Wilson Martins
18.08.97
Azimutes da Poesia
De Goiás a Pernambuco, do Rio de
Janeiro ao Paraná, de São Paulo a Minas Gerais e da Paraíba a
Brasília, os poemas se multiplicam, embora nem sempre a poesia os
acompanhe. Dizia Fernando Pessoa num momento de sarcasmo, que muitos
escrevem
como Deus é servido - e Deus fica mal servido. A produção brasileira
é enorme e, como é natural, as oscilações de qualidade obedecem à
lei dos grandes números: ao contrário do contra-senso que
freqüentemente se comete na leitura de uma anedota mallarméana, o
poema é feito de palavras (o que está ao alcance de todos), mas a
poesia faz-se com idéias (o que não está ao alcance de qualquer um).
Acrescento desde logo que a grande literatura e, por decorrência, a
grande poesia, dependem do caldo de cultura proporcionado por uma
vida literária intensa: para existir obras excepcionais, é preciso
que existam as menos excepcionais, a mediocridade abundante sendo a
condição necessária da genialidade ocasional, assim como as flores
do jardim originam-se em adubos mal cheirosos. É uma dialética que
os
espíritos simples se recusam a aceitar, mas a verdade é que o verso
não foi dado por acréscimo a muitos que receberam o sentimento da
poesia. Há poetas apenas por escreverem versos, dizia Thibaudet, não
escrevem versos por serem poetas.
Nessas perspectivas, como e onde
situar o poeta paranaense Sérgio Rubens Sossélla? É autor (30 anos
esta noite: poemas de 1966 até aqui. Paranavaí, PR: Edições
Meio-Dia, 1996) que informatizou a mansão da poesia no sentido
próprio da palavra, na técnica e na criação, não apenas por escrever
no computador, mas por fazer dele a
matéria mesma da invenção poética. Contam-se por dezenas os volumes
que publicou, nos quais a composição eletrônica confere um aspecto
gráfico peculiar e original, todos contendo poemas quase sempre
reduzidos a simples dísticos e ordenados (?) por meio de títulos
algo enigmáticos, grafados com minúsculas obrigatórias (como os
poemas) e de remotas relações com a matéria: um trem é um etc.; das
vegetações de rousseau; cine curitiba; de hieronymus bosch; em
hieronymus bosch - para citar apenas alguns dos que se acrescentaram
neste ano à obra iniciada em 1966 com sobrepoemas e desde então
aumentada por aluvião de abundantes produções anuais, tudo
culminando, até ao momento em que escrevo, com os poemas espirituais
de 1997.
Os dísticos tomam freqüentemente a
formulação epigramática, assemelhando-se na técnica ao que podemos
denominar o haicai livre, assim como outrora se falava no verso
livre:
um passarinho
e uma borboleta
?o que eles são?
dois vôos.
Para os poemas mais longos, ele passou
a adotar a impressão individual em folhas soltas, lembrando o
cantochão hierofântico de um dos nossos grandes poetas desconhecidos
e injustiçados, o grego Theon Spanudis (v. Wilson Martins. "Ao poeta
desconhecido". Pontos de vista 10, 1995) - um e outro praticantes da
poesia enumerativa de ressonâncias crucisousianas, com base nos
adjetivos. Eis um exemplo:
flores oníricas, líricas
flores indexadas, folhas soltas, mais tarde reuníveis,
[paginadas
flores (de uma vez só) surrealistas, românticas, natura-
[listas
e assim por diante, em 36 linhas, terminando:
flores anatômicas, colegiais
flores bovinas, proverbiais
flores faceiras
flores calmas, nunca ligeiras
flores companheiras
flores pré-escritas, textuais.
Nessa linha, contam-se ainda um poema
cresce o outro; nossa senhora dos viajantes e o autobiográfico ? por
onde tem andado, Sossélla?: converso com o pessoal em paranavaí. os
dilacerados cegos de alphonsus de guimaraens filho que tanto viram e
agora se recusam a esse diário compa [recimento. [...] contudo minha
mãe do céu
?e as obras nas prateleiras?
Sossélla, creio eu, não é para ser
lido na seqüência normal das páginas, mas pelo método marítimo das
sondagens, muitos dos seus poemas sendo simples jogos de espírito: "josé
veríssimo é parecido / com george bernard shaw", ou então: "eu não
me repito. / eu faço igual". Será essa a poesia do futuro,
digitalizada não apenas nos
processos de impressão gráfica, mas ainda e sobretudo na maneira de
conceber e de sentir, nos automatismos do pensamento? Note-se que a
sua capacidade inventiva parece inesgotável, ainda que condenada a
um efeito perverso: "fazendo igual", parece solipsística,
repetindo-se justamente pelo impulso da própria renovação. É poesia
intelectualista (se o oxímoro for permitido, por inevitável), que
recusa os "estados de
alma" tão caros aos poetas românticos, que ainda se prolongam em
obras recentes, digamos, Neide Archanjo. Pequeno oratório do poeta
para o Anjo. Rio: ed. da autora; Majela Colares. O soldador de
palavras, e Geraldo Falcão. O viajante anônimo, ambos nas Edições
Ateliê, de São Paulo.
Arrolando os autores em ordem
alfabética pelos primeiros nomes - prática considerada
bibliograficamente incorreta - Gabriel Nascente frustrou a visão
cronológica que justifica as antologias históricas (Goiás, meio
século de poesia. Goiânia: Kelps, 1997). Do período romântico à
atualidade, as escolas e as estéticas se sucederam sem se
substituirem, mas, confundindo autores de tendências diversas e até
opostas na falsa contigüidade dos nomes, o organizador acentuou, sem
querer, seja o anacronismo de alguns deles, seja a arbitrariedade
incompreensível de outros em tal contexto. Como é de norma na
província, as vanguardas poéticas, por um lado, costumam ser
reflexas, e, por outro, sobreviventes delas mesmas: em Goiás como em
outros estados, escreviam-se poemas modernistas na década de 40 e
depois, para o que concorre, bem entendido, o tropismo regionalista
que é o máximo denominador comum das nossas letras. Ao lado desses
modernistas extemporâneos, encontramos os românticos da lírica
amorosa e da descrição pitoresca, além, claro está, dos que sucumbem
à ansiedade da influência, que, apesar de tudo, mantém a vida
literária, se é verdade que a não revitaliza.
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