Wilson Martins
Disseram d+/d-
[Prosa & Verso, O Globo]
Versos anacrônicos da
militância tardia
Bruno Tolentino, que nos anos 60 se exilou voluntariamente, grita
contra a ditadura militar com 30 anos de atraso.
A leitura de Bruno Tolentino ("Os
deuses de hoje", Rio: Record, 1995) suscita perturbadoras reflexões,
nem todas de natureza estritamente literária. E, antes de mais nada,
o entusiástico endosso crítico que lhe tributam intelectuais de alto
gabarito corno Yves Bonnefoy, Jean Starobinski e Saint-John Perse,
além das referêncías editoriais aos seus "30 anos de intenso
convívio" com esses poetas, além de Ungaretti, W. H. Auden e Samuel
Beckett.
Seria um aliás improvável um
"convívio" pessoal, ou apenas o "convívio" do leitor com a
literatura dos mestres?
Ambigüidades dessa natureza
impressionam de maneira desagradável, na medida em que parecem
sugerir mais do que realmente significam.
As capas e contracapas dos seus livros
transcrevem consagradoras apreciações de respeitados escritores como
Arnaldo Jabor, João Cabral de Melo Neto e Antônio Houaiss, nem
sempre com indicação das fontes. Provêm de críticas publicadas?
Pertencem à correspondência pessoal? Incertezas semelhantes ocorrem
no que se refere aos autores estrangeiros. Yves Bonnefoy, por
exemplo, considerado "um dos melhores poetas da atualidade"; Jean
Starobinski inclui-o no grupo dos intelectuais contemporâneos mais
consideráveis, enquanto Saint-John Perse preferia exaltar-lhe a
qualidade humana: "Seus poemas exalam uma dor tão justa que só sua
perfeição formal torna suportável".
Claro, ele e os demais só poderiam
avaliar-lhe a "perfeição formal" nos poemas escritos em francês e
Inglês ("Le vrai le vain", 1971, e "About the hunt", 1979), sendo do
maior interesse saber em que circunstãncias ou a que propósito se
pronunciaram. Sabendo-se que os livros de poesia, aqui e alhures,
são regularmente publicados em conta de autor — ainda mais nos casos
de estreantes, como aconteceu com Oswaid de Andrade em Paris — tudo
indica tratar-se de recomendações graciosas aos editores, geralmente
escritas e pedido do autor. São declarações de "pura eutrapelia",
como as chamava Ernest Renan, que sabia do que estava falando, e não
devem ser aceitas como palavras do Evangelho. Resta o que se pode
chamar a temática ideológica dos poemas. Tendo optado pela
expatriação voluntária, Bruno Tolentino afastou-se do país durante o
regime militar, escrevendo fora daqui os poemas de protesto e
indignação cívica. Só agora se decidiu a publicá-los, 30 anos
depois, num gesto psicanalítico de remorsos redimidor ou
reconstrução moral.
Foi um companheiro de viagem que
perdeu o trem da História. Protesto retrospectivo e recuperador, sem
nenhuma eficácia possível e claro anacronismo, tornando obsoleto um
tipo de poesia que, por definição, é efêmero e círcunstancial.
No caso, não se trata da goethiana"'
"poesia de circunstância" mas poesia, "das circunstâncias", o que é
diferente e chega tarde demais em circunstãncias que a tornam
anacrônica.
Em polêmica política, ele se vê na
situação de combater um adversário inexistente, sendo mais efetivo e
oportuno na polêmica literária em prosa ("Os sapos de ontem". Rio:
Diadorim, 1995).
Poeta que obedece às convenções
tradicionais, com sonetos, poemas descritivos e narrativos, versos
regulares, rimas e aliterações, surpreende pouco que encare as
vanguardas não só com ceticismo, mas até com hostilidade. Ele
qualifica de farsa o "chamado concretismo", vendo-o como parte da
mistificação em que se deliciavam os poetas nas décadas de 60/80:
"0 certo é que estas últimas décadas,
enquanto se agredia a inteligência brasileira por todos os lados, em
poesia pretendeu-se mascarar indigência de inspiração e inabilidade
artesanal mediante um exótico receituário pretensamente 'novo'. Não
há, nunca houve novidade alguma nos maneirismos e ludismos das
civilizações em crise(...)
A noçao mesmo de "civilização em
crise" é uma atitude gratuita e fantasiosa a que voltam
periodicamente os analistas sem assunto, apaixonados pelos
lugares-comuns. As crises são, ao contrário, o modo vital pelo qual
as civilizações se realizam. O que parece crise aos maus
observadores que são os contemporãneos não passa das peripécias que,
justamente, lhe garantem a vitalidade. Contudo, não é o que
interessa no momento, nem confere, nem tira maior legitimidade às
crises de crescimento (palavra afortunada!) que surgem como sinais
quilométricos na história das artes e das letras. As vanguardas são
fenõmenos cronológicos, e não estéticos, como vulgarmente se
acredita, e, por isso, Bruno Tolentino, a exemplo de tantos outros,
admira com fervor e só aceita as que já fizeram o seu tempo e se
transformaram em monumentos do passado e em verdades aceitas.
Assim, os jovens desvairados de
Noigandres com os seus "gaguejos futuristóides" e a "mediocridade
morna" da Geração de 45 coexistiram por absurdo, no seu entender,
com os poetas históricos que trata pelos nomes familiares, graças, é
evidente, a anos de "intenso convívio", — "quando Bandeira,
Drurnmond, Cecília, Jorge, Murilo e desde cedo o jovem Cabral
elevavam publicamente nossa lira a cimos que até então desconhecia.
Pode-se pensar que não desconhecia
tanto assim...
Depois deles, outros poetas a elevaram
acima do nível em que a haviam deixado, sem excluir Bruno Tolentino,
é preciso que se diga. Mesmo nos poemas políticos, extemporâneos
quanto sejam, mas principalmente na poesia llrica propriamente dita,
como, para citar apenas esses, os que compõem a série das "Ruas".
(O Globo, Prosa e Verso, 15.06.96)
[Prosa & Verso, O Globo]
Índoles poéticas
Por suas atitudes polêmicas, Bruno
Tolentino é visto menos como poeta do que como personalidade da vida
literária, no que, creio eu, é a sua estatura que acaba prejudicada.
No que denomina de "edição completa" do seu livro de estréia
(Anulação & outros reparos. Rio: Topbooks, 1998), ele esclarece com
ambigüidade (se o oxímoro for aceitável) haver reconstituído "a
fisionomia essencial" do texto primitivo, permitindo supor que não
se trata, realmente, de edição "completa".
Os seus versos aparecem agora "tão
limpos quanto possível de elipses e obscuridades da apressada edição
original, assim como de certas imprecisões de léxico e sintaxe."
Na publicação de 1963, e apesar de
premiado em concurso por julgadores do porte de Manuel Bandeira e
Lêdo Ivo, o livro foi recebido pelas "zoeiras de má-fé e do mau
gosto" a que se refere e, de tal gravidade, que se atribuía ao autor
a decisão de ocultá-lo (o que ele contesta). São fatos da pequena
história, talvez leviandades da juventude, por ele rememoradas em
palavras que, destinadas a desfazer suspeitas, concorrem, ao
contrário, para despertá-las: "Porque, não fosse a tentação da
enorme soma que prometia o Prêmio Revelação de Autor, não é certo
que sequer um terço deles, se tanto, tivesse jamais sobrevivido à
minha obsessiva ojeriza ante a temerária aventura pública do autor
ainda implume. É esse mal-estar que sinto ainda hoje (agora mesmo)
ao folhear o livro tal como aparecera à época e tanta polêmica iria
causar."
A polêmica realmente ocorreu e este
livro não será exatamente o da edição original, mas pouco importa. O
que importa é que, de fato, contém alguns belos poemas, como os
comoventes tercetos "Ao divino assassino" e a "Prece", na morte de
Lúcia Miguel-Pereira, além de numerosos outros que confirmam em
Bruno Tolentino um temperamento poético incomum nos quadros de nossa
literatura contemporânea. Não será obrigatório rezar no seu "Templo
da Glória" (onde entronizou os bustos de Adélia Prado e Alberto
Cunha Melo, por exemplo), assim como parecem teóricas, num poeta de
inclinações classicizantes - mais à vontade nos poemas de forma fixa
do que nos outros - as afinidades que declara uni-lo aos corifeus da
galeria "moderna".
Tão recolhido e modesto quanto Bruno
Tolentino é ruidoso e agressivo, Dante Milano foi "a maior vocação
póstuma" de nossa literatura, como o designava o folclore da vida
literária (Melhores poemas. Seleção de Ivan Junqueira. São Paulo:
Global, 1998). Foi e continua sendo um poeta de culto, destinado aos
"poucos felizes" a que se dirigia o pretensioso Stendhal, os poucos
em que se inclui, além de Ivan Junqueira no belo prefácio
reivindicativo, o rigoroso Carlos Drummond de Andrade, que nele via
um "grandíssimo poeta" - o poeta "que ninguém conhecia",
acrescentava num ímpeto de nobre indignação.
Além das razões de natureza
psicológica mencionadas por Ivan Junqueira no estudo preliminar,
Dante Milano foi um marginal das correntes predominantes no seu
tempo:"Embora egresso do Modernismo de 1922, Dante Milano é, na
verdade, anterior ao movimento modernista, do qual participou à
distância e ao qual, efetivamente, jamais se filiou nem durante nem
depois da festiva e turbulenta década de 1920. Não há dúvida de que
apoiou o movimento, pois nele via, como todos os artistas da época,
um caminho de libertação estética. A rigor, entretanto, o Modernismo
pouco ou nada teria a ofertar-lhe em termos de subsídio literário ou
de plataforma estética. E mais: à época da agitação modernista, o
poeta Dante Milano já estava pronto, infenso, portanto, a quaisquer
aquisições mais profundas e radicais do ponto de vista formal, ainda
que aberto e sensível às conquistas expressionais do movimento".
Nascido em 1899, rigorosamente
contemporâneo dos grandes chefes de 1922, o registro civil nada
significa no seu caso. Seu aparecimento em livro (único a fixar
cronologias válidas) ocorreu em 1948, quando o Modernismo passara
para a história e já era um "passadismo", permitindo-lhe tornar-se
contemporâneo da geração estatizante que toma os primeiros lugares
na década de 1940. Assim se explica a sua recuperação crítica,
infelizmente como um antepassado que se sobrevivia. Acresce que foi
um período de pouca vitalidade poética, seus nomes e numes tutelares
já então estatuficados como mestres do passado (Bandeira, Drummond,
Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt...).
Se pensarmos que, pela cronologia,
tanto Dante Milano quanto João Cabral de Melo Neto pertencem à
Geração de 45 (sem que nada de comum exista nas respectivas obras
poéticas e códigos de composição), será fácil perceber que os
esquemas didáticos pouco significam, porque também os concretistas
vieram dessa geração, incubados no viveiro do Clube de Poesia de São
Paulo. Os concretistas se constituíram, de fato, na última "escola"
formalmente organizada, com estatutos, decálogos, doutrina canônica
e códigos de exclusão (e inclusão...).
Depois disso, perderam-se as
coordenadas orientadoras, a tal ponto que competentes autoridades em
matéria poética, como Berta Waldman, Antônio Carlos Secchin, Nelson
Vieira (norte-americano), Sérgio Flores (cubano) e Roberto Drummond
conferiram o prêmio de poesia Casa de las Américas de 1997 ao livro
de Ângela Leite de Souza (Estas muitas Minas. Rio: Record, 1998),
com o qual voltamos anacronicamente ao fácil pitoresco regionalista
do primeiro modernismo, o da poesia pau-brasil. Há o regionalismo
mineiro de Carlos Drummond de Andrade e o provincianismo mineiro de
Ângela Leite de Souza, um e outro propondo gabaritos tão inevitáveis
quanto indispensáveis. É na linha drummondiana da poesia
confessional e memorialística que se situa Cassiano Nunes
(Poesia-II. Rio: Galo Branco, 1998). Poesia menor, no caso, aquela
que, justamente mantém o clima poético das literaturas.
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