Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



22.12.97



O caso Monteiro Lobato
 

 


 

Referi-me na História da inteligência brasileira (VI, p. 14) ao "inexplicável mal-entendido" que levou os jovens turcos de 1922, em busca de respeitabilidade, escolher Graça Aranha como um patrono que nada tinha com o assunto, em vez de procurar Monteiro Lobato, que seria, por todos os títulos e motivos, a começar por "Urupês", o chefe natural do movimento e da reforma estética; isso criou entre eles o abismo fatal que jamais se pôde transpor, malgrado o fato de Monteiro Lobato ter sido, no campo da ação e das idéias sociais, econômicas e políticas, o praticante mais sistemático e característico do programa modernista.

É o que Oswald de Andrade reconheceria, anos mais tarde, numa passagem de Ponta de lança: "Mas você, Lobato, foi o culpado de não ter a sua merecida parte de leão nas transformações tumultuosas, mas definitivas, que vieram se desdobrando desde a Semana de Arte de 22. Você foi o Gandhi do modernismo."

Segundo o folclore polêmico e tendencioso que se transformou na mais resiliente e falsa das verdades aceitas de nossa história literária, tudo decorreria do "ataque cruel" de Monteiro Lobato a Anita Malfatti a propósito da legendária exposição de 1917. Traumatizada pela crítica, ela se teria transfigurado, como já se disse em formulação hiperbólica, na "protomártir" do Modernismo. Ora, a má-fé de Mário de Andrade e seus companheiros, apanhados de surpresa por uma novidade de que até então não tinham nenhum conhecimento, levou-os a salvar a face, desviando a atenção para a figura clássica do bode expiatório, no caso o autor de Urupês.

Na verdade, costuma-se condenar-lhe a ignorância e estreiteza de espírito, mas foi Mário de Andrade quem caiu às gargalhadas ao visitar a exposição pela primeira vez - gargalhadas que só substituiu pela reivindicação teórica quando percebeu o partido polêmico que poderia tirar do incidente. Tadeu Chiarelli (Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995) retomou aquelas perspectivas de 1978, assim como Vasda Landers as havia retomado alguns anos antes (De Jeca a Macunaíma. Rio: Civilização Brasileira, 1988), para restabelecer não só a realidade histórica, mas também o contexto psicológico de personagens e situações que configuraram a literatura brasileira nas três décadas seguintes.

Porque é também de uma história psicológica que se trata - a de Mário de Andrade com relação ao movimento cultural de que desejava ser mentor absoluto, o que, aliás, conseguiu, seja pelo fascínio que exercia, seja pelos lugares-comuns convencionais que se acumularam em torno do seu nome e que acabaram por sacramentá-lo como "papa" do Modernismo. Foi, pois, uma campanha vitoriosa. Era um espírito dominador, lutando sem descanso para desautorizar Graça Aranha como o "chefe" que havia sido na primeira hora, assim como não tolerava qualquer veleidade de independência por parte dos discípulos.

História tenebrosa que está emergindo aos poucos, na mesma medida em que esmaece, à luz de novos documentos, o temor reverencial que sempre despertou e que com grande sutileza alimentava. No que se refere mais especificamente a Anita Malfatti, são reveladoras as conclusões sugeridas pelas cartas que dele recebeu, coligidas em edição modelar por Marta Rossetti Batista (Rio: Forense-Universitária, 1989), por mim comentadas nos Pontos de vista (vol. 12, 1996).

Pois Monteiro Lobato está ressurgindo do inferno mitológico a que as idéias feitas o haviam condenado, e não só ressurge como parece haver deixado numerosa descendência sentimental, identificada por J. Roberto Whitaker Penteado (Os filhos de Lobato. O imaginário infantil na ideologia do adulto. Rio: Dunya, 1997). Seu caso mental não é menos complexo que o de Mário de Andrade, tudo indicando que se consagrou à literatura infantil quando se viu rejeitado pelos modernistas, tomando contra eles a vingança das copiosas edições que se multiplicavam, enquanto os adversários, de seu lado, mandavam imprimir em conta de autor e tiragens simbólicas, os seus petardos revolucionários (Mário de Andrade, por exemplo, pagou a Paulicéia desvairada em módicas prestações). É certo que, a princípio, o próprio Lobato se beneficiou com a generosidade do poder público: além dos seus esforços de comercialização, escreve Whitaker Penteado, o Narizinho foi "adotado pelo governo estadual como livro de leitura para as escolas de primeiro grau." Segundo os levantamentos existentes, estima-se em um milhão e trezentos mil os volumes dessa literatura tirados entre 1927 e 1955.

De inspiração esgotada, ele se transformou em visionário de empreendimentos industriais e em publicista político. Ardoroso entusiasta da civilização norte-americana, foi preso e processado como comunista por defender a entrega da exploração do petróleo à iniciativa privada. Os paradoxos se acumulam uns sobre os outros, cada um deles gerando o seguinte. Whitaker Penteado conclui que, "entre metade e três quartos das pessoas que, nos anos 80 e 90, ocupam posições de liderança na sociedade brasileira - pela idade, grau de instrução e/ou capacidade econômica - leram, na sua infância e juventude, os livros infantis de Monteiro Lobato."

Mas, ai dele! ai de nós! Já não lhe reeditam os livros, agora obsoletos, creio eu, nas histórias, no caráter dos personagens, nas situações, na ideologia, na apresentação gráfica. Mesmo a falsa recuperação televisiva foi uma adulteração desfiguradora: "Na produção da Globo, a obra de Lobato ganhou cores, música especial, histórias novas [!!!] e enredos que - em grande parte - descaracterizaram o 'universo' dos livros infantis e obscureceram o seu conteúdo ideológico."

 

 

 

 

 

24/08/2005