Wilson Martins
A Condição Absurda
(in JORNAL DO BRASIL, 16/03/85)
Tendo estreado em livro com Os
Instantes e os Gestos (1958), Álvaro Pacheco manteve um silêncio de
sete anos até ao aparecimento de Pasto da Solidão, a que se seguiram
, em breves intervalos, sete outros volumes de poesia, tudo isso
estabelecendo uma carreira altamente considerada pela crítica e por
bons conhecedores sem que o seu nome se haja de fato implantado em
nossa consciência literária (tal como se reflete nas referências
consagradas do colunismo especializado e nas enumerações
convencionais dos resenhadores). Dispondo-se, segundo parece, a
destruir esse muro de indiferença (a indiferença de rotina que os
habitantes da República das Letras normalmente reservam para tudo o
que não está na moda), ele publicou sucessivamente em 1984 uma
"Seleção de Poemas" (Artenova), escolhidos na sua obra por Odylo
Costa, filho, Rubem Fonseca e Fábio Lucas, e a Balada do Nadador do
Infinito (Record), com o qual, aliás, transpõe as fronteiras
fragmentárias do "livro de poemas" para o território mais grave do
poema filosófico, meditação sobre o Destino que É, no fundo, toda
grande poesia, não no plano abstrato dos princípios e doutrinas, mas
a partir da realidade concreta que É a condição humana ó o "homem
absurdo" a que Camus consagrou em 1942 um livro célebre, hoje tão
esquecido ou, pelo menos, tão histórico" e datado quanto a filosofia
existencialista que ele então combatia (o que não impediu passasse a
ser visto, por causa dele, como "discípulo" de Jean Sartre, equívoco
que levaria anos para se desfazer).
Dois suicídios aparentemente
inexplicáveis (como são todos eles, mesmo quando o suicida deixa a
tradicional nota explicativa) puseram em movimentos no seu espírito
o mecanismo interior que produziu este longo poema, acrescido de
alguns outros, à primeira vista esparsos, que o completam e
prolongam ó e é por a" que se liga ao famoso postulado de Camus
segundo o qual o suicídio é o único problema filosófico
verdadeiramente sério, não por ser suicídio, mas por ser a única
solução racional, embora absurda, para o absurdo da condição humana.
Em outras palavras, o "único problema filosófico verdadeiramente
sério" É a morte, sobre o qual de resto, os filósofos vêm meditando
desde que há filósofos e que pensam: um deles chegou mesmo a
escrever em filosofar é aprender a morrer. Assim como perceber o
sentido mais profundo da poesia enquanto instrumento de penetração
nesse mistério, podemos acrescentar por nossa conta à leitura de
Álvaro Pacheco.
Apesar de tudo haver sido dito sobre a
morte, observava Camus, nada sabemos sobre ela, porque, na
realidade, não há experiência da morte". Só podemos falar sobre a
morte dos outros, isto é, a morte só admite uma explicação ou uma
interpretação "poética", neste sentido de que a poesia aceita, por
definição, o irracional ou o inexplicável, enquanto tal explicação
não existe" no plano filosófico que, ao contrário e também por
definição, só pode aceitar o racional e o lógico Camus, "pelo
simples jogo da consciência" transformava em regra de vida o que era
um convite para a morte ó e recusava o suicídio. Mas, o poeta no
caso Álvaro Pacheco, não o aceita nem recusa, partindo da situação
absurda do suicida para uma meditação sobre o absurdo não menos
evidente da morte, quero dizer, da vida, pois ambas se manifestam
exatamente pelos mesmos sinais, são exatamente a mesma coisa,
conforme Machado de Assis escrevia num poema que merece mais atenção
do que lhe costumamos reservar.
Até que ponto a angústia existencial
da morte está dominando o espírito do homem Álvaro Pacheco É tópico
que não nos compete averiguar neste momento e cuja resposta, num
sentido ou outro, seria necessariamente indiscreta. Que lhe domina o
espírito enquanto temática de poesia, É mais do que evidente nos
seus últimos livros e, em particular, na Balada do Nadador do
Infinito. Nadadores do infinito, em certo sentido, somos todos nós,
na medida em que, para cada um, É infinito o tempo finito que nos
foi reservado pelo Destino ou, se quisermos, pela programação
genética (dois nomes diferentes para a mesma coisa). … a morte,
dizia André Malraaux, que transforma a vida em destino e, por isso
mesmo, essa É noção puramente retroativa, e não projetiva, como
geralmente se pensa; projetiva, e a longo prazo, é a programação
genética, que o suicídio, justamente parece desmentir e recusar,
visto introduzir um elemento de irregularidade e inesperado num
processo que se desenvolve com a progressiva periodicidade de um
mecanismo. Contudo, essa mesma irregularidade bem pode estar
igualmente programada: o que nos parece absurdo na morte resulta da
nossa insistência em lhe acrescentarmos dimensões metafísicas,
quando se trata de mero fenômeno biológico.
A nossa superioridade sobre os
animais, dizia mais ou menos Pascal, está em sabermos que vamos
morrer, ao passo que eles não o sabem; podem-se discutir as duas
partes desse postulado, primeiro para verificar se trata, de fato,
de uma superioridade, e, depois para confirmar que os animais não
sabem que morrem. Tudo indica que sabem, no momento próprio, a
diferença estando em que só o sabem nesse momento, sem parar a vida
preocupados com perguntas sem sentido e sem resposta. Ou que, como
ficou dito, só podem ter respostas "poéticas", essa, e somente essa,
sendo a nossa indiscutível superioridade sobre os animais.
A primeira parte deste livro composta
de poemas construídos segundo uma arquitetura estrófica comum, É a
tradução poética dessas noções em face do "fogo-fátuo" que É a vida,
não a vida vegetativa e filosófica, creio eu, mas a "vida" como
espírito imaterial, aquela "alma" que as gravuras ingênuas e
piedosas representavam como um homúnculo que os moribundos expiravam
pela boca no instante supremo; "de qualquer lado/ do oceano da
memória", diz o poeta nos espreita a vida", isto É, a vida talvez
não seja senão a maioria do vivido, mais do que a vivência atual.
Nessas perspectivas têm outro sentido os registros internacionais
com que Álvaro Pacheco data os seus poemas e que [P muitos pensam
tratar-se apenas de esnobismo ou ingenuidade turística: É que a vida
é sempre a mesma, nas cidades mais exóticas ou nos ambientes
familiares; em Bali ou no pequeno vilarejo do Piauí as memórias nos
afogam, no próprio e no figurado, são elas a vida, de que só nos
"libertamos" (palavra expressiva!) como os suicídios de Álvaro
Pacheco, pelo mergulho definitivo nesse outro símbolo do
esquecimento e desintegração mineral que são as águas do oceano.
Nada disso nos informa sobre a qualidade propriamente poética destas
composições, mas É evidente que não justificariam a leitura aqui
proposta se não se situassem no plano da grande poesia, não só
apesar, mas por causa da sua obscuridade eventual, das enigmáticas
alusões e referências autobiográficas que nem sempre podemos
decifrar.
Leia a obra de Álvaro
Pacheco
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