Wilson Martins
Prosa & Verso,
27.02.1999
Poeta e crítico
Com O Fio de Dédalo (Rio: Record,
1998), Ivan Junqueira encerra deliberadamente sua obra crítica:
"sinto esgotar em mim esse veio da atividade intelectual [] percebo,
de maneira irremediável, que concluirei minha trajetória literária
como a iniciei naquele já distante ano de 1964, como poeta."
Tomemo-lo ao pé da letra, embora a sabedoria das nações ensine que
nunca se deve dizer nunca. Ele mesmo se define, com justeza, como
"um poeta de poetas e um crítico de poesia", forma que encontrou,
"concomitante à da prática contumaz da tradução de poetas, de tentar
compreender a poesia alheia e o significado maior da própria poesia
enquanto manifestação suprema do espírito humano e supremo risco em
que consiste a atividade criadora."
Estamos longe, como se vê, dos
"poetas" de ambos os sexos que procuram nos interessar nos seus
orgasmos como se os tivessem inventado: literatura, sendo a resposta
para o mistério da condição humana, a poesia só será literária se
nos propuser as respostas possíveis nas perspectivas da eternidade
(para lembrar o verso famoso de Mallarmé). Ninguém é poeta por
escrever poemas esparsos, mas por escrevê-los com organicidade, no
interior de um sistema intelectual, conforme a pedra de toque
fornecida por T. S. Eliot (santo da especial devoção de Ivan
Junqueira): "poeta maior é aquele cuja obra inteira tem uma unidade
maior do que a soma de suas partes."
Isso explica que, em cada século e em
cada nação, apenas três ou quatro poetas acabem por se incorporar à
história literária (que é, ela própria, um corpus característico), e
que, de cada um deles, o que de fato permanece, nas palavras de
Gottfried Benn, citado por Ivan Junqueira, "não chega a oito ou fez
poemas dignos desse nome." Ora, por absurdo que pareça, a noção de
"grandes poetas" é de natureza estatística: são os assim
considerados pelo consenso dos leitores cultos (subdivididos, por
sua vez, em níveis diferentes de cultura e temperamento).
A poesia está mais no leitor do que no
poeta, porque a comunicação emocional ou intelectual é de natureza
passiva: não está em quem seja capaz de transmiti-la, ms em que seja
capaz de recebê-la. São problemas que já inspiraram, com a "estética
da recepção", todo um sistema exegético, muito popular entre nós,
por algum tempo, antes de se recolher aos arquivos historiográficos.
Ivan Junqueira observa, a esse propósito, que, tanto a estética da
recepção quanto a teoria do efeito estético suscitam, entretanto,
duas graves objeções:
Primeiro: parece-nos que nada há de
novos nessa estética, pois desde sempre houve leitores e textos
literários, e jamais um texto terá cumprido sua função literária
cabal sem o concurso contextual daqueles. [] Segundo: que leitor
seria este? Iser nos fala de um leitor ideal que, por ter os mesmos
códigos do autor, deveria ter as mesmas intenções que se manifestam
no processo de transcodificação dos códigos determinantes daquele
autor [].
Logo, conclui Ivan Junqueira, esse
leitor ideal "é uma ficção", é o leitor teórico, mais do que o
leitor real ou possível. De qualquer forma, é uma entidade que não
podemos ignorar enquanto fator dinâmico do processo literário,
conforme expus em 1953 num ciclo de conferências do Clube de Poesia
de São Paulo. Minha vaidade de me haver antecipado por 20 anos às
idéias de W. Iser (que se vulgarizaram a partir de 1974) foi julgada
descabida, o que me torna ainda mais vaidoso ao vê-la implicitamente
justificada por Ivan Junqueira. Digamos que é motivo de vaidade
ver-me igualmente confirmado por W. Iser (W. M. Pontos de Vista, 10,
p. 397 e s.).
A grande mistificação literária de
Mariana Alcoforado, denunciada desde 1935 por Antônio Gonçalves
Rodrigues e patrioticamente alimentada pelos críticos portugueses e,
até, bem tardiamente, por um general (Humberto Delgado. O infeliz
Amor de Sóror Mariana. Rio: Civilização Brasileira, 1964), encontrou
o ponto final em 1962 com a edição Deloffre/Rougeot nos Clássicos
Garnier. Ivan Junqueira esclarece o assunto na conferência aqui
incluída, cabendo acrescentar, como nota de rodapé, o exame
cronológico que demonstra a impossibilidade material da troca de
correspondência no ritmo supostamente aceito (v. "As 'Portuguesas'".
Pontos de vista, 6, 1993).
Ivan Junqueira assinala para o período
1968 - 1994 "a multiplicidade de vertentes em que se esgalha a nossa
floração poética" cristalizando-se, por paradoxo, no impasse
conseqüente aos "movimentos e tendências que, ou abortaram em curto
lapso de tempo - e aqui se incluiriam o concretismo, a poesia-práxis
e o poema-concreto, entre outros - ou não nos proporcionaram os
frutos que deles caberia esperar, como seria o caso de quase tudo o
que nos legou a chamada 'poesia alternativa' ou 'do mimeógrafo'
durante a década de 1970." São "movimentos" que ainda despertam,
aqui e ali, algumas tentativas de recuperação sentimental, cujo
único resultado é embaralhar ainda mais a revisão crítica que se
impõe.
A multiplicação de "vanguardas" que se
atropelavam umas às outras está exigindo uma "re-visão,, como diriam
os concretistas em sua ortografia trocadilhesca, eles próprios
obsessivamente entregues a numerosas "re-visões", que, aliás,
falharam no propósito de reestruturar o quadro de valores. Nesse
particular, é exemplar o caso de Mallarmé, por eles redescoberto e
reduzido a um único poema - o menos representativo dos seus
processos habituais de versificação. Será um "arauto da
modernidade", mas, nas palavras de Ivan Junqueira, é um erro
"atribuir-lhe a condição de mestre absoluto de toda a poesia que
hoje se escreve", lembrando a observação de Paul Valéry, ausente do
panteão concretista: "Nem Verlaine, nem Mallarmé, nem Rimbaud teriam
sido o que foram sem a leitura que fizeram das Flores do Mal." É o
domínio das perspectivas de conjunto que faltou, em todos os casos,
às retumbantes "re-visões" concretistas.
Leia a obra de
Ivan Junqueira
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