Weydson Barros Leal
Fortuna crítica: Alexei Bueno
A noite transfigurada
Poucos aspectos
da experiência humana propiciaram um veio mais inesgotável para a
poesia do que a noite. A violenta diminuição dos sinais externos da
vida, o império da solidão e a suspeita da inconsciência do sono dos
que não são vistos, a perda de definição das formas arrogantemente
presentes sob o sol, a impenetrável rede onírica que parece então
encadear a humanidade, vivos e mortos, próximos e distantes,
ansiados e indesejáveis, no aleatório das digressões noturnas, tudo
parece outorgar ao homem algo mais próximo da verdade, algo mais
liberto da transitória presença das formas diurnas, e da sua
atualidade tão implacável quanto condenada à desaparição.
Deste manancial
de estesias para todas as literaturas, grandes poemas se extraíram
em língua portuguesa. Há na noite, para Antero de Quental e depois
para Cruz e Souza, a imagem da cessação nirvânica de toda dor.
“Noite sem termo, noite do Não-Ser!”, chamou-lhe o autor do “Hino da
Manhã”, esta impressionante condenação das convincentes ilusões do
dia, enquanto as preces do Poeta Negro, em um dos seus inigualáveis
Últimos sonetos, se dirigiam para a “Larga e búdica noite
redentora!”. Semelhante postura, a que se teria perante uma
divindade maternal e libertadora, preside o primeiro dos Dois
excertos de odes, onde Fernando Pessoa, em um dos momentos mais
altos da altíssima obra de Álvaro de Campos, exclama “Vem noite,
antiqüíssima e idêntica”, mais uma invocação à piedosa mãe do Sono e
da Morte.
Outra noite é a
de Cesário Verde e a de Augusto dos Anjos, uma entidade mais
carregada da presença humana, através da dor, seja nas pungentes
paisagens urbanas de “Sentimento de um ocidental” ou no delírio
expressionista de “Tristezas de um quarto minguante”. Dos antigos,
dos românticos, dos modernos, uma só é a noite de mil faces, a
repleta de luz em sua escuridão, do Nuctemeron de Apolônio de Tiana,
a noite mística de San Juan de la Cruz, a noite religiosa de
Novalis, a noite diária de todos nós.
Com o poema
Celebração, que abre o livro "Os Ritmos do Fogo", Weydson Barros
Leal acrescenta o seu nome a essa longa genealogia. Dividido em
treze partes, o poema se desenvolve como uma sucessão de visões
primordialmente luminosas - a luz é sempre a grande riqueza das
trevas - onde o cósmico e o humano se sucedem. Há a terra, e
sobretudo a cidade, como imagem central sobre e contra a qual se
desenrolam as mutações da noite. Não é externa essa noite do poema,
mas sim a que passa a existir dentro dos olhos dos homens, como
aliás todas as coisas. Esser est percepti. Estamos perante a noite
platônica, a idéia pura da noite. É essa noite interna a pintada
pelo poeta, como o seria por um pintor expressionista. Daí a
violência das metáforas. Verso a verso, Weydson Barros Leal subverte
a visão comum dos fenômenos, aquela que banaliza, que
desessencializa a nossa percepção do mundo, daí provindo o encanto e
a dificuldade de sua poesia, poesia que só será plenamente sentida
pelos acostumados a essa língua dentro da língua que é a linguagem
poética. Podemos ver o acúmulo de sinestesias do poema em momentos
como este, em que se retrata aquele imponente e fugidio instante da
desaparição do sol, com uma precipitação fulminante e irreversível:
Em sua tela de estrondos
posso ver o segundo
em que a serpente marchou
A inversão das
relações normais de nexo lógico, de causalidade, propicia o insólito
- perfeitamente compreensível depois da assimilação profunda - de
numerosas imagens.
Há o movimento da chuva
que despeja abrigos.
No meio de toda
essa paisagem, visceralmente expressionista, o poema atinge certos
pontos de repouso do mais acabado classicismo, de uma intensa beleza
cuja origem mediterrânea, ou mais especificamente grega, é inegável:
Noite,
exuberante mistério
do idioma da luz,
dorna onde o dia
mergulha seu corpo
e eu venho beber
de sua taça de paz.
E assim, através
dos treze segmentos do poema, o que de fato se constrói é um quadro
subjetivo, uma lanterna mágica invertida, da sucessão do mundo da
luz e do mundo das sombras na câmara escura da alma, que é a mesma
da vida, independente do nome e do instante que a recubram. Estamos
perante uma das mais imutáveis relações do homem com o universo, um
dos arquétipos inalteráveis, um dos símbolos gerais e eternos, no
meio de um mundo repleto deles mas que se julga parva e
otimistamente sempre e cada vez mais novo, quando só a mais tênue
superfície das aparências se altera, cada vez de forma mais rápida e
mais inútil.
Na segunda parte
dOs Ritmos do Fogo voltamos, de fato, para a vida concreta. Não
estamos mais no mundo dos grandes arquétipos, mas no chão onde
escutamos soar os nossos passos. A estrutura do livro convida, de
certa maneira, a um movimento circular, um retorno ao início, na
verdade o perpétuo movimento de afastamento e volta, ou de sístoles
e diástoles, que preside tudo no universo. No poema “Monumento a
Balzac”, encontramo-nos com uma realização poética derivada da
expectação de outra obra de arte, no caso a célebre e controvertida
estátua de Rodin. Afinal, uma vez incorporada ao mundo, a obra de
arte, seja arquitetônica, pictórica, musical ou outra, passa a fazer
parte desse mesmo mundo que é a matéria-prima do artista. Numerosos
poemas com a mesma gênese podemos encontrar nos Neue Gedichte de
Rilke, ou até em livros inteiros na nossa própria língua, como em
Metamorfoses e em A arte da música, de Jorge de Sena. Uma variada
rede de metáforas é tecida pelo poeta à volta da figura monolítica,
que marca “o mundo com (s)eu secreto bastão”.
Nos poemas
“Paisagem” e “Canção”, movemo-nos das imagens mais concretamente
visuais e cromáticas até as mais subjetivas, sem nenhuma fronteira
nitidamente marcada entre essas duas realidades que se
interpenetram, e sempre com a mesma riqueza de metáforas
inesperadas. Com “Caminho”, chegamos ao chão mais chão, ao concreto
mais concreto dessa descida dos arquétipos imutáveis da noite até a
presença da tarde quotidiana. Nesse admirável poema do tempo e da
efemeridade, dos segundos vulgares que nos cravam na prisão
inescapável do momento, há uma imagem terrível, que não deixará de
atravessar com um frêmito o leitor:
Todos os anos passamos pelo dia
de nossa morte, como passa,
desavisada e cega, toda a gente
sobre toda calçada.
Mais terrível
ainda que essa espécie de “desaniversário” é o piedoso voto final do
poema, que nos concerne a todos:
Alcancem o céu os transeuntes daquela
rua comum, porque um dia, como em segredo,
pisaram o tempo, ainda, ainda, ainda.
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