Wilson Martins
04.08.97
Para quê ? para quem ?
Escreve-se - mas, qual a utilidade ou
a necessidade da literatura? Trata-se de entreter e distrair o
leitor, responde Carlos Felipe Moisés, mas há também "obras que
geram dúvidas, causam perplexidade ou conduzem a surpreendentes
revelações; certas obras inquietam, em suma, e não chegam a
propiciar entretenimento propriamente dito"
(Literatura para quê? Florianópolis: Editora Obra Jurídica, 1996).
Há, por consequência, duas literaturas
ou duas formas de literatura, assim como há uma multiplicidade de
leitores, ainda que os especialistas costumem se referir ao leitor,
no singular, como se fosse uma entidade unívoca e homogênea. A
crítica existe para distingui-las como literaturas (no plural) e
para distingui-los enquanto leitores, também no plural, da mesma
forma por que a própria crítica é plural e múltipla. Sua função,
escreve ainda Carlos Felipe Moisés, "talvez não consista em passar
ao leitor um julgamento mas uma atitude crítica capaz de conduzir a
julgamentos. Sua função é colaborar para a formação do gosto pessoal
do leitor e não submetê-lo ao seu próprio". Ela se constitui de
juízos contraditórios e complementares (a incongruência é apenas
aparente), conforme sugiro na nota preliminar dos Pontos de vista.
Há, pois, uma história da leitura e
uma história das leituras, nem sempre coincidentes: o "leitor" é tão
protéico quanto os escritores, uns e outros condicionados, aliás,
por conjunturas e estruturas de natureza social e histórica: quem
sabe só literatura não sabe nem literatura. Esse é o quadro proposto
por Marisa Lajolo e Regina Zilberman, que,
fundadas, embora, em universais teóricos (o "burguês", o
"capitalismo"), sugerem uma abordagem globalizante e compreensiva da
matéria (A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996).
Seu propósito era acompanhar a "paulatina e dificultosa formação do
leitor brasileiro, processo por hipótese inconcluso".
O "leitor" pode ser examinado como
público, na perspectiva sociológica, como destinatário, conforme a
Teoria da Comunicação, ou tal como o desenha o escritor, criatura
igualmente fictícia com quem um narrador dialoga e a quem procura
influenciar.
Em qualquer uma dessas figurações,
porém, o leitor é personagem da modernidade, produto da sociedade
burguesa e capitalista, livre dos laços de dependência da
aristocracia feudal e do estreitamento corporativista das ligas
medievais. Tais parâmetros parecem-me discutíveis e até
tendenciosos, seno significativo que as autoras se embaracem em
enquadramentos cronológicos arbitrários. O leitor existia, com
certeza, desde a mais alta Antiguidade: catálogos de livreiros,
escreve Otto S. Lankhorst, mostram a abundância de livros que
afluíam para a Holanda, vindos de todos os países da Europa. A
título de exemplo, contam-se em 1674 20.000 títulos no famoso
catálogo da livraria de Daniel Elzevir, apresentando descrições
bibliográficas quase modernas. Em Rotterdam, o livreiro Reinier
Leers publicou entre 1692 e 1709 uma série de onze catálagos (...).
No total, esses onze catálogos reúnem os títulos de 4.419 obras
(...). "E assim por diante, sendo desnecessário lembrar a obra
extraordinária dos grandes editores renascentistas, e tudo o que se
vinha fazendo desde os conventos medievais. Se havia tantos livros,
haveria, sem dúvida, um corpo substancial de leitores. Claro, a
questão não é tão simples quanto parece, porque, na verdade, o
"leitor" não existe. Será necessário distinguir, em particular, o
que Roger Chartier denomina de "estilos de leitura": "Na segunda
metade do século XVIII a leitura extensiva sucedeu à intensiva",
fenômeno que alterou substancialmente todas as perspecivas (v. Rober
Chartier, dir. Histoires de la lecture, Paris: La Maison das
Sciences de l'Hme, 1997).
Repetindo um lugar-comum generalizado,
afirmam as autoras que, "no Brasil do século XIX não foi possível à
maioria dos escritores viver de sua literatura". A conclusão
implícita é a de que, em outros tempos e países, isso tenha sido
possível, quando, na verdade, "desde que existem homens e que
escrevem", como diria La Bruyère, os escritores dependem de recursos
próprios ou do mecenato privado ou público, sendo reduzidas, por
definição, as rendas provenientes de direitos autorais. A chamada
"segunda profissão" é, em regra, a primeira de todos eles. É ao que
se reduz, em última análise, o princípio dos direitos autorais,
invenção "capitalista" bem anterior à Revolução Francesa, ao
contrário do que acreditam as autoras: foi criação jurídica da
Inglaterra capitalista nos primeiros anos do século XVIII (v. Wilson
Martins. A palavra escrita, 1957 / 1996). Reconhecendo socialmente a
legitimidade da profissão literária, os direitos autorais remetem ao
problema correlato da instrução escolar, fonte originária,
indispensável e necessária da leitura.
Claramente influenciadas pela visão
malevolente de Raul Pompéia, as autoras encaram com evidente má
vontade a figura de Abílio César Borges, responsável, no seu tempo,
pela modernização do ensino e notável pelo desinteresse com que
distribuía gratuitamente pelos estabelecimentos de ensino público e
privados os livros didáticos
de que necessitavam. No conjunto, entretanto, este estudo é uma
valiosa pesquisa, feita com seriedade intelectual e perfeito
conhecimento dos problemas que implica. É, em particular, de grande
interesse o quadro sinóptico sobre a remuneração do trabalho
intelectual no Brasil, de 1820 a 1930, que, segundo creio, é a
primeira vez que se realiza entre nós.
De fato, nada significam nelas mesmas
as importâncias pagas em outros tempos aos escritores a título de
direitos autorais: são valores relativos ao poder aquisitivo da
moeda em cada momento, o que mais uma vez nos devolve aos
imperativos do capitalismo e aos ideais burgueses de vida.
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