Wilson Martins
O Manifesto Regionalista
que não Houve
A 7ª edição do famoso "Manifesto
Regionalista", de Gilberto Freyre (org. Fátima Quintas. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 1996) procura reavivar
uma polêmica que já se pode legitimamente considerar como ociosa. Em
uma palavra, trata-se de saber se esse texto foi escrito em 1926 e
então publicado como lançamento do chamado Movimento Regionalista do
Nordeste, ou se foi escrito somente em 1952, já sob a forma
retrospectiva que veio a adquirir, aceita pelos estudiosos até que o
próprio autor reconhecesse expressamente a mistificação.
Porque a verdade é que a reconheceu: a
primeira edição aparecia "25 anos depois de ter surgido oralmente",
escreveu no prefácio para a 6 edição, embora em 1951 houvesse
afirmado, em palestra no Instituto Joaquim Nabuco, que realmente
escrevera e lera durante o Congresso "as palavras que ficaram
conhecidas como 'Manifesto Regionalista'". Na realidade, e segundo o
noticiário do "Diário de Pernambuco" (9/02/1926), o trabalho lido na
primeira sessão plenária tratava da "estética e as tradições da
cozinha nordestina", tradições, essas, que estavam se perdendo. A
tal ponto que "a nova geração de moças já não sabe fazer doces. Já
não tem gosto para ler os livros de receita de família". O que, no
seu entender, era a "verdadeira leitura para mulheres, além dos
livros de missa."
Para a 1ª edição, em 1952, ele
"reconstituiu com alguns pequenos acréscimos" (sic) o manuscrito (há
anos abandonado). Assim, o pronunciamento durante o Congresso foi
"algum tempo depois publicado como Manifesto" - algum tempo sendo,
no caso, 25 anos. Divulgado "em parte por jornais da época",
escreveu no prefácio para a 5 edição, o texto reaparecia "sem
nenhuma alteração essencial", o que, bem entendido, não excluía
desenvolvimentos inspirados por sua própria história intelectual e
pelas novas perspectivas abertas pela trajetória do texto no quarto
de século desde então transcorrido.
Em 1926, tinha sido apenas uma dentre
as numerosas comunicações apresentadas num simpósio que Amaury de
Medeiros, orador oficial no encerramento, dizia estar sendo chamado,
"talvez um pouco enfaticamente, Congresso Regionalista do Nordeste."
De qualquer maneira, ninguém jamais lhe contestou a realização; o
que se pode contestar, segundo o testemunho autorizado de Gilberto
Freyre, é que o respectivo Manifesto tenha sido escrito como tal
naquele ano. Nessas perspectivas, torna-se despropositada a tática
advocatícia de desqualificar a testemunha, nomeadamente o jornalista
Joaquim Inojosa, aliás introdutor do Modernismo no Nordeste, como
responsável pela polêmica que acabou por esclarecer a questão (na
qual, ai de mim! Eu mesmo tive alguma parte).
Tratando-se de uma fixação de datas,
compreende-se mal que Antônio Dimas o censure, no prefácio, por sua
"obsessão cronológica e nominalista", o mesmo Antônio Dimas que,
entretanto, confirma: "Tudo indica que, de fato, Gilberto maquilou
seu passado, neste caso, e que Inojosa tem razão."
As primeiras vítimas das polêmicas
tendenciosas são o raciocínio desapaixonado e a isenção que o
"'Manifesto Regionalista' só veio a público em 1952 e que, portanto,
não pode ser tomado como documento fidedigno de posições defendidas
há 20 anos", mas, acrescenta em conclusão que inadvertidamente o
reduz à insignificância: "Não se pode, por outro lado, fazer de
conta que tudo depende dele, porque um outro documento, o 'Livro do
Nordeste', pode perfeitamente informar sobre as pretensões em voga
naqueles anos na capital de Pernambuco."
Não há dificuldade em aceitar que, em
1925, a edição especial do "Diário de Pernambuco" contivesse em
germe as concepções regionalistas de Gilberto Freyre. Mas, daí a
antedatar para 1924 o Congresso e seu mirífico Manifesto vai a
enorme distância que não se pode transpor. O propósito evidente
dessa reconstrução da história era torná-los contemporâneos do
Modernismo de 1922, sugerindo, ao mesmo tempo e contraditoriamente,
a sua independência e as afinidades com o que se fazia em São Paulo.
As referências ao "Regionalismo
tradicionalista e, a seu modo, modernista" tornaram-se obsessivas
nos escritos de Gilberto Freyre, até culminarem na locução
hifenizada que o descaracterizava: "Movimento
Regionalista-Tradicionalista-Modernista" (prefácio para a 6 edição),
assim como o Marxismo foi metamorfoseado, por idêntico jogo de
hifens, em "Marxismo-Leninismo-Stalinismo", até que as vicissitudes
da História o fossem, gradativa e subrepticiamente, despojando dos
apendículos, para torná-lo de novo, em nossos dias, o velho e bom
marxismo do século XIX. Paralelamente, os títulos das sucessivas
edições passaram a discretamente omitir, desde os anos 50, o
fatídico milésimo de 26.
O que até hoje tem sido negligenciado
é o estudo da ideologia por assim dizer implícita refletida na
ênfase ao tradicionalismo do Congresso. Claro, trata-se, por
definição, de ideologia de direita, no que não vejo nada a censurar,
reputando-a simétrica e correspondente às de esquerda, e por isso,
igualmente legítima. Mas, seria necessário assinalar que os mestres
de pensamento referidos no "Livro do Centenário" e no "Manifesto"
são representantes paradigmáticos da direita européia; o "espírito
poético" de Mistral e a "inteligência realista de Maurras, por
exemplo. O ensaio inicial do Livro do Centenário" deveria escrevê-lo
o insigne Antônio Sardinha, enquanto Odilon Nestor era louvado por
ser barrèsiano, e, para não faltar nada, lisonjeava-se por ter no
Conde de Aurora, em Portugal, um dos grandes entusiastas do
tradicionalismo recifense. Claro.
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