Wilson Martins
12 de Abril de 1999
Norte e Sul
Pode-se dizer, sem grande margem de
erro, que Franklin Távora (1842-1888), se não ficou na história da
literatura brasileira, pertence, sem discussão, à história da nossa
cultura pelos dois fatos marcantes de sua carreira: a primeira
identificação crítica de uma "literatura do Norte", diferente pela
temática, se não pelo estilo, da "literatura do Sul" (obsessão
permanente de nossas letras, encontraria pleno reconhecimento no
arquipélago intelectual proposto por Viana Moog em 1942), e a
lamentável polêmica contra José de Alencar em que se deixou
envolver, seja por ignorar os motivos sórdidos que a haviam
provocado, seja pelo claro ressentimento de epígono, inferior ao
mestre reconhecido e celebrado.
Havia, em tudo isso, bem entendido, o
clássico choque de gerações: no prefácio ao livro de Cláudio Aguiar
(Franklin Távora e o seu tempo. São Caetano do Sul, SP: Ateliê,
1997), Nelson Saldanha assinala que, sendo treze anos mais moço que
Alencar e três que Machado de Assis, era nove anos mais velho que
Sílvio Romero, cabendo acrescentar que havia nascido quinze anos
antes de José Veríssimo. Era, por conseqüência, perfeito
contemporâneo do romancista que ainda não parecia uma ameaça às suas
ambições de rivalizar com Alencar, o qual, diga-se de passagem, já
havia criado, na prática, a "literatura do Norte" e de quem não
desejava ser visto como discípulo. Em compensação, a diferença de
idades permitia-lhe ser aceito como escritor consagrado pelos que
seriam os prestigiosos críticos das gerações seguintes.
Fundada no princípio de que "as letras
têm, como a política, um certo caráter geográfico,, a teoria da
"literatura do Norte", exposta em 1876 na "Carta preliminar" do
romance O Cabeleira - por muitos considerado sua obra-prima -
iniciara-se sete anos antes com Um Casamento no Arrabalde. Ele
pretendia fixar sistematicamente, numa série de romances, os
costumes e a psicologia das províncias setentrionais, no que já
transparece a intenção de rivalizar com Alencar, cujo programa
inconcluso propunha-se a "cobrir" o país inteiro no conjunto
balzaquiano da comédia brasileira.
A idéia, por inesperado, repercutiria
em pleno simbolismo, o que não passou despercebido a Adolfo Caminha.
A capa do Missal, de Cruz e Sousa, trazia a expressão Brasil-Sul.
"num destaque vivo e pretencioso" de reavivar as velhas distinções
de Franklin Távora:
Positivamente, Cruz e Sousa quis
dividir o Brasil, como alguém o fizera [sic], em duas grandes
regiões literárias: a região norte e a região sul, obedecendo cada
uma às leis especiais de clima, de topografia e de sociabilidade
[sic] que caracterizam os países e que constituem o meio, isto é, o
conjunto de circunstâncias capazes de modificar a própria raça.
A essa altura, e muito depois, Machado
de Assis era visto como escritor "fluminense", sem possibilidade de
fazer sombra à inspiração regionalista (ou regional, no sentido
largo), e, além disso, simples contista, cuja carreira de romancista
começaria dez anos depois de Os índios do Jaguaribe (1862), no qual
Sílvio Romero, anos mais tarde, assinalaria "manifesta influência"
de Alencar. O mesmo é verdadeiro com relação a O matuto (1878),
romance histórico em que dizia se haver esforçado para dar "uma
idéia tão completa quanto possível" da guerra dos Mascates, projeto
em que, mais uma vez, não é difícil perceber, com a canhestrice
habitual, a monomania de reescrever a obra do mestre.
Ele encontrou na polêmica de 1871/1872
o momento oportuno para um ajuste de contas que Alencar, aliás, de
forma nenhuma havia provocado. Ou, por outra, talvez. Anos depois,
escreve Cláudio Aguiar, "já em 1904, Clóvis Beviláqua traria mais
luz ao episódio, contando a versão que lhe dera Araripe Júnior,
amigo de Távora e primo legítimo de Alencar:
Araripe referiu-me o caso por este
modo. Tendo Alencar recebido o romance de Távora [Os índios do
Jaguaribe], lera-o com muita curiosidade o interesse [] no intuito
de responder ao novel escritor, agradendo a oferta e dando-lhe a sua
opinião sobre o valor do trabalho. Essa resposta, no entanto, por
motivos que não desconhecem os que têm ocupações literárias,
demorou-se mais do que era de esperar. Suscetível, como todo
artista, o autor de Os índios do Jaguaribe sentiu-se do silêncio e
não tardou em transformar essa mágoa em irritação [].
Reunidas no volume de 1872, impresso
no Recife, de onde ele escrevia, as Cartas a Cincinato procuravam
desautorizar o patriarcado de Alencar, em circunstâncias que se
repetiriam no século XX; Mário de Andrade decidiu responder a todas
as cartas de jovens discípulos depois que Vicente de Carvalho não
acusou o recebimento da que lhe mandara como testemunho de
admiração. Daí surgiria igualmente a corrosiva série sobre os
"mestres do passado", assim como Franklin Távora sublimara o
despeito anti-alencariano nas Cartas a Cincinato. Ele se colocava em
posição semelhante à de Alencar quando contestou o patriarcado
literário de Gonçalves de Magalhães, e à de Joaquim Nabuco, na
tarefa de demolição empreendida contra o próprio Alencar.
Resultado de sólida e minuciosa
pesquisa, esta é a primeira biografia de Franklin Távora, tudo
indicando que será a última ou a única, não só porque pouco haverá a
acrescentar, como porque sua condição de escritor secundário não
justifica maiores esforços. Por outro lado, o estilo e a gramática
de Cláudio Aguiar deixam muito a desejar, nomeadamente no que
concerne às regências verbais: dir-se-ia que, para ele, todos os
verbos são intransitivos, do tipo: um convite recebido por Franklin
Távora "encheu-lhe de entusiasmo", apenas um exemplo do que é a
constante estilística do texto.
Há também enganos factuais, como
mencionar a "justiça eleitoral" no século passado, ou pleonasmos do
gênero "jornalistas da imprensa". O escritor Rangel de San Paio não
deve ser designado como "Paio", nem os erros condenados pelo papa em
1864 eram os "chamados Syllabus", nem o ecletismo é "o rumo
previamente traçado e imposto como caminho possível". Aludindo aos
debates parlamentares entre Saldanha Marinho e Joaquim Nabuco, ele
conclui que era "o velho eufemismo, segundo o qual não havia nada
mais conservador do que um liberal no poder", o que não é mais
correto do que designer Joaquim Manuel de Macedo como Manuel Antônio
de Macedo. A História, de Romero, foi "publicada definitivamente em
cinco alentados volumes", mas seria preciso esclarecer que o foi à
custa de acréscimos póstumos que não constavam dos dois volumes
primitivos, sem corrigir-lhes, aliás, as lacunas originais.
É a contragosto que faça essas
observações, indispensáveis, entretanto, como dever crítico e bem
intencionada advertência aos leitores, tanto mais que os apontados
vícios de linguagem e incorreções factuais estão se multiplicando
com alarmante freqüência.
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