Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Affonso Romano de Sant'Annna:
Poeta do Nosso Tempo



(in Jornal do Brasil, Caderno B, 04.10.1980)


 

Em matéria de poesia, criticar os "mestres do passado" e apontar-lhes os defeitos é mais fácil (e menos arriscado) do que reconhecer os mestres do presente e distinguir-lhes os méritos; o poeta verdadeiramente novo e contemporâneo (no sentido forte da palavra) é tanto mais raro e difícil de identificar quanto a maior parte deles continua, por um lado, a reescrever, com outras palavras, os mesmos poemas que já passaram por inovadores e, por outro lado, a imaginar que a grande, poesia acontece por acaso e resulta de um golpe de sorte como no jogo de dados (essa é a fonte da desleitura famosa que levou os concretistas brasileiros a tomar um poema de Mallarmé como receituário alquímico de toda poesia).

No caso de, Affonso Romano de Sant'Anna, porém (Que País É Este? e Outros Poemas. Rio: Civilização Brasileira,. 1980), não pode haver nenhuma dúvida: ele é não só um poeta do nosso tempo, integrado nos seus problemas e perplexidades, nas incertezas sucessivas em que as certezas se resolvem, mas é também o grande poeta brasileiro que obscuramente esperávamos para a sucessão de Carlos Drummond de Andrade.

O segredo de sua extraordinária qualidade como poeta está em que ele é, antes de mais nada, um intelectual de alto gabarito, sem nenhuma das ingenuidades mentais que mantém a produção corrente no nível rasteiro das pequenas emoções domésticas e nas dimensões microscópicas da autobiografia insignificante. Affonso Romano de Sant'Anna, em importante variação de um postulado célebre, não é o homem para quem o mundo exterior existe: é um homem para quem o mundo existe e que se sente existir no mundo, é um homem em quem o Brasil dói, para lembrar a extraordinária declaração de Unamuno: "Me duele España". Isso corresponde, no plano do destino e da condição humana (infinitamente acima das ironias fáceis e das assimilações conjunturais), ao verso de Bilac:

"Pátria, latejo em ti...", ou ao que ele significa, eco e desdobramento espiritual do que podemos ler em O Caçador de Esmeraldas: "Ah! quem te vira assim, no alvorecer da vida, / Bruta PátRia, no berço, entre as selvas dormida, / No virginal pudor das primitivas eras (... )". O Brasil dói, em muitos de nós e em Affonso Romano de Sant'Anna, na medida em que não corresponde às promessas implícitas na sua história, na sua realidade profunda, na medida em que parece burlar a visão mística dos nautas que, "erguendo a ponta do manto", viram, à beira d'água, abrir-se o Paraíso".
 

Tudo isso só pode parecer ingênuo e idealizante para os que, justamente, não sentem doer o Brasil, para os que o dissolvem na pasta informe das teorias e dos mandamentos prévios, para os que se pretendem emancipados da idéia de Pátria no momento mesmo em que, contraditoriamente, a reivindicam e pretendem monopolizar. Mas, claro, o "país" de Affonso Romano de Sant'Anna, mesmo concedendo o espaço que se deve às alusões irônicas, não é a "pátria" do poeta parnasiano, sem deixar tampouco de sê-lo: a diferença de vocabulário desvenda a implantação nos tempos históricos diferentes em que um e outro viveram e pensaram. Contudo, não há mal-entendido possível nem ambigüidade nenhuma no poema Como Amo Meu País e no que dá titulo ao volume, um e outro traçando as perspectivas em que devemos lê-lo todo e, em particular, a passagem: "Percebo / que não sou um poeta brasileiro..." Na verdade, em toda a sua obra, desde Canto e Palavra (l965), ele é o mais brasileiro de todos os nossos poetas destes últimos 30 anos, aquele em cuja obra o Brasil é uma realidade mítica atuante e latejante, cujo sentido ele procura interpretar. O mito, propunha Karl D. Uitti em páginas conhecidas; não é "ingrediente" da poesia, qualquer coisa como uma referência pitoresca e exterior com que simular profundidade de concepção: a poesia como tal e em si mesma é mito, é uma forma peculiar de visão, é ela própria a criação de um mito específico.

A de Affonso Romano de Sant'Anna é grande poesia por ser literatura, por ser uma criação intelectual (não cerebral), originando-se na "ansiedade da influência" de que fala Harold Bloom, isto é, na memória permanente e, em cada momento, atual, de toda poesia já escrita (Poesia Sobre Poesia, 1975) - e, ao mesmo tempo, sabendo usar a poesia do passado como instrumento e provocação catalítica para exprimir emoções que jamais foram expressas antes dele; porque são as emoções de uma sensibilidade de brasileiro dos nossos dias (assim entendidos, como ficou dito, os últimos trinta anos). Ora, um dos elementos estruturais dessa sensibilidade é a consciência da Pátria como uma realidade não só continental (o que, na verdade, corresponde a diluí-la e desfigurá-la), mas, ainda, ancestral e crônica (A Grande Fala do Índio Guarani Perdido na História e Outras Derrotas, 1978); agora, os mitos políticos superpõem-se às realidades históricas e concorrem para destruí-las e conformá-las ao mesmo tempo, sendo apenas a face primordial dos mitos literários representados pelas vanguardas e destinados, é evidente, à mesma rápida desmonetização.

Affonso Romano de Sant'Anna já viveu e escreveu suficientemente para desiludir-se das sucessivas vanguardas literárias. Ele conserva a ternura num canto do coração para os mitos políticos continentais e escatológicos (na acepção teológica do termo) que condicionaram o pensamento dos nossos coevos: ser brasileiro é menos do que ser "latino-americano", ser civilizado é menos do que ser selvagem ou primitivo, a visão do Paraíso é simultaneamente projetada para o passado, na nostalgia de uma reversão histórica impossível (visão romântica que condiciona todo esse processo mental) e para o futuro, que não deve ocorrer como simples decorrência da passagem do tempo, mas como objeto plástico que podemos moldar com as mãos (ou com a fantasia). A figura legendária do "revolucionário latino-americano" (cuja personalidade e comportamento foram fixados na "Europa dos antigos parapeitos") é a do cavaleiro andante, percorrendo continentes e regiões longínquas na empresa enobrecedora de combater os dragões da maldade, desfazer injustiças e partindo sempre na busca incessante de novas proezas em territórios hostis: o "poema dei Mio Cid" translitera-se como "Poema dei Mio Che" (Poesia Sobre Poesia), assim como, escrevendo o poema do inferno nova-iorquino em que Sousa Andrade malogrou ("Empire State Building"), Affonso Romano de Sant'Anna assimila o poeta a Jesus Cristo no alto da montanha, exposto às tentações diabólicas do mundo. mas sabendo resistir-lhes. Em estudo luminoso ("The Questing Knight"), Eugène Vinaver demonstrou que os cavaleiros andantes, ao contrário do, que se imagina, passaram da literatura para a vida, em desenvolvimento exatamente simétrico ao que testemunhamos em nossos dias (cf. The Binding of Proteus. Perspectives on myth and the literary process. Volume coletivo organizado por Marjorie W. McCune e outros, 1980). Assim, a literatura propõe os seus mitos à realidade e grandes poetas como Affonso Romano de Sant'Anna reelaboram a tosca realidade, que é transitória e fugaz, nos textos permanentes da literatura que sobrevive à cidade e aos dias.

 




Leia a obra de Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

 

 

24/08/2005