Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



17.11.97



A Felicidade pela Agricultura
 



 

Como o espírito sopra onde quer, é da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR) que vem, em quarta edição bilíngüe e integral, traduzido e organizado por Raul José Sozim e Sérgio Monteiro, um clássico setecentista das ciências naturais no Brasil - De rebus rusticis Brasilicis carminum (Temas rurais do Brasil. Ponta Grossa: UEPG, 1997). Acreditam os organizadores que a obra "tem toda a sua temática e estrutura baseadas numa obra congênere: Cultura e Opulência do Brasil (1711), de André João Antonil (pseudônimo do jesuíta João Antônio Andreoni), dando a nítida impressão de serem os
versos latinos a réplica poética daquilo que Antonil tratara em prosa vernácula."

Não se pode excluir, entretanto, a hipótese contrária, conforme observei na História da inteligência brasileira I, ao examinar o tenebroso "parênteses censório" em que se viu envolvido o livro de Antonil e subseqüente interdição. De fato, jesuíta e sediado no Colégio da Bahia, ele "não poderia desconhecer, embora inédita, a obra realmente representativa da idade mental luso-brasileira nesse momento: 'o elegante Carmen De Opificio Sacchari ', como o qualificava frei Conceição Veloso, 'composto pelo Pe. Prudêncio do Amaral, filho da Bahia'." Este último não teve a satisfação de ver impresso o seu trabalho, que somente apareceria em 1781, publicado em Roma pelo Pe. José Rodrigues de Melo (1704-1783?), que lhe acrescentou os seus próprios poemas, tudo sob o título acima indicado. Ao traduzi-los e publicá-los, em 1830, no tomo II de suas Poesias, João Gualberto dos
Santos Reis (1787-1861) deu-lhes o nome de Georgica Brasileira; em 1941, reeditando o volume sob os cuidados de Regina Pirajá da Silva, a Academia Brasileira de Letras meteu-lhe o título no plural, para acentuar ainda mais o óbvio paralelo com Virgilio - autor que, nas palavras de E. R. Curtius, "criou o modelo de toda a poesia artística do
Ocidente" (cit. por Joaquim-Francisco Coelho. "Às margens de um verso de Virgilio". Colóquio/Letras 142, outubro-dezembro 1996).

Virgilio, se era infalível em matéria poética, já o seria menos no que à agricultura se refere (apesar das Georgicas !). É o que Vicêncio Alarte não se acanhava de afirmar em livro português, publicado um ano depois de Cultura e opulência do Brasil: "A opinião de Virgilio é que nos outeiros está o melhor sítio para as vinhas, porém é engano manifesto, salvo se a terra destes outeiros é muito pingue, mas sendo a que costuma, que é de ordinário de menos substância, não são as
vinhas que nela se plantam as que convêm ao lavrador, porque, com as águas se tira a substância da terra, se deslava e fica inútil, e ainda esta corre para os baixos descarnando as plantas [...]."

Vicêncio Alarte era pseudônimo do Dr. Silvestre Gomes de Moraes (1644-1723), professor de Coimbra e grande vinhateiro aos olhos do Senhor (Agricultura das vinhas, / e tudo o que pertence a elas até o perfeito recolhimento do vinho, e relação das suas virtudes, e da cepa, vides, folhas e borras. Texto sob os cuidados de Heitor Megale e Hélio
Pimentel. São Paulo: T.A. Queiroz, 1994), que tampouco elogiava os métodos dos antigos vinhateiros portugueses, por não fazerem distinção nas uvas, "misturando brancas e pretas, boas castas e más e ainda hoje, ordinariamente, fazem o mesmo [...]." Não admira que fosse também erronea a lição do poeta, confiante nas práticas agrícolas dos seus contemporâneos.

Alarte dedica todo um capítulo aos "danos que faz o vinho demasiado", lembrando, entre outras (aliás contraditórias), as ponderações de um mestre da sabedoria: "Platão, na República, recomenda a abstinência do vinho aos meninos até idade de quinze anos [...] e depois desta idade, aconselha que bebam muito para tirarem as incomodidades, moléstias e enojos da vida [...]", do que Alarte discordava com franqueza: "posto que alguns digam que esta opinião não se deve de todo reprovar [...] contudo esta opinião é notoriamente convencida, porque toda a demasia do vinho faz os efeitos que deixamos referidos, e toda a embriaguez é perniciosa à saúde [...]." Vindo de um vinhateiro, deve ser verdade.

Quanto às Georgicas Brasileiras, título que valeria conservar
como tributo à veneranda tradição virgiliana, pode-se pensar que, apesar do que parece evidência bibliográfica, o livro de Antonil talvez não seja a "obra mais antiga", sendo difícil imaginar que o furbo jesuíta desconhecesse os manuscritos da Companhia quando se dispôs a tratar da mesma matéria em língua portuguesa, ele próprio omitindo o importantíssimo capítulo sobre a mandioca, que certamente também teria faltado no poema de José Rodrigues de Melo se tivesse sido inverso o trajeto da paráfrase. Lembre-se, de passagem, que era coletiva a noção de autoria entre os jesuítas. Alarte punha o seu livro sob a proteção da Virgem Nossa Senhora, o que era, sem dúvida, mais católico do que as divindades pagãs invocadas por José Rodrigues de Melo por pura convenção da poética clássica.

Se Virgilio, ao que parece, era um agricultor de gabinete, o jesuíta revela incontestáveis conhecimentos práticos e inegável experiência direta do trabalho agrícola. Assim, por exemplo, quando alude ao insidioso veneno que se esconde na mandioca: "Eis que, enquanto as prensas estridentes esmagam os cestos cheios, das junturas corre um líquido branco (Liquor hic dulcis, sed venenosus, diz a nota latina). [...] Faze de modo que tenhas os rebanhos longe daí [...] pois, na verdade,
essa bebida atrai as reses, seduzidas tanto pela doçura natural, como pela cor branca; ela contém, todavia, insidiosa, um veneno mortífero; e, logo que haurirem a peste das fibras, as reses atacadas pela fúria são levadas pelos campos e se agitam", - requerendo cuidados imediatos.

Contudo, um mingau de mandioca, preparado com leite em fogo brando, mais a flor da cana-de-açúcar e três gemas, curou-o da tuberculose ou do que parece ter sido, antes, a consumpção resultante das carências alimentares do regime conventual. Daí o cântico celebratório com que termina o Livro Segundo: Salve, o Diva potens!, exclama mais uma vez em latim herético, revelando lá longe, na Roma do paganismo, a nostalgia das terras ridentes em que havia vivido: "Oh, vales! Doces vales de sombra e frescor! Oh, lindos montes! Oh, campos do sítio bem-aventurado! Eu, ausente em regiões tão longinquas, suspiro por vós, e vos percorro com ânimo saudoso: recebei este derradeiro lamento de um infeliz, e adeus para sempre." Aeternumque valete.

 

 

 

 

 

24/08/2005