Wilson Martins
Prosa & Verso,
02.04.1999
Gaúchos
A gauchesca é uma literatura
saudosista, escrita por intelectuais da cidade, quando há longo
tempo desaparecera a sociedade que a inspirava. Autores, narradores
e personagens referem-se a um passado mítico e mitificado, em
contraste com o presente desmitificante. Em 1942, Viana Moog
identificava nesse regionalismo uma vertente orgânica das letras
riograndenses, a outra sendo o universalismo, que a complementa e
contesta.
Acompanhando o desenvolvimento da
sociedade, a literatura tornou-se urbana nos temas, personagens e
intrigas relacionadas com a cidade e, quase sempre, com as grandes
cidades, nomeadamente Porto Alegre, nem por isso menos saudosista em
outras perspectivas: a criança desaparecida, o "verde paraíso dos
amores infantis" e também dos amores mortos. É a marca dos contos de
Michel Laub ("Não depois do que aconteceu". Porto Alegre: Instituto
Estadual do Livro, 1998), de Charles Kiefer ("Antologia pessoal".
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998) e de Sérgio Faraco ("Contos
completos". Porto Alegre: L&PM, 1995), este último vitimado pela
desatenção da crítica metropolitana, sendo, embora, uma coletânea de
grande qualidade literária e, para o que no momento nos interessa,
um excelente "documentário" das duas tendências.
Um dos seus contos ("Sesmarias do
urutau mugidor") é um painel quase didático dessas transformações.
Imobilizado na estrada por uma falha mecânica do automóvel (máquina
de muitos "cavalos" vencida onde o cavalo dos pampas jamais falhou),
o protagonista pede acolhida no rancho de um velho gaúcho, "ruína
viva" que evoca antes o mundo de Alcides Maya que o de Simões Lopes
Neto. É significativo que o autor organize o volume em três partes,
indo de gauchesca tradicional às narrativas contemporâneas,
nomeadamente as "histórias de Porto Alegre", tema predileto dos
escritores gaúchos.
Charles Kiefer acrescenta ao realismo
urbano realidades imaginárias de diversos contos, como o primeiro
deles ("Photoplasma"), em que até a ortografia é fantasiosa. Ele e
Laub são contistas "literários", quero dizer, com a viva consciência
da sua condição de escritores, de homens escrevendo livros, não
observadores de hipotéticas circunstâncias da vida real. Se o poeta
famoso declarava ser "homem para quem o mundo exterior existia",
eles são ficcionistas para quem o que existe de fato é a literatura.
Nessa linha, escreveram contos semelhantes a partir de uma situação
"profissional": o ficcionista em busca de assunto.
No de Charles Kiefer, intitulado
"Teoria do conto ou Um escritor, um cavalo magro e velho", uma cena
de rua fornece a inspiração de que necessitava: "Depois, assim que
se instalou à boléia, Antônio apanhou o aparelho e bateu nas ancas
do animal até ficar extenuado, até que o filho apanhasse as rédeas e
o chicote e conduzisse a carroça para longe dos meus olhos, que
vislumbraram na cena final o motivo de um conto, diferente do
primeiro, talvez um que principiasse assim: Há várias semanas
dispunha-me a escrever um conto sobre um homem e um cavalo magro e
velho...". É com essas palavras que o conto efetivamente se inicia.
Tudo bem considerado, a teoria do
conto (de todos os contos) é a sua prática, situação que se duplica
quase literalmente no "Conto do inverno", de Sérgio Faraco, tanto no
esquema narrativo quanto na conclusão artesanal: "Boa história", diz
o narrador a propósito do que acaba de contar. "Meu winter’s tale,
disse em voz alta. E logo um pensamento desagradável: talvez tivesse
desconfiado, desde o início, de que aquilo era um conto. Nesse caso,
era quase certo que estivera a representar. Era espantoso como os
escritores, às vezes, podiam ser interesseiros, e no fundo, bem no
fundo, tão ou mais cruéis do que um dono de caminhão como o que
conhecera naquela madrugada".
Nessa galeria, Michel Laub é o
"escritor de gabinete", autor, como os anteriores, de contos breves,
simples vinhetas, as proverbiais "fatias de vida" que estavam em
moda ao tempo de K. Mansfield (Álvaro Lins identificou uma "família
Mansfied" em nossa literatura). Os tempos são outros, contudo, e
onde ela se demorava nos devaneios de adolescente e no
sentimentalismo nostálgico, os dias de hoje propõem a temática
brutal do homossexualismo sórdido ("Na rua escura", de Sérgio
Faraco), ou do ecologismo tanto mais politicamente correto quanto
convencional ("A última canafístula", de Charles Kiefer).
Um e outro podem ser considerados
realistas, pelo menos em uma parte importante de suas obras,
enquanto Michel Laub é contista de subentendidos sutis e elipses
refinadas: a protagonista de "Cheiro de cloro" especializou-se na
hidroterapia para atender ao próprio pai, paraplégico em
conseqüência de acidente na piscina a que ela, como criança,
assistira traumatizada. O que só se esclarece na última linha. É
autor mais sugestivo que narrativo ou descritivo. O conto "Morando
longe", entre outos, modelo de minimalismo que lhe define e
caracteriza o estilo, encontra o desfecho dramático numa única
linha: "Entramos. Nádia está esperando, e pára de sorrir quando me
vê" - tema retomado por Charles Kiefer no plano realista de "O
visitante", autor, aliás, do manual do perfeito contista ("O elo
perdido").
Tão realista ou regionalista quanto
seja, Sérgio Faraco não rejeita o realismo fantástico ("Um destino
para o fundador") ou flagrante da solidão urbana, não o tempo em si
mesmo, mas o envelhecimento, o que é diferente, ("A dama do Bar
Nevada"). É, em perspectivas invertidas, a história do amor perdido
(no singular), isto é, do momento fugaz em que se desfez a
oportunidade única do grande amor ("Café Paris"). Ou então, a
história pungente de Cíntia (Charles Kiefer), cuja morte foi
pronunciada pelo pequeno defeito técnico na gravação da música que
cantava: "O leve tremor, que eu percebera no gabinete, havia se
transformado numa vibração constante de largo espectro, tão
homogênea e tão intensa que nenhuma filmadora ou máquina fotográfica
conseguia fixar-lhe a imagem".
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