Vicente Franz Cecim
Nossa Tribo Peregrina por todos os
recantos do Real e dos Sonhos
Vicente Franz Cecim nasceu e vive na
Amazônia, Brasil, em Belém. Desde 1979 se dedica à invenção de uma
longa e única Obra: ‘Viagem a Andara, o livro invisível’ – que
segundo ele é ‘literatura fantasma, o não-livro, pois não é
escrito’. Desse não-livro, sem palavras, e puramente imaginário,
emergem todos os livros visíveis que compõem a Viagem a Andara,
concebida e escrita em volumes individuais, independentes em sua
interdependência, entre si, dos quais 13 já foram publicados, no
Brasil e em Portugal. Andara é região-metáfora da vida: originou-se
na mítica Amazônia, de um pequeno ponto do Universo, na Floresta,
ponto que o autor denominou ‘Andara’ e completando agora seus 26
anos de criação. A reunião em volume único de seus 7 primeiros
livros sob o título ‘Viagem a Andara, o livro invisível’
(Iluminuras, Brasil, 1988) recebeu o Grande Prêmio da Crítica da
APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, que já lhe
concedera, em 1980, o Prêmio Revelação de Autor, pelo livro ‘Os
animais da terra’. Em 1981 foi Menção Especial no Prêmio Literário
Plural, no México, por ‘Os jardins e a noite’. Em 1994, lançou outra
coletânea de livros visíveis de Andara: ‘Silencioso como o Paraíso’
(Iluminuras, 1994).Seu mais recente livro publicado, ‘Ó Serdespanto’
(Íman, 2001, Portugal) foi apontado pela crítica portuguesa, em
consulta a 14 críticos pelo jornal Público, como um dos melhores
lançamentos do ano. Revistos e transcriados pelo autor, seus
primeiros 7 livros acabam de ser relançados (Cejup, Amazônia, 2004)
reunidos nos volumes ‘A asa e a serpente’ & ‘Terra da sombra e do
não’. Tem inéditos os livros visíveis de Andara: ‘K O escuro da
semente’ &’ Óó: Desnutrir a pedra’ & ‘Breve é a febre da terra’.
Maria João Cantinho – Você acaba de reeditar
os 7 primeiros livros de Andara. O título, para quem não conhece os
seus livros, suscita uma extrema curiosidade. O que é Andara, que
universo é esse?
Vicente Franz Cecim – Andara às vezes não é nada//É só uma
estrada/onde uma sombra longa, de homens, de pó, vai passando//Um
ventinho, vindo não se saberá nunca de onde, vem e desfaz o
pó,/desfaz os homens//desfaz a sombra//Andara às vezes não é
nada./Não é nada.' - Esse é um dos possíveis dizeres sobre o que é,
ou não é, Andara: está lá, logo na abertura do texto 'Música do
sangue das estrelas' contido no livro visível de Andara 'Ó
Serdespanto', ainda inédito aqui no Brasil, que a Íman lançou, em
2001, aí em Portugal. Há quem suspeite que Andara vem da palavra
'andar', e como há uma relação de rimas, ainda que inaudíveis, de
laços de parentesco entre as duas palavras do título do não-livro
'Viagem a Andara', esses pensam que acharam o caminho. Pode ser o
caminho, um deles, para Andara, mas certamente não é o Caminho, o
Único: esse, nem eu sei, porque Andara apenas se escreve através de
mim, em Transe Verbal, e muitos silêncios, cada vez mais longos
vales de silêncios a atravessar. Mas para chegar aonde? Não sei. Eu
por mim suspeito que Andara é só a Viagem: não parte de Lugar Algum,
e mesmo talvez, em seu Segredo, querendo, não quer chegar – porque
parece impossível, humanamente, assim só homens como somos,
chegarmos – a Algum Lugar. Já estamos no Lugar do Humano. Que é um
lugarzinho imenso. Posso continuar tentando dizer o que é Andara,
mas será sempre inútil. Quer ver? Repito o que já disse em outra
entrevista à revista brasileira Azougue: - Andara sou eu, me vivendo
em sonhos de Escritura de mim mesmo. Ou: - Em relação à literatura,
Andara não é mais Literatura, é Escritura e desvio
onto-introspectivo, em relação à Literatura. Continuo tentando? Não
sei bem para que, mas tentemos: - Andara é Coisa que viaja por
dentro e no sentido inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao
calcanhar de Aquiles do homem, ali onde ele é mais sensível à
Hipótese Onírica e Lúdica e Naturalmente Sagrada da vida. Andara
quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do
Todo, o ponto oculto de nós, homens, que só se consente a nós em
Relances, Vislumbres. Se ela quer alguma coisa – é Isso. Eles também
me perguntaram, estou relendo a entrevista agora: - E esses
vislumbres em Andara permitem ver o que? - O Onde e o Quando o
natural e o sobrenatural ainda não haviam sido deformados como
oposições que se excluem mutuamente, foi o que respondi. E essa é
uma resposta que mantenho: - Andara se opõe à Matriz dos dualismos.
De todos os dualismos. Ela é Demanda do Um através do Vários. - Mas
vê, Maria, o quanto eu também sou vítima do fascínio de Des-cifrar
Andara. Falei tanto, não disse quase nada. E Cifrei mais ainda
Andara.
M.J.C. – De Andara e dos seus livros, a
crítica brasileira foi unânime em reconhecer-lhe a excelência. Um
universo mítico, uma linguagem mística, onde se reconhecem os
vestígios de inúmeras vozes que o influenciaram. Posso citar duas?
Borges, Juan Rulfo? Que outras vozes se encontram em Andara? Onde
bebeu o seu misticismo? Platão? Heráclito?
V.F.C. – Não gosto de entender as relações mútuas entre criadores
como simples ‘influências’, esse é o diálogo superficial, aquela
‘angústia’ de que fala Harold Bloom pode até existir, e – Sim,
existe, mas são fases, se dá ainda no Tempo das Buscas do nosso
próprio Autor em nós. Entendi isso quando entendi que ‘ler é
Nutrição ou não será nada’ – como um mero Leitor se nutre do que lê,
ou se entrega aos seus jejuns solitários, assim também opera o
Autor. No essencial, é a mesma Alquimia. Processamos alimentos.
Transmudamos parte deles em nosso próprio ser – mas não no Ser
imenso em nós, que só se funde ao Um que se projeta em Vários: esse
é o Ser intransmutável. Pelo menos eu opero assim. Quanto à crítica
brasileira e sua recepção muito favorável a Andara, isso se deu
desde o primeiro livro, ‘A asa e a serpente’, em 1979, mas editar
Andara continua sendo muito difícil no Brasil ainda hoje. E mesmo em
Portugal, ainda não consegui publicar mais de um volume de Andara. A
Viagem a Andara não é o manipulável e vendável Caminho de Santiago
de Compostela, a superficialidade desperta da maioria dos editores
se junta à superficialidade adormecedora da maioria dos leitores, e,
como eu disse: – Andara é coisa que viaja por dentro. No fundo do
Profundo onde o Real e o Sonho são convidados a vir à tona juntos.
Andara não quer ajudar, e se quer Curar é libertando, não iludindo,
condicionando, recondicionando. Quanto ao mítico e ao místico nos
livros de Andara, o primeiro é certamente Memória Ancestral da
Humanidade e, no meu caso, se nutriu, e provavelmente se ampliou, do
fato de eu ser um nativo, apesar de ter sangue árabe e sardo ainda
fluindo nas veias, da Amazônia – geografia real por fora
transfigurada em região-metáfora da vida por dentro, em Andara. O
segundo, o místico? Eu faço a mesma pergunta a Platão: - Onde tu
bebeste teu Misticismo? – Provavelmente ele responderia que bebeu na
mesma Fonte, onipresente e ao mesmo tempo sempre oniausente,
discreta, oculta em si, em que bebe toda coisa viva e com insaciável
Sede infinita o animal humano. Voltando às influências, ou
nutrições, amo Rulfo – com quem tenho em comum um profundo
sentimento pelas brumas glaciais da literatura nórdica: Knut Hamsun,
por exemplo - e amo Heráclito, como amo em equilíbrio com ele,
Parmênides: o Efêmero & o Permanente – e, por isso, sem dúvida deles
me nutri, mas Borges e Platão eu apenas admirei, admiro, observo,
medito. Mas não devemos situar Borges no mesmo território de Platão:
o primeiro é um construtor de belas ruínas circulares, o segundo é
ou busca ser o próprio Círculo que dá origem, na ilusão do Tempo, a
essas irremediavelmente futuras ruínas. Ruínas são fascinantes:
quando abandonadas, esquecidas pelos homens, o Vento continua as
visitando, soprando através delas. Volta sempre. O Vento nada
abandona – esse Invisível amante das Areias, que só se mostra no
visível quando agita os nossos cabelos ou as folhas de uma árvore.
Falo do Vento como Anima. Então, como Verbo fecundador. O nosso
Abismo é vir um dia a saber se é o Verbo que gera o Silêncio ou se é
o Silêncio que permite e engendra a manifestação do Verbo. Tudo isso
é Andara. Tudo isso é o Vazio que transborda através de nós e,
então, também através de mim, em Andara. Ave, ouve, Maria: - Há
tantas vozes murmúrios gritos uivos sussurros nos ventos que sopram
e contam suas histórias através de Andara, que já não sei distinguir
quando são as Asas de Angelus Silesius, o Uno de Plotino ou a
Originação Dependente de Nagarjuna, além de tantas outras vozes que
se apresentam Anônimas, falando, ou a própria Voz de Andara se
falando através de mim. O relançamento, agora, em versões, atenção
para essa palavra: ‘transcriadas’ – criação sobre criação sobre
criação, escavações de Raízes e re-semeaduras de Sementes: foi essa
a transmutação, a vivência que experimentei – dos 7 primeiros livros
de Andara, reunidos nos volumes ‘A asa e a serpente’ e ‘Terra da
sombra e do não’, só me confirmou nessa Dúvida. Ainda sobre
‘influências’, uma palavra: - Um escritor ‘kafkiano’ é um Pecador
inconfessável contra a originalidade absoluta de Kafka, da qual só
devêssemos nos aproximar com Amizade não-corruptora,
não-contaminadora, preservando sua essencialidade Sagrada,
intocável. Só assim também nos aproximamos da nossa submersa latente
sacralidade.
M.J.C. - Fala de Escritura e de desvio
onto-introspectivo em relação à Literatura. Blanchot fala disso em
‘Entretien Infini’. Mas do que está a falar, quando refere o desvio?
Subverter o cânone? Suspender a linguagem para escutar o sopro
inaugural?
V.F.C. – Há coisas que se dizem por sua própria Etimologia, é assim
que elas mais nos falam e não devemos falar mais nada, traduzir por
outras palavras, o que elas em si já dizem. São intraduzíveis. Não
achas? Apenas quis dizer com isso que aguardo um Tempo em que seja a
‘Palavra praticada como Vida, a Literatura praticada como
Ontologia.’ Escrevi isso na apresentação de um livro e em outros
lugares por aí. Então, deixemos de lado a conformação verbal ‘onto-introspectivo’.
Já temos uma tarefa imensamente Perturbadora de que devemos nos
ocupar agora: o Desvio. - Desviar de que, desviar para Onde? Já não
estamos no Desvio, já não somos o Desvio humano semeado num Universo
que estranhamos, e, por isso, por esse Estranhamento, compreendemos
ou julgamos compreender? Contraímos uma familiaridade, por exaustão
de convivência, e acabamos por nos empobrecer de estranhamentos. Mas
familiarizados, ainda estranhamos, e estranhando a nós mesmos –
existe Enigma mais impenetrável do que o homem? – buscamos nos
familiarizar com nós mesmos. Vê: uma Árvore já está na Via do seu
ser, ela é essa Via. Uma Pedra também. Uma Ave. Mas o Homem, qual é
a sua Via? Um Homem é habitante de desvios incessantes. Uma vez ouvi
o angélico escavador em espelhos Robert Bresson, citando alguém que
não lembro, dizer: ‘- É preciso desviar pelo saber.’ Fiquei
pensando: - Mas a qual saber ele se refere? É possível obter um
Saber numa vida que se parece tanto um tecido de Sonho, a não ser o
Saber que sonhamos e Somos Sonhados – e talvez sonhemos a nós
mesmos? Nossa natureza é desviante, não nos é dado um Saber Fixo,
jamais – Jamais. Embora seja uma verdade vertiginosa aquilo que
Keats vem nos dizer assim: ‘A thing of beauty it’s a joy forever’/’Um
vislumbre de beleza é uma alegria para sempre.’ Não sei se isso é
uma Condenação ou uma Graça. Só sei que Andara é Busca & Desvio ao
mesmo tempo, não são oposições que se negam, antes, se complementam,
se complementem, é pelo que espero – e que nela, Andara, tudo se dá
buscando no labirinto de um Desvio e se desvia incessantemente no
desvio de uma Busca. Não sei porque as coisas são assim. Quando
soubermos, se um dia isso acontecer, então fica a interrogação: -
Para que mais continuar praticando a Literatura, mesmo como
Ontologia, pois já teremos chegado, ou melhor: - Retornado, à pura
Ontologia, que de si não se desvia, sob pena de não ser? Ou ela é a
mais perfeita forma de Desvio a que estamos destinados? Blanchot?
Esse ‘Diálogo Infindo’ de Blanchot eu fui buscar na estante e tenho
ele agora aqui comigo. Abro ao Acaso. E, curiosamente, o que acho
não são palavras de Blanchot, mas, na epígrafe do livro, estas
palavras de Nietzsche: ‘- Isto é uma bela loucura: falar. Com isso,
o homem dança em e por cima de todas as coisas.’ Mas em outra
epígrafe, ao seu lado, já ouço a voz de Mallarmé resmungando em
êxtase: ‘- Esse insensato jogo de escrever.’ A Insensatez é se
manter no Desvio, então? Por outro lado, sem Insensatez não há, não
haveria Literatura, e nesse sentido é a Insensatez da Literatura que
pode nos desviar do Desvio. Ao mesmo tempo que nos confirma nele. –
Se recusar à fixidez do Cânone, de qualquer cânone, suspender a
linguagem para escutar o vôo inaugural. Voar sempre o primeiro vôo,
que todo novo vôo seja sempre o primeiro vôo. Sim, é disso que se
trata. No segundo livro visível de Andara, ‘Os animais da terra’,
tão antigo, de 1980, no entanto ainda está escrito e isso não mudou
com a minha recente ‘transcriação’ dos livros: ‘embora a ave mais
bela seja aquela que se recusa a voar.’ Posso encerrar com uma outra
frase, esta efetivamente de Blanchot no ‘Diálogo Infindo’? Eis, está
na página 41 da minha edição pela Monte Ávila, Venezuela, 1996: - ‘O
céu é azul, é azul o céu? A segunda frase não retira nada da
primeira, ou é um retirar como um deslizamento, como uma porta que
gira em seu eixo silencioso. A palavra ‘é’ não foi retirada: só foi
aliviada, feita mais transparente, proposta a uma dimensão nova.’ -
Maria, suspeito que é da palavra ‘é’ que a Literatura deve suspeitar
sempre, porque a Literatura é no máximo um pequeno espelho colocado
diante de um imenso Espelho, certamente um Simulacro da vida vivida,
ou Sonhada. E esse ‘é’, é onde: no Onde? Podemos tentar
vislumbrá-lo, mas isso já não é viagem linear para a Literatura
Canonizada, com suas fronteiras mortas de gêneros, normas, regras,
cultos – ao contrário, é um movimento que se atira contra a própria
Instituição chamada Cultura – é andasse, andaríamos, é – Se eu
andara: é Andara – Tempo da Hipótese, se indo cada vez mais para o
abismo ou céu aberto da Pura Escritura e para o Silêncio, sobretudo
para o Silêncio, o Advento do Silêncio que há de vir – por ele,
espero e não espero – pois a meta sem-meta é permitir que o Vento: o
Verbo, mas já sem voz, sopre um dia que talvez nunca virá através
das Ruínas das palavras da própria escritura, como atualmente já
sopra nas ruínas comoventes da literatura. – Percebemos essa brisa,
essa aragem que nos chega do Futuro?
M.J.C. – Fala da ‘aragem que nos chega do
Futuro’ em Andara, mas eu acrescentaria as vozes do passado que se
fazem ouvir por todo o lado. Que espécie de memória e tempo são
estes que emergem em Andara?
V.F.C. – Um criador de Escrituras, não um mero escrevedor de
literatura, também é feito de ouvidos, talvez sobretudo de Ouvir,
não somente de Voz. – Quem tiver ouvidos, ouça. - Não foi o que uma
Voz bem mais antiga que as nossas uma vez nos disse? Ouçamos, então.
Mas com quais ouvidos, com qual Ouvido em nós? E a que Voz, que nos
fale? Nossa Tribo Peregrina se move por todos os recantos do Real e
dos Sonhos em Demanda das Dobras em que se oculta o Ser. Tentamos
nos tornar as próprias Dobras do Ser. É isso o que buscamos,
penetrar Ilusões, não apenas escrever. Quando escrevemos, estamos na
verdade desdobrando, desencantando o encanto que nos oculta o Ser –
para que ele possa se mostrar a nós, a todos nós, a Si Mesmo, no
Visível, como o Puro Encanto que é. Que fosse. Que seja. Que seria.
Que sendo. Que talvez. Que, quem sabe? – Maria, ave, ouve isso: o
mais enfeitiçante autor da literatura brasileira, João Guimarães
Rosa, disse um dia, a partir do seu Sertão: Veredas: - ‘A gente não
morre, fica encantado.’ Por muito tempo acreditei nisso. Mas cheguei
a uma outra compreensão. E da minha Amazônia: Andara, agora digo,
inversamente: - ‘A gente não nasce, fica encantado.’ O nascer no
Visível é o Encantamento a que nos submete o Invisível. Qual é a
finalidade disso tudo? Há uma finalidade? É perguntar certo,
perguntar por uma Finalidade? É um Ato Gratuito da Vida, a Vida?
Abandono o homo sapiens. Clamo pelo homo ludens em mim. Me pergunto.
Pergunto outra vez, e mais outra, e mais outra. Salto de uma pedra a
outras das perguntas, vario as perguntas. Invento linguagens
inexistentes para nelas fazer a Pergunta. Pergunto à própria
Pergunta qual é a Pergunta? Me lembro de Jidu Krishnamurti, que
muito amo, dizendo que a Pergunta Certa já contém em si a Resposta.
E pergunto em todos os Lugares, em todos os Tempos de mim e da vida
– porque é sempre no Tempo da Hipótese que é todos os tempos verbais
e tempo sem-tempo e lugar sem-lugar e Lugar de Todos os Lugares, e
Tempo de Todos os Tempos, que falo e ouço Andara e suas vozes. Seus
silêncios eloqüentes. Seus sussurros, invejo seus Lábios sutis.
Aguardo, anseio, desisto, retorno à Pergunta: oro pela Resposta.
Amaldiçôo o Silêncio. Peço Perdão ao Silêncio. Me escuto calado.
Veja uma formiga na terra, uma ave no céu – não entendo o real que
todos vêem - tento ver o Inverso, como se fosse a realidade
invertida, assim: um ave pesando sobre a terra, uma formiga alada no
céu – creio novamente que a Pergunta é possível, que a Resposta é
possível. – Ah, Maria, nossa Tribo Peregrina se move por todos os
recantos do Real e dos Sonhos em Demanda das Dobras em que se oculta
o Ser. Do Ser em que se ocultam as Dobras? Viver da Espessura, na
densidade das coisas e de nós mesmos me parece ser uma Destinação de
Alquimistas para todos nós: apenas de uma coisa se trate: o
Invisivelmente quer ser o Visivelmente e nossa tarefa é uma só: -
Dar visibilidade ao Invisível. Mas sem que se choquem em oposições
ou subtrações de Um pelo Outro: manter o Elo entre ser e não-ser.
Por isso inverto o Rosa: - ‘A gente não nasce, ficas encantado.’ Mas
preservando o que ele diz: - ‘A gente não morre, fica encantado.’ A
Verdade é feita de muitas verdades. E todas essas verdadezinhas
estão em nós. - Se dispersando em todas as direções a partir do Um
inicial? Convergindo todas elas para o Um final? Enquanto não
sabemos a Resposta, porque não sabemos a Pergunta, fiquemos com
Heráclito. Pelo menos eu devo ficar assim, nessa Vigília Adormecida,
que é a humana, em Andara – entre O Visível dos livros visíveis de
Andara & o Livro Invisível que é Andara em seu todo inesgotável e
insaciável. Heráclito. Não foi ele, o Obscuro Transparente, quem
disse o Fragmento já despojado de Resídua, nos apontando a condição
do nosso ser imerso em Dobras - ‘Vida ama ocultar-se.’ Não foi? Em
Andara, pois, ele, também o Transparente Obscuro, tenha uma
fecundante Presença. Andara, como a Vida, é sempre esse jogo
infantil de esconde-esconde por entre as Dobras de existirmos,
todos: homens, árvores, insetos, estrelas, as Sombras das Coisas
também, é sempre esse Claro-Escuro de Terra Fogo Água Aragens ou
Ventos soprando. Ora avivando as nossas Chamas, ora apagando em nós
a Luz. – Nós somos, sempre, aqueles homens que, na Noite, em Andara,
se sentam sob uma árvore e acendem uma fogueira, Fogo & Escuridão,
para se contarem e ouvirem histórias. E os murmúrios da Terra e o
Silêncio do céu sobre nós. E se nos contamos histórias, é somente na
esperança de que um de nós, um dia, em um dos Livros de Andara, faça
a Pergunta Certa, que já será a Resposta. Seja qual for ela. E se há
Resposta. Esse é o Enigma, embora em toda Andara ele esteja sempre
presente, muito especificamente abordado no sétimo livro visível:
‘Música de areia’. Nos 13 livros visíveis de Andara que já consegui
editar, nos 3 que ainda estão inéditos, e nos 7 primeiros
‘transcriados’ e agora relançados nos volumes ‘A asa e a serpente’ e
‘Terra da sombra e do não’, é em torno desse Fogo para ouvir essas
Vozes que seus possíveis leitores devem também se sentar. Sem temor
de se perder no labirinto, ou labiantro, dos livros visíveis de
Andara, que vou extraindo do não-livro ‘Viagem a Andara, o livro
invisível’ ou a ele acrescentando – porque cada um deles, em si, é
autônomo e tem sua própria pequenina voz e conta a sua história.
Quem conhece apenas um livro de Andara, já pode conhecer Andara
inteira, porque nesse único livro já terá penetrado na Trama Verbal
comum a todos – que é o essencial Ser de Andara. Como se diz disso?
Ah, sim: holograma. Andara é, seja, fosse, seria um Holograma, em
que todas as partes contêm em si o Todo. E vice-versa. Não é um
ciclo, como ‘A Comédia Humana’ de Balzac? Não apenas, porque os
livros de Andara mais se entretecem e se interdependem em sua
independência do que a Comédia de Balzac. Também não é uma saga,
introspectiva, como “Em busca do tempo perdido’ de Proust, que se
desenvolve num continuum passo a passo e Andara, embora seja viagem,
já está toda ela num só lugar: o Lugar de Todas as Introspecções. Em
qualquer de seus livros, lugares. Talvez seja mais como o ciclo,
encantatório, desprendido, desapegado de suas partes de ‘As 1001
noites’ de Sherazade, unificado pela Voz que Conta, mas sem lamentar
que alguém conheça ‘Simbad, o Marujo’ e ainda não conheça ‘Aladim e
a lâmpada maravilhosa’. Andara? Ah, Andara é Tapete Mágico também,
para através dela sobrevoarmos a Vida, o Ser. Creio que para ela há
também leitores inocentes, que podem julgar estar lendo a saga ‘O
Senhor dos Anéis’ do Tolkien.
M.J.C. – O seu livro, que já citou, e que foi
publicado em Portugal, ‘Ó Serdespanto’, surpreendeu os críticos
portugueses, que muito o elogiaram. Para quando o segundo livro de
Andara?
V.F.C. – Para quando os Monstros Marinhos que vigiam a travessia do
Aquém-Mar ao Além-Mar novamente me permitirem passar.
M.J.C. – Que relação tem com a literatura de
Portugal? Assídua?
V. F. C. – Tudo começa em Pessoa – e se dá no Mistério da Pessoa, em
nós: é através dela que o Vários manifesto & o Um implícito fluem, e
vêm, e vão: - Se fosse em Andara eu diria: - ‘É um isse e ficasse
incessante’, um sempre ir e sempre ficar, que é Ausência &
Permanência. Não sei como Isso se dá, não sei, mas é na medida
humana de uma Balança como a de Heráclito e Parmênides que
devêssemos procurar um rastro a seguir. Um Sinal do Animal de Terra
e Sonhos que nos habita e no qual habitamos. Já falamos do Efêmero &
do Permanente. - Maria, antes de falar sobre a literatura
portuguesa, deixa eu te contar uma experiência vertiginosa, que foi
linda, fascinante, e que tive em Portugal: ela me evidenciou que
Pessoa não morreu, como se acha de quem morre. - Continua Vivo. E
que o maior Dom de Sermos é que todos continuaremos infinitamente
vivos, o mais Leve em nós, reabsorvidos na invisibilidade do que
sonhadoramente no Oriente se diz ser o Sonho de Brahma, o mais
Denso, re-semeando a Terra, a Gaia, re-acolhido em seu colo-ventre.
Quando estive aí em Lisboa, em 2001, para acertar detalhes da
publicação de ‘Ó Serdespanto’ com dois então preciosos amigos meus:
o editor poeta António Cabrita e o poeta crítico Jorge Henrique
Bastos – este, nativo da Amazônia como eu, vivendo em Portugal há
mais de dez anos – pedi a eles, era a primeira vez que eu ia a
Portugal, que me levassem ao Pessoa. Mas onde achar Pessoa? Fomos
então ao Mosteiro dos Jerônimos, em Belém, a Belém portuguesa onde
Pessoa estaria morto – vê os mistérios se cumprindo – a mesma Belém
que deu seu nome antigo à atual Belém, capital do Pará, aqui onde eu
nasci, na Amazônia. Íamos todos juntos, éramos umas sete ou mais
pessoas, alegres, estávamos todos muito contentes só por estarmos
juntos, saltitávamos pelas ruas. No grupo havia também umas
pessoazinhas muito curiosas, uns pequenos gnomos: umas crianças. Mas
quando me mostraram, de longe, o local onde o corpo de terra de
Pessoa estava depositado – me atingiu uma Melancolia, uma emoção, um
abalo tão grande – que comecei a chorar: aquelas lágrimas eram
Saudade dele. Meus amigos perceberam e ficam silenciosos. Com um
gesto, pedi a eles que me esperassem – e fui Lá, sozinho, me
chegando aos poucos. O que eu podia fazer, qual era o Diálogo entre
eu e ele e por que Via poderia esse Encontro se dar? Tristíssimo, me
ajoelhei sobre uma perna, coloquei minha mão sobre a Pedra sob a
qual Pessoa estava – e, por entre as Lágrimas, e sem voz alguma –
perguntei a ele: a Ele, sob a Pedra, uma pergunta que correu de mim
pela minha mão através da Pedra, pergunta que não posso revelar a
ninguém, e que era da natureza de um puro Sentimento, mas que, numa
tradução para o Explícito, foi mais ou menos assim: – Qual é o
significado da Vida, me diz, porque te pergunto com todo o meu amor:
- Existe a Alegria de Ser? - E até onde vai, o quanto dura, ao que
resiste: a tudo, no Todo? Ainda agora sinto a vibração e a
intensidade límpida da Resposta. Foi, sem nenhuma, nenhuma, nenhuma
dúvida, um – Sim, um Sim Absoluto, dito na Outra Voz, a mesma em que
eu havia perguntado a ele, e tão verdadeiro, tão definitivo e
avassalador foi esse – Sim, que me inundou todo eu Inteiro, me
voltando, através da Pedra pela minha mão – me tomando de uma
Alegria, que já era um Júbilo, de uma Felicidade já sem mais
qualquer Tormento – que transmudou, miraculosa Alquimia – todas as
minhas Lágrimas em Riso, depois um Sorriso sereno, Paz na alma aos
homens de boa-vontade. Pude então me levantar e voltar para os meus
amigos, que a uma prudente distância me observavam e esperavam.
Alguém me fez a pergunta que acho que era a de todos: - O que
aconteceu? Foste chorando e voltas Rindo? – O que eu poderia dizer a
eles, como dizer a eles o que havia acontecido? Distribuí pelo grupo
alguns beijos e abraços e meus mais meigos afagos e meus mais puros
carinhos – e saímos todos – eu, para sempre submerso na Resposta de
Pessoa, já não era um homem, pois, em mim e através de Lisboa –
voava. Tão enlevecido fiquei. Eu, e bem mais próximo das nossas
Crianças, na volta, o mais gnomo de todas. - Depois, meus encontros
com a literatura portuguesa foram: - A minha descoberta, viva, da
pessoa magnífica de Herberto Helder, que poeta vasto e sem fundo, as
nossas misteriosas conversas murmuradas, freqüentemente enigmáticas,
até para nós dois mesmos, em tardes longas no Solar das Galegas,
onde deixei a mesma cadeira, em que sentava nessas tardes de
Sortilégios, sempre vazia, na sua mesa - pedi isso à dona - para lhe
fazer companhia, a HH, na minha Ausência. - A descoberta dos livros
de Maria Gabriela Llansol - que eu ainda não conhecia. E sabe por
que? Todos nós sabemos, não? Entre Brasil e Portugal há editoras no
Além & Aquém-Mar, em pleno século XXI, que ainda se dedicam, em vez
de erguer uma ponte deslizante e ágil de mão dupla, a cavar um
obstáculo Abissal: reserva de mercado líquido como que ainda povoado
por aquelas Monstruosas Criaturas dos Mares Imaginários Medievais –
ou Mar Vermelho que se recusa a abrir, e no qual cravam as perversas
advertências que se costuma ler nos livros brasileiros e
portugueses: - ‘Proibida a venda no Brasil.’ – ‘Proibida a venda em
Portugal’. Mas então, eu dizia, descobri a Escritura singular, rara,
essa da Llansol, única, como creio que ninguém mais ainda esteja
fazendo em nosso tempo, na ficção, pelo menos, desde a partida de
Beckett, para citar o máximo exemplo que ele nos deu daquilo que eu
chamo ‘Literatura praticada como Ontologia’. – E descobri também
poesia verdadeira, intensa e sensível em Luiza Neto Jorge. E depois
já foi a publicação de ‘Ó Serdespanto’ pela Íman, e a aceitação
generosa do livro por outras pessoas que não conheci pessoalmente, e
que se tornaram maravilhosas para mim, num sentido interior de
Gratidão e Maravilhamento profundos, porque escreveram sobre o livro
com o mais cúmplice Entendimento, na imprensa portuguesa – o Eduardo
Prado Coelho, no Público, Regina Louro, na escolha dos melhores do
ano, Manoel de Freitas, no Expresso. E outros mais, de quem não
tomei conhecimento porque temo os Monstros Marinhos e aos quais,
ainda anônimos para mim, mesmo assim agradeço. E depois ainda não
voltei aí, só me alimento das amizades virtuais trans-oceânicas.
Amigos, sem rosto, que me enviam e revelam autores fascinantes, como
Fátima Freitas me revelou Dalila L. Pereira da Costa: estou
profundamente tocado pelos seus livros ‘A Nau e o Graal’ e ‘Da
Serpente à Imaculada’. Como tu mesma, Maria João Cantinho, que me
revelaste o teu incisivo ‘Anjo Melancólico’, sobre uma das tuas
paixões: Walter Benjamin. Eu poderia falar, agora, talvez de
Saramago, de como ele partiu em sua Jangada de Pedra para receber o
Nobel. Poderia recuar mais longe, até Camões. À sua Máquina do
Mundo. Mas, deixas que eu te confesse? A Presença de Pessoa ainda
está em mim tão plenamente, e se intensificando sempre, desde aquele
dia, daquele Diálogo através da terra - sobre a qual Al-Maharri, o
sábio poeta árabe nos recomendava: ‘caminha com leveza sobre a
Terra, porque estás andando sobre os teus mortos’ - que me impõe
silêncio - Silêncio místico, ao qual me devoto e me sela os lábios,
as Palavras, mesmo as escritas. Então, da literatura portuguesa
falaremos mais em outra oportunidade, sim?
|