de Escritura de Andara já querendo é o AlémAquém
da Escritura, no Livro Invisível de Andara. Essa Voz é a Voz Não-Voz
do Livro Invisível de Andara. Essa não-Voz, ela é que é a Voz
não-voz essencial de Andara. E parece que a única que lhe interessa.
Trans-silêncio. As páginas antes cobertas pelos Signos da Palavra
buscando o em-branco da Ausência de Palavras.
Azougue: Então, Andara é isso. Essa não-Voz. Voz-Silêncio.
VFC: Sim. Mas estou tentando, ainda, salvar as Palavras da extinção
total em Andara, pela Iconescritura. Superação talvez possível da
Escritura, sem que seja necessário o extermínio das Palavras. É o
que estou tentando agora no livro, ainda mais um livro visível, “O
escuro da semente.” Devolver as Palavras à sua mais inocente Origem
de Imagens. Quem sabe se possa ter nisso alguma Esperança? Enquanto
isso, Andara? Andara continua sendo travessia de Penumbras. Escrita,
é Diálogo com Sombras, já não-escrita é despedida das Sombras, que
cada vez mais se ausentam, das Palavras.
Azougue: Paramos por aqui. Esperamos que você não tenha falado
demais e dito coisas que não devia.
VFC: Eu também. Andara, ah.
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