Weydson Barros Leal
Nelson Rodrigues
A descontrução do lírico
Nelson Rodrigues
é uma unanimidade em pedaços. Melhor: é cada um dos dois lados de
uma outra conclusão: diante dele, ama-se ou odeia-se. Não se viu até
hoje a imparcialidade ou a passividade dos que conhecem sua obra -
isto, uma “unanimidade”. E esta palavra, que também é um sentimento,
como todas as outras tocadas por ele se transformou em uma potência
aumentada ou invertida em sua grandeza, pois, neste caso, foi
chamada de “burra”. Assim nascia a maioria das máximas rodrigueanas,
as expressões reconhecidamente suas, os axiomas que se transformaram
em sua marca. Por isso é muito fácil - ou dificílimo (outra vez os
dois lados) - recolher em sua obra frases que possam enfeixar um
“livro de frases”. Quase tudo que escreveu se presta ao espanto ou
ao incomum. Daí por que considerar inestimável o trabalho de seu
biógrafo, o escritor Ruy Castro, ao organizar o volume “Flor de
Obsessão” (Companhia das Letras, 1997), onde com quase 1.000 frases
intenta um compêndio de máximas do autor pernambucano. É o próprio
Ruy Castro que afirma, com a autoridade de seu conhecimento,
tratar-se Nelson Rodrigues “talvez o maior frasista da história da
língua portuguesa”. E não exagera. O gênio do melhor criador do
teatro brasileiro é equiparável ao de qualquer gigante da literatura
universal em invenção e originalidade. Infelizmente tal constatação
ainda causa polêmica, e como uma unanimidade será sempre contestada.
A maneira de
pensar e expressar de Nelson Rodrigues era, no mínimo, original. Sua
coragem para dizer o “indizível” ao revelar os mais secretos
labirintos do espírito humano faziam-no possuidor de um dom superior
entre os escritores universais: como um Tolstoi, ele apontava a
verdade, e a verdade, às vezes, esconde-se escura em nós. Em sua
obra reflete-se a vida aberta e crua, e se não vivida por todos,
reconhecida ou imaginada por muitos. Suas “perversões” - assim
costuma-se rotular os temas e abordagens de seus dramas e tragédias
- fazem do espectador um condenado a vivenciar, no livro ou no
teatro, realidades que já inspiraram mal-estar e indignação, mas
nunca a confissão de que se estaria a ver uma ficção absurda: em
Nelson, o pornográfico e suas permissividades constituem o tecido
onde a família é o núcleo deflagrador de tudo, o centro de onde toda
danação se pressente ou se origina.
O drama
rodrigueano, seja no conto, no romance ou no teatro, é trágico
quando o identificamos pelas vicissitudes do desmoronamento moral; é
épico, ao expressar a procura ou a revelação de um desconhecido
interior - nosso também - às vezes íntimo e monstruoso, às vezes
alheio e heróico; mas acima de tudo é um drama lírico, poético, que
talvez não seja melhor compreendido por tratar o autor de
desconstruir a nossa dor, distribuí-la com outros, codificá-la com
os mais sofisticados processos psicológicos identificados em manias,
angústias, traumas, revoltas, taras, obsessões. Essa desconstrução
nos põe diluídos em cada um de seus personagens: e não somente o
nosso medo, a nossa secreta identidade, mas também a nossa repulsa
ao descartarmos o comportamento que não julgamos à nossa altura,
digno de tão imune caráter, e que nos divide em pedaços entre o
santo e o canalha, desconfiados que somos apenas humanos. Assim se
resumem os personagens na obra de Nelson Rodrigues: o homem (o pai,
o marido, o noivo, o amante); a mulher (a mãe, a esposa, a filha, a
prostituta); o amor (o pêndulo da fidelidade, suas tentações) e, por
trás de tudo, a imensa solidão humana - a busca do outro.
Exatamente
devido a uma abordagem incomum dos dramas familiares e sociais -
principalmente em suas “tragédias cariocas“, sempre voltadas para a
perversão moral, quando não sexual - entre seus eternos desafetos
estão os falsos moralistas, as mulheres (embora nem todas) e aqueles
que durante a ditadura dos anos 60 a 80 se sentiram traídos por um
escritor que não militava contra os militares. Nelson apoiava o
“regime“, era amigo de generais, de generais presidentes, e
detestava o comunismo soviético que nessa época representava, para
os intelectuais brasileiros, curiosamente uma antítese do estado
repressor reinante no Brasil. Também por isso sua obra é até hoje
encarada com reservas por parte dessa mesma intelectualidade. Mas o
que ocorre, e que muitos se esmeram em não deixar transparecer, é o
preconceito puro e simples pelo gênio nacional, made in Brazil, que
por um “deslavado milagre“, desse que passamos uma vida inteira e
dele só ouvimos falar, nasceu entre nós mas não é um de nós. A
percepção de sua grandeza como autor e criador, repito, ainda está
aquém da que autores menores, em outros países, alcançaram no século
XX.
O escritor, os amigos e as frases
Nelson Rodrigues
era um iluminado. Não precisava de muito para criar as mais
interessantes crônicas e estórias já publicadas na imprensa
brasileira. Do adultério ao futebol, tudo era tema que a sua verve
transformava em grande texto: fosse um sarau de grã-finos ou o pior
jogo do Fluminense. O tricolor carioca era sua paixão futebolística.
Amava o futebol, e por isso muitos dos mais importantes relatos
sobre o esporte foram publicados em suas colunas. Hoje estão
reunidos em volumes como “A Pátria em Chuteiras” (Companhia das
Letras, 1996) e “À Sombra das Chuteiras Imortais” (Companhia das
Letras, 1996). A paixão pelo futebol, é claro, era uma paixão de
família. O nome de seu irmão, o jornalista Mário Rodrigues Filho,
batiza o maior estádio do mundo: o Maracanã.
Nelson foi o
primeiro jornalista brasileiro a chamar Pelé de “Rei”. E antes, um
dos primeiros a reconhecer em Garrincha equivalente majestade. Para
o cronista, todo assunto, todo fato poderia transcender à
luminosidade da escrita se tratado com espírito: “Sem alma não se
chupa nem um chica-bon”, costumava escrever. Aliás, uma das marcas
de sua obra jornalística - se assim podemos chamar - é a farta
repetição dessas frases que circulam entre a inscrição e o verso,
entre a lei e a paródia. Nelson afirmava que as coisas ditas apenas
uma vez “morrem inéditas”. E estava certo.Em toda sua obra, a
repetição de suas máximas, como um mesmo sol que é outro todo dia,
apenas nos confirma suas convicções. Entre seus talentos, também
estava o de identificar e exaltar o espírito alheio. Lembramos o
poeta Manuel Bandeira e o também pernambucano Gilberto Freyre, este
último considerado por ele o maior dos brasileiros. E a admiração
era mútua, como se pode constatar em artigo do autor de Casa-Grande
e Senzala.
Entre os amigos
que mais admirava , dois eram sempre lembrados em suas crônicas:
Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Tão reais, ambos tornaram-se
personagens seus, e como homenagem ao segundo, Nelson usou o seu
nome como título de uma de suas peças mais conhecidas: Otto Lara
Resende ou Bonitinha mas ordinária. Era um romântico com os amigos,
mas um crítico implacável com aqueles que elegia como inimigos. Um
dos mais ilustres, que carregou este peso até a morte do escritor,
foi dom Hélder Câmara. Nelson não o perdoou por um pedido não
atendido na juventude e o castigou o quanto pôde.
Mas suas maiores
reverências ele prestava a grandes nomes da poesia, do romance e do
teatro. Nos livros que reúnem suas crônicas, os índices onomásticos
são fartos de grandes escritores. Essas reverências - também
referências - em certos casos eram o tema ou o pano de fundo de
muitos de seus textos. Ao afirmar que a peça O inimigo do povo, de
Henrik Ibsen, era a mais bela obra do dramaturgo norueguês, Nelson
parecia estar falando de si mesmo: “a história de um homem que diz a
verdade”. Revelava, dessa maneira, suas afinidades eletivas. Da
peça, Nelson cita a sua última fala - “O homem feliz, o homem forte,
o grande homem, é o que está mais só” - e outra vez percebemos seu
espelho.
Em relação ao
poeta Manuel Bandeira, sua admiração também era agradecimento. Uma
gratidão emocionada, gratidão pela admiração. Na crônica “Guimarães
Rosa é uma torre de marfim”, Nelson escreveu: “Quando sinto a
nostalgia do teatro, penso em Manuel Bandeira. Posso dizer que,
durante três ou quatro anos, vivi às expensas de sua admiração. De
vez em quando, no bonde, no ônibus, no táxi, dizia de mim para mim:
´Ele me admira!´. Ele, sempre ele!” E realmente o poeta não
economizava elogios ao conterrâneo. Sobre a peça Álbum de Família,
citada pelo próprio Nelson na mesma crônica, Bandeira afirmava que
Nelson Rodrigues era “de longe, o maior poeta dramático que já
apareceu em nossa literatura”. Os elogios, entretanto, não foram
muitos na vida de Nelson Rodrigues. Poucos - os melhores -
identificaram nele o seu real valor. Isto o incomodava: “Realmente,
somos uns impotentes da admiração. Cochichamos o elogio e berramos o
insulto.” E uma vez concluiu: “Todos nós somos mais ou menos
infelizes”.
Nelson Rodrigues
amava seus amigos. Não são poucos os registros de encontros, de
conversas em bares e botecos cariocas onde encontrava seus pares.
Conhecia o espírito humano, por isso era capaz de conquistar e
cativar: “O amigo é a desesperada utopia que todos nós perseguimos
até a última golfada de vida (...) Daí por que o grande
acontecimento é sempre o amigo”. Entretanto, como pensador, Nelson
traduzia de tudo sua complexidade, ou a simplicidade que somente não
vemos: “Mas o trágico da amizade é a convivência. Talvez a solução
fosse pôr um deserto entre nós e o amigo. Não ver o amigo, jamais,
não ouvi-lo”. Para ele, tudo e todos eram fontes de frases geniais,
como um simples cumprimento na rua: “Quando alguém me pergunta -
´Como vai?´ - penso nas minhas dúvidas. É fatal.” E sobre essas
dúvidas, extraídas de uma conversa com um vizinho, escreveu: “Tenho
medo das pessoas que vivem de certezas. Sinto que o vizinho é dos
tais que avançam, erguem a fronte, fingem um pigarro e reclamam: -
´Dúvidas? Não as tenho!´ A minha vontade é dizer-lhe: - ´Pois
tenha!´ Não sei como um espírito sem dúvidas não trata de
providenciar e, em último caso, de inventar dúvidas urgentes e
esplêndidas”.
A obsessão do sentimento
Um amigo certa
vez chamou-o de “flor de obsessão”. Nelson adorou. E justificou-se
dizendo: “Eu sou assim, e digo mais - convivo muito bem com as
minhas idéias fixas“. Ele, um obsessivo nato, tinha o amor, a
mulher, as relações humanas, a solidão e a doença como algumas de
suas prediletas. E explorava cada uma, numa reflexão permanente.
Algumas vezes, abordava liricamente seus temas, o que resultava em
afirmações, para os que não o conheciam, dificilmente atribuíveis a
ele: “O amor é o casal. O simples casal basta para inundar o
universo. E o casal funda a grande solidão”. Daí afirmava: “Sempre
que um homem e uma mulher se gostam precisam estar prodigiosamente
sós, como se fossem o primeiro, único e último casal da Terra”.
Um de seus
alvos, a doença, acompanhou-o de perto durante a toda vida. Não só a
ele, como a pessoas sempre muito próximas. E a dor era uma
permanente recordação. Sobre a úlcera e o câncer, por exemplo,
cunhou frases insólitas. Às pessoas que de alguma forma a lembrança
da doença fatal possa incomodar, aconselha-se pular este parágrafo.
Porque Nelson não poupava a inteligência da emoção, nem tampouco
privava o seu sentimento de uma constatação que pudesse agredir quem
quer que fosse. Por isso atribui-se, também aos que o admiram, algum
tipo de perturbação. “A origem do câncer está no tédio conjugal. E a
leucemia infantil é o tédio dos pais destruindo os filhos”. E sobre
o mesmo diagnóstico: “Tudo é falta de amor. O câncer no seio ou
qualquer outra forma de câncer. É falta de amor. As lesões do
sentimento. A crueldade. Tudo, tudo falta de amor”. Mas há beleza em
sua tragédia. Há luz em sua dor. “Disse-lhe que a úlcera nasce
doendo. Não há dúvida, dói nos primeiros dias. Mas, a partir da
primeira quinzena, começa uma adaptação recíproca. A lesão e o
doente passam a se entender maravilhosamente. É o que sucede com as
longas conveniências matrimoniais”.
Isso não
significa que o nosso autor fosse insensível, distante das grandes
penas humanas. Pelo contrário. Na obra de Nelson Rodrigues
encontramos momentos em que custamos a acreditar que a comoção tenha
se prestado tão bem ao jugo da razão. Numa de suas mais comovidas
crônicas, Nelson relata, sobre uma conversa entre amigos: “E
conversamos de tudo. Houve um momento em que o Celso abriu o
coração. Fala: - ´A morte do meu pai´. E acrescenta, como quem pede
desculpas: - ´Ainda não me recuperei´. Por um momento, tive vontade
de pedir-lhe: - ´Nem se recupere, nunca, nunca´. Eis a nossa
degradação: - sofrer menos, cada vez menos, até esquecer. Desde
menino sou um fascinado pela grande dor (acho que a grande dor não
passa jamais). E não disse nada ao Celso, não lhe fiz o apelo: -
´Sofra, sofra´. De repente ele diz, chorando: ´Ainda choro´. Foi aí
que senti, como na casa do Hélio Pellegrino, que éramos dois santos.
Na mesa adiante, a tal família imensa detonava todas as suas
gargalhadas. Mas podia vir o mundo abaixo. Tudo era secundário,
irrelevante, nulo. Mudei de assunto e fiz mal. O certo seria tirar
partido da nossa tristeza (eu também pensava na morte do meu pai).
Temos um medo tão idiota do sofrimento, e são tão poucos os nossos
instantes de tristeza total! Como é bom o doer de velhas penas.”
O anjo e a glória
Ao leitor que
busca um maior entendimento sobre a vida ou o teatro de Nelson
Rodrigues, aconselha-se dois autores: Ruy Castro, e seu livro O Anjo
Pornográfico, que esgota de forma brilhante o que se pretende como
biografia de um artista; e o crítico Sábato Magaldi, através de seus
prefácios ao Teatro Completo de Nelson Rodrigues (Quatro volumes,
Editora Nova Fronteira, 1981-89) e do livro Nelson Rodrigues:
Dramaturgia e Encenações (Editora Perspectiva/ Edusp, 1987). No
mais, é ler a própria obra, e relê-la, incansavelmente, como fazia o
próprio Nelson com seus livros prediletos.
Pode-se dizer
que assim como sua obra para teatro - gênero que o notabilizou como
grande autor - sua abordagem da vida e suas mais contundentes
tragédias refletida em suas crônicas, já o credencia a um lugar de
destaque no grupo dos grandes escritores brasileiros. Não importa a
moral, a ideologia política, o credo ou a conspiração: nada disso
resiste ao tempo, pois só a obra, pura e simples, defende o seu
autor. O próprio Nelson, citando Rilke, lembrava que “a glória é a
soma dos equívocos criados em torno de um nome e de uma obra”. E
diante do público ou da crítica, do aplauso ou da incompreensão, ele
não se importava de estar só: “Como se sabe, a solidão humana são os
outros”.
A obra de Nelson
Rodrigues ainda é um privilégio para poucos. Nos últimos anos,
entretanto, suas peças têm sido remontadas e lotam platéias. Pelo
Brasil, pode-se considerar um autor bem representado. No teatro,
cada novo diretor, ator e espectador recriam a obra a cada dia.
Também para o livro, a releitura será sempre nova, porque outro é o
mesmo leitor. E poucos autores convidam a isso: “Certa vez, um
erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: ´O que é que
você leu?´ Respondi: ´Dostoievski´. Ele queria me atirar na cara os
seus quarenta mil volumes. Insistiu: ´Que mais?´. E eu:
´Dostoievski´. Teimou: ´Só?´. Repeti: ´Dostoievski´. O sujeito,
aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis
o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de
Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema de
não sei quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte.
Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso,
mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura”.
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