Wilson Martins
Prosa & Verso, 29.08.1998
Continente de poetas
Julgado, em 94, por um poeta (Marcus
Accioly) e dois cantores de música popular (Milton Nascimento e
Paulinho da Viola), o prêmio Nestlé de poesia revelou o nome de
Aníbal Beça dentre 7.038 concorrentes. "Livros de todo o país",
escreve Marcus Accioly, "em caixas e caixas, foram lidos e
analisados durante meses, até uma possível certeza, uma convicção. O
trabalho foi compensado pela alegria do resultado, único e unânime:
Suíte para os habitantes da noite."
Em outras palavras, nesses concursos os vencedores são escolhidos
por exclusão, diminuindo progressivamente, na proporção das
leituras, as exigências dos julgadores. É fenômeno elementar de
psicologia, sem falar no tédio e no cansaço. Os poemas premiados,
agora incluídos em volume ("Banda de asa". Rio: Sete Letras, 1998),
buscavam sugestões ou assimilações gratuitas no vocabulário musical,
aplicado de maneira arbitrária e, muitas vezes, com intenções
humorísticas: "Chorinho para bandolim, cavaquinho, flautas e
violões", ou "Carimbó para gambás, tambor de onça e clarineta", e
assim por diante.
Um comentarista dessa poesia afirma
que, "em cada verso, em cada imagem, encontra-se uma intensa catexia
objetal", do que não duvido, embora prefira os poemas inspirados
pela cidade de Manaus. O tropismo surrealista de Aníbal Beça
estimula os impulsos analíticos da crítica. O "Poema cíclico", por
exemplo, "trava a batalha com o clássico e o moderno", em versos
destacados por Paulo Graça: "dos meus olhos saltam/ dois pássaros
ariscos/ prontos a deflorar begônias/ em setembro". Ou ainda: "A
trave dos meus olhos é pólen de crisântemos: farpas cronológicas".
Esse surrealismo tardio, que poderíamos imaginar perempto, ainda é
praticado em capelas iniciáticas através do continente, sem excluir
o Brasil, cujo grupo surrealista foi organizado e é mantido por
Sérgio Lima ( "Escritura conquistada. Diálogos com poetas
latino-americanos". Floriano Martins. Fortaleza/Rio/Mogi das Cruzes:
Letra & Música Comunicação/ Biblioteca Nacional/ Universidade de
Mogi das Cruzes, 1998).
Entre os "latino-americanos", Floriano
Martins incluiu vários brasileiros, como Ivan Junqueira e Donizete
Galvão, mas a verdade, nas palavras de Sérgio Lima, é que o modelo
na América Latina "é insular e não continental, pois trata-se de
‘ilhas culturais’", o que se confirma de forma por assim dizer
física e demográfica nas observações do cubano José Kozer, ele
próprio judeu de origem ashkenazi, filho de polaco ateu e comunista
e filho de uma checa burguesa e de pais judeus ortodoxos: "em Cuba,
nunca vi um porto-riquenho ou um dominicano; nunca vi um mexicano ou
um equatoriano; nunca vi um uruguaio ou um argentino. Em Nova York,
tenho visto até paraguaios (...)".
O advérbio demonstra que a
"verdadeira" América Latina situa-se nas duas costas dos EUA... De
fato, trata-se de um mito mental e de uma utopia do intelecto, para
nada dizer, claro está, dos subentendidos políticos: não são as
línguas que separam, não havendo nenhuma identificação orgânica nos
países hispânicos entre si, mas a psicologia e a história, além dos
variados ressentimentos que se foram acumulando ao longo dos
séculos: "É curioso que este continente de países tão diferentes
leve um nome como se fosse um só país", escreve Cabrera Infante em
páginas de Mea Cuba que valem a pena reler.
Nesse contexto, é possível que a
propensão surrealista, respondendo à sua natureza profunda, seja uma
técnica subconsciente de superar a realidade pelo imaginário e de
compensar o sentimento de inferioridade pelo desafio do hoje
desmonetizado "realismo mágico", mais mágico do que realista. Para o
que nos interessa, as entrevistas realmente importantes são as dos
brasileiros e respectivas visões pessoais a respeito das nossas
letras. Assim, o depoimento de Ivan Junqueira, desmistificando
alguns tabus e idéias-feitas com que se alimentam os espíritos
simples.
Nossa cultura, diz ele, é européia,
como, aliás, a de toda a América Latina: as raízes são portuguesas,
espanhola, francesas, alemãs, inglesas, e não africanas ou
indígenas. Não menos vigorosas são as suas apreciações sobre Oswald
de Andrade e o concretismo (mais a invenção de Oswald de Andrade
pelos concretistas e derivados), na linha da revisão de valores
sintetizada pelo argentino Leônidas Lamborghini: "devemos
desmitificar também no que se refere ao fazer poético", ao que o
venezuelano Juan Calzadilla retruca, sem saber, com uma dessas
verdades elementares que muitos preferem ignorar: "Segundo Montale,
não há contribuição importante em poetas que não provenha da prosa.
Sem prosa não haveria boa poesia moderna, e menos ainda entre nós,
na América Latina, onde se adotou, e espero que definitivamente, o
verso livre, e onde são cada vez mais deploráveis os ensaios de
restauração da rima e da métrica tradicionais. A vantagem da prosa é
que com ela se pode pensar, presta-se como instrumento a serviço do
qual a intuição e a reflexão na produção de pensamentos seguem
juntas, porém separadas. Na poesia, em troca, a intuição contém ou
afoga o impulso reflexivo ou o torna desnecessário, uma vez que se
recusa a qualquer explicação".
Aníbal Beça, de seu lado, propõe a
teoria poética no plano das efusões líricas: "Que ela seja clássica
moderna contemporânea de vanguarda comportada marginal lírica épica
que ela seja nada e tudo e nada: varal chuva casa alicerce arcabouço
não importa e nem definí-la comporta-se o que reporta é a fatura do
e para o homem assim como a porta da rua é a serventia do poema".
Claro, em termos de reflexão crítica
isso não significa nada, confundindo na mesma equivalência a forma e
a substância, problema levantado por Floriano Martins na entrevista
com Juan Calzadilla, vanguardista, ao que parece, acima de qualquer
suspeita. Mas, na medida mesmo em que é hermético, metafórico ou
arbitrário, o surrealismo é uma poética de conteúdo, ou seja,
exatamente o oposto do que se convencionou entender como arte
moderna.
Leia a obra de Aníbal
Beça
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