Vera Queiroz
O vazio e o pleno
"O tempo do poeta: viver em dia; e vivê-lo,
simultaneamente, de duas maneiras contraditórias:
como se fosse interminável e como se fosse acabar
agora mesmo. Assim, a imaginação não pode propor-
se outra coisa senão recuperar e exaltar - desco-
brir e projetar - a vida concreta de hoje."
[Octavio Paz] |
Numa entrevista concedida ao suplemento "Idéias", do Jornal do
Brasil, Carlos Drummond de Andrade afirmava que a popularidade nada
tem a ver com a boa poesia. Esta pode passar por muito tempo
despercebida. De tal sorte não padece a poesia de Adélia Prado.
Antes mesmo de ter seu primeiro livro publicado, o próprio Drummond
já lhe fizera uma crônica elogiosa e Affonso Romano de Sant'Anna
afirma, no prefácio a "O coração disparado", seu entusiasmo pelos
inéditos de Adélia, que lera por volta de 1972. Avalizada pelos dois
poetas, ela conquista com seu primeiro livro de poemas - "Bagagem",
1976 - um público cada vez mais numeroso. Poeta de seu tempo (e aqui
a epígrafe de Paz encontra eco exatamente no que a singulariza
dentro do nosso repertório poético das últimas décadas), Adélia
parece vir ao encontro de algo novo que despontava no horizonte de
expectativas da sociedade brasileira: o resgate do corpo
politicamente erotizado, a denúncia dos mecanismos de poder que
atuam nas
instituições sociais e disseminam-se nas relações intersubjetivas, a
descaracterização da macropolítica como instância única capaz de
levar a cabo as transformações exigidas pela sociedade. Tais
questões, que começavam a ser colocadas na série social brasileira,
perpassam a obra de Adélia e indicam uma atitude poética nova,
singularizada pela transformação da vida cotidiana em matéria de
poesia.
Esse novo, essa
rasura que a poesia de Adélia traz, talvez se
possa chamar de uma transcedência do banal, uma aceitação e um
entendimento da expressividade da vida diária e feminina. Nela cabem
todos os temas que têm alimentado a poesia de todos os tempos: vida,
morte, sonhos, comunhão mística com Deus e com as palavras. Mas é na
apreensão dos pequenos gestos e das situações particulares que ele
imprimirá sua marca e diferença poéticas.
Contrariando a
tradição literária e, igualmente, contrariando o
conselho de um de seus mestres ("Não faça versos sobre
acontecimentos", diz Drummond - em sugestão que ele mesmo rejeita),
Adélia resgata para a poesia os acontecimentos mais ínfimos, o corpo
erotizado, a imagem de Deus humanizado, a mulher - seus afazeres e
haveres. A transcendência está também no modo como Adélia realiza
uma estética em que se disseminam os resíduos da linguagem, os usos
coloquiais da língua, os objetos e as expressões do universo kitsch,
os seres e os elementos naturais.
De onde vem a
força desta poesia, que se constitui como um fio
tenso entre o vazio e o pleno? Como pode ser construída uma obra com
o material que a língua esvaziou, que a ideologia empobreceu, que a
cultura refugou e que, ainda assim, surge com um acento forte no
conjunto da produção poética das últimas décadas? Como se faz uma
poesia em que até mesmo os descuido formal, freqüente sobretudo nos
poemas mais longos, acaba por ser parte da composição e a ela se
integra naturalmente? A estas perguntas talvez venha em resposta o
princípio de entrega e de verdade de que se compõe a poesia adeliana.
Verdade não como certeza, mas como revelação de uma voz
profundamente enraizada no chão da província,
compreendida como categoria cosmogônica, força telúrica e mítica.
Nesse sentido, sua poesia resgata o conceito benjaminiano de
experiência, ligada à comunhão e à funda cumplicidade com o homem e
com sua existência concreta, tecida nas relações que os atos
cotidianos geram.
Além dessa
capacidade de criar com o comum, é possível observar-se também uma
progressiva adesão à vertente religiosa que, presente desde
"Bagagem", vem adquirindo maior relevância a partir de "O pelicano"
e se transforma na dicção absoluta de "A faca no peito". A
religiosidade, que banhava os objetos, os seres e os elementos do
mundo natural, centra-se, nesse último livro, na imagem de
Deus/Jonathan. O sagrada deixa de ser o foco iluminador do banal
para tornar-se o eixo a partir de onde fala o sujeito lírico,
assumindo-lhe a própria fala.
É possível
circunscrever o universo temático adeliano em, pelo
menos, cinco grandes eixos. Um primeiro diz respeito à família
literária com a qual sua poesia dialoga, em que se incluem aqueles
autores e obras com que, explícita ou implicitamente, ela mais se
identifica. Encontram-se aí a filiação a Guimarães Rosa, a Murilo
Mendes, a Fernando Pessoa, a Castro Alves e, sobretudo, a Carlos
Drummond de Andrade, a quem dois poemas importantes são dedicados.
Outro eixo que polariza esta obra diz respeito à tematização da
palavra poética, uma de suas mais importantes vertentes. É aí que
surge o aproveitamento literário das formas de linguagem coloquial e
popular, dos resíduos de linguagem, no sentido de que esse material
se constitui das expressões mais banalizadas, recuperadas pela
poesia e revestidas de novas cargas de significação. Um terceiro
eixo organiza-se em torno do elemento "província", visto não apenas
como lugar social e geográfico, mas como universo cosmogônico,
suporte das experiências plasmadoras do seu fazer poético e
metonímia do grande mundo. Outro eixo constitui-se nos temas
recortados sob a égide de Deus, do tempo e da memória realizam a
síntese entre os mitos de Deus e da poesia, esta última vista como a
encarnação humana da palavra fundadora: a palavra divina. O poeta
faz-se porta-voz e instrumento da criação, aproximando-se assim da
vertente romântica fundadora de nossa literatura. Por fim, a questão
do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um
conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito
lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento
pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas
masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema "Com
licença poética", que abre "Bagagem", é exemplar. Eis o poema, eis a
poesia:
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou. |
Veja a poesia de Adélia Prado
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