Wilson Martins
03.02.97
Folhetim e Telenovela
A história da editora Ática não tem
nenhuma relação necessária com a de Marcos Rey enquanto escritor, de
forma que a sua reunião num estudo de conjunto só se justificaria se
se esclarecessem mutuamente em aspectos fundamentais. Não é o que
acontece na
realidade e, por conseqüência, não é o que acontece no livro de
Sílvia Helena Simões Borelli (Ação, suspense, emoção. Literatura e
cultura de massa no Brasil. São Paulo: EDUC/Estação Liberdade,
1996). A autora os tomou como "focos privilegiados" para análise do
"mercado de bens simbólicos", escreve Edgard de Assis Carvalho na
introdução: "a Ática, porque edita, principalmente, livros
didáticos, paradidáticos e ensaísticos; Marcos Rey, porque escritor
que consegue combinar literatura adulta e infanto-juvenil com
áudio-visual, crônicas, teleplays, minisséries, telenovelas, numa
espécie de escritor hologramático []"
- versatilidade que, em si mesma, não caracterizaria a cultura de
massa, assim como a não caracteriza a multiplicidade editorial da
Ática.
De fato, a expressão "cultura de
massa" tem sentido específico no vocabulário intelectual e, por
surpreendente que pareça, não depende do volume do público a que se
destina. É, antes de mais nada, uma noção de qualidade, é a cultura
popular implicitamente contrastada com o que se tem por alta
cultura, identificando-se com os produtos destinados especificamente
ao entretenimento mais do que por seu
valor intrínseco, e com artefatos destinados à venda no mercado em
resposta ao gosto das massas mais do que ao dos entendidos, e com
coisas criadas pela reprodução mecânica, como a imprensa, os discos
e as ilustrações.
Não se trata de distinções
"direitistas" e reacionárias: um esquerdista como Dwight Macdonald
declarou que a cultura de massa corrompeu a alta cultura, se é certo
que outros, como Edward Shils, sem dar pela incoerência, defendem a
idéia de que as gravações de música séria e outras de arte elevam o
gosto popular, incluindo um
público maior na sociedade (v. The Harper dictionary of modern
thought. Eds. Alan Bullock/Oliver Stallybrass). É também o que pensa
Sílvia Borelli: há um "preconceito" da crítica contra a literatura
popular, tratando-se agora de "remover mecanismos de exclusão e
transformar estes objetos em legítimas manifestações culturais e
literatura." O que corresponde a reconhecer a validade do
"preconceito".
Assim, a literatura didática e
paradidática não pode ser vista como literatura de massas, da mesma
forma por que, apesar dos seus milhões de exemplares anuais, não se
enquadram na categoria convencional dos "mais vendidos". A poesia
popular autêntica, que é de natureza folclórica, não se confunde com
a literatura de massas,
fabricada segundo estereótipos invariáveis. No campo literário,
escreve Sílvia Borelli, "as contraposições parecem localizar-se mais
nos limites entre a produção de uma textualidade erudita e a
elaboração de narrativas construídas de acordo com padrões de
fabricação industrializados inerentes à indústria cultural."
A telenovela, por exemplo, pertence ao
universo da literatura de massas e, claro está, à subliteratura: é o
folhetim melodramático do nosso tempo, com penetração, aliás,
incomparavelmente maior que a dos seus pobres antepassados
tipográficos. A tal ponto que, "adaptando" para a TV o romance
Helena, de Machado de Assis, o roteirista não hesitou em
"melhorá-lo" nem em acrescentar-lhe numerosas seqüências para
conformá-lo ao gosto do público e, claro, estender-lhe a duração. O
folhetim, de seu lado, não se confunde com a crônica, apesar do que
sugere a autora. Suas regras são específicas e invioláveis, a mais
importante sendo o suspense obrigatório ao fim de
cada episódio. Os antigos filmes em série eram a realização perfeita
do folhetim jornalístico, assim como a telenovela é a forma
contemporânea do filme em série. Não é pela serialização que se
definem, mas pelas interrupções dramáticas dos episódios.
Inclinada às digressões, a autora
recapitula em pormenor as teorias e autores de perto ou de longe
relacionados com o seu tema. Ela sabe, por exemplo, que a concepção
arcaica de romance "não deve ser confundida com outras formas
posteriores do romance moderno", mas nem por isso quer perder a
oportunidade de resumir as idéias
do medievalista Paul Zumthor. Seria de esperar que também
reexpusesse a doutrina da Escola de Frankfurt, referência canônica
até há pouco nos trabalhos universitários. Da Escola de Frankfurt
passamos a Umberto Eco e deste para Antônio Gramsci sobre o
conceito de popular nas sociedades modernas. Os franceses mais
recentes não são tampouco esquecidos, além de tudo o que já se
congeminou sobre a natureza e singularidades da novela policial.
Em tudo isso, faltou o essencial e é o fato de Marcos Rey, escritor
talentoso e versátil, jamais ter alcançado a estatura de escritor
nacional. O que acima de tudo o distingue, observa Sílvia Borelli,
"é a pluralidade de atividades": produtor cultural de múltiplas
faces, "escreve romances e literatura infanto-juvenil; faz novelas e
minisséries para TV; trabalha em agências de publicidade; colabora
na confecção de inúmeros roteiros cinematográficos", além das
crônicas e trabalhos menores. Ele é "universalmente conhecido" em
São Paulo, como diria aquele personagem de Lubitsch, mas ainda não
foi incluído no elenco das referências indispensáveis.
A verdade é que, levado pela
versatilidade do seu talento, ele se dispersou em atividades
apressadas e "fáceis". Encontram-se nos seus livros e em todos eles
numerosos trechos de boa literatura, logo diluídos no ácido das
letras de carregação. É autor que devia desconfiar da facilidade e
seguir as suas inclinações - no sentido da subida, como recomendava
o malicioso André Gide.
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