Wilson Martins
De olhos no horizonte do
Brasil
(Caderno G, Gazeta de Curitiba)
Juntamente com "O homem e seus
horizontes" (2 ed. Rio: Topbooks, 1997) - ensaios filosóficos que
escapam à jurisdição da crítica literária - Miguel Reale publica "De
olhos no Brasil e no mundo"(Rio: Expressão e Cultura, 1997), reunião
dos artigos que escreve regularmente para o "Estado de S. Paulo".
Ainda hoje costumam julgá-lo não pelo que diz mas pelo que foi, isto
é, o doutrinário mais importante da Ação Integralista Brasileira,
tratamento tendencioso que não aplicam a dom Hélder Câmara, Alceu
Amoroso Lima ou San Tiago Dantas, para mencionar apenas três nomes
exponenciais, e isso pelo simples motivo de se haverem tardiamente
convertido a um esquerdismo intelectual não menos combativo e
veemente que o direitismo da juventude. O que se deve a reflexo
psicológico induzido pela natureza farisaica das esquerdas (no
plural, por serem mais numerosas e contraditórias entre si do que se
pensa), que sempre se atribuíram uma superioridade moral sobre as
demais correntes ideológicas.
Ainda recentemente, como Miguel Reale
observasse o anacronismo histórico de se erguer um memorial a Luiz
Carlos Prestes no exato momento em que os antigos países socialistas
promoveram a derrubada geral das estátuas soviéticas, Oscar Niemeyer
não resistiu ao impulso de contestar-lhe, não as idéias, mas a
personalidade. O que ocorreria entre ele e Miguel Reale, "cada um na
sua velha trincheira", seria o seguinte: "Ele, ao que parece,
conformado com as democracias cobertas de miséria que andam por aí.
E eu ainda acreditando num mundo melhor que o ser humano, mais puro
e evoluído, um dia vai criar".
A questão não era essa, mas pouco
importa. A história demonstrou que os regimes socialistas estavam,
pelo menos, tão "cobertos de miséria" quanto as democracias, a
diferença consistindo em que, nestas últimas, os povos vivem as
cruéis realidades da realidade, enquanto os outros se justificam
pela utopia milenarista e pelos amanhãs que cantam. Contudo, Miguel
Reale não está na sua "velha trincheira", mas nas novas trincheiras
em que se foi instalando ao longo dos anos - tão longos, que as suas
origens pertencem a contexto histórico completamente diverso e a
outras conjunturas políticas, nacionais e internacionais.
Não se trata agora, escreveu em artigo
de 1993, "de voltar à superada teoria do ‘Estado forte’, que me
seduziu na juventude, na já longínqua década de 30, quando, aliás,
homens como Alcântara Machado, Afonso de E. Taunay, Paulo Setúbal,
Plínio Barreto e Mário de Andrade subscreviam o manifesto de
Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, lançando um movimento
denominado "bandeirismo", no fundo uma forma adocicada de
integralismo. (...) Daí minha opção por vias intermédias, como a do
social-liberalismo, que sem embargo do primado da iniciativa
privada, não exclui a interferência compositiva tanto do Estado como
de múltiplas organizações nacionais e internacionais da sociedade
civil".
É puro filistinismo pretender que os
comunistas dos anos 30 eram mais "puros", mais patriotas ou mais
inteligentes do que os seus adversários integralistas (e
vice-versa): basta reler o que Alceu Amoroso Lima escrevia àquela
altura e o que escreveu posteriormente. Entre tantos episódios
edificantes, é paradigmático o da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação: o mesmo Carlos Lacerda que, em 1935, propusera o nome de
Luiz Carlos Prestes para a presidência da Aliança Nacional
Libertadora, foi autor, em 1959, do substitutivo reacionário ao
projeto dos educadores, substitutivo que, sem nenhuma modificação
essencial, foi preconizado pro Darcy Ribeiro em campanha de
conferências pelos estados e afinal sancionado pelo presidente João
Goulart em 1961. Essa lei reacionária foi substituída por outra lei
reacionária em 1997 - redigida por Darcy Ribeiro.
As nostalgias milenaristas atraíam os
jovens comunistas dos anos 30 e mantêm, nos anos 90, a fidelidade
sonhadora dos velhos comunistas como Oscar Niemeyer. No caso
brasileiro, ambas as doutrinas provinham da atmosfera exaltante da
década anterior, dominada pelo programa nacionalista que conformava
o modernismo literário e o tenentismo político. É o que lembra
Abdias do Nascimento nas "Memórias do exílio": "As lutas
nacionalistas e antiimperialistas ao capitalismo e à burguesia foram
os temas que me atraíram para as fileiras integralistas". E que
atraíram outros tantos da mesma geração para as fileiras
comunistas... Não é sem razão que Alberto Torres, mestre do
pensamento nacionalista, logo se transformou em diretor da
consciência tanto de uns quanto dos outros, todos se identificando
pelas tendências "socialistas", no sentido genérico da palavra,
assim como o fascismo foi implantado na Itália pelo antigo
socialista Benito Mussolini.
Àquela altura, Plínio Salgado era o
nome emblemático que se opunha ao nome não menos emblemático de Luiz
Carlos Prestes - com a diferença de que este último continua
icônico, isto é, transubstanciado em entidade abstrata, enquanto o
outro carrega as condenações simplificadoras e exorcizantes dos
lugares-comuns convencionais. A esse propósito, Miguel Reale oferece
algumas sugestões para o estudo isento e objetivo, se não quisermos
apagar-lhe raivosamente a presença na história da vida brasileira,
que, sem ele, ficará incompreensível: "O silêncio da imprensa e de
todos os meios de comunicação a respeito do centenário do nascimento
de Plínio Salgado demonstra quanto pode a força do preconceito, e
notadamente do preconceito ideológico, capaz de obscurecer o real
valor de nossos homens mais representativos. Porque Plínio Salgado,
visto geralmente apenas sob o primas da fala ‘vulgata integralista’
disseminada por esquerdistas de todos os naipes, reuniu, como bem
poucas personalidades, o que há de mais característico, positiva e
negativamente, na cultura brasileira".
Afinal de contas, foi ele quem
escreveu, com o "O estrangeiro" (1926) e "O esperado" (1931), os
romances pioneiros do nosso comunismo escatológico. No primeiro,
surgia, sob a figura de Cristo, "blindado na madrugada vermelha", o
ainda não canonizado Lenin, debruçando-se "no peitoril nevoento dos
séculos". Mas, nesse mesmo ano, Monteiro Lobato escrevia que a
revolução russa só iria atrasar "a única solução correta (...) a
solução de Henry Ford". No segundo, os leitores, como é natural,
tomaram "O esperado" pelo "Cavaleiro da Esperança"... Enquanto isso,
Augusto Frederico Schmidt lia "O país do carnaval" como evangelho do
futuro, anunciando Cristo, "a chave e a medida".
Vê-se que a "trincheira" de Oscar
Niemeyer era, na verdade, uma terra de ninguém.
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