Wilson Martins
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19 de Abril de 1999
Vertentes poéticas
Pouco ou nada será necessário
acrescentar ao excelente estudo introdutório de Davi Arrigucci Jr.
aos Melhores poemas de José Paulo Paes (São Paulo: Global, 1998).
Poeta, tradutor, crítico e ensaísta, trata-se de "um verdadeiro
homem de letras", escreve ele, cabendo acentuar que num plano de
autenticidade humana bastante raro na República das Letras. Por isso
mesmo, nada do que é humano lhe era estranho, como, por exemplo, a
visão irônica e desmistificadora dos seus semelhantes e do mundo que
criaram.
Traduzindo e comentando os maiores
poetas do nosso e de outros tempos (Kafávis, Auden, william carlos
williams, Seféris, gregos, dinamarqueses "e tutti quanti"), não
excluía tampouco Aretino e os eróticos, representantes da vertente
mais instintiva do homem e avesso do lirismo amoroso desencarnado.
Davi Arrigucci Jr. refere-se às suas inclinações epigramáticas,
maneira de conjugar as duas dimensões de sua existência", as de
cidadão e poeta. Ele retomou a tradição epigramática em sua forma
mais espontânea, que é a ironia: "Com efeito, pelo filtro do
epigrama, ao propor o reconhecimento do mundo a partir da
perspectiva diminuída, por vezes deixa ver junto com a ironia a
consciência reflexa e abissal de uma unidade quebrada, quando o
vazio pode habitar o interior do próprio ser".
É linha de inspiração que encontra no
minimalismo a sua forma, por assim dizer, natural e necessária, como
no "retrato do Brasil" em que a linha oswaldiana oferece um escólio
desabusado a Paulo Prado: "feijoada / marmelada / goleada /
quartelada." No momento em que tanto se fala na unificação
ortográfica e na mirífica comunidade luso-brasileira, vale a pena
ler o seu caderno de turista em Lisboa:
tomei um expresso - cheguei de foguete
/ subi num bonde - desci de um elétrico / pedi cafezinho -
serviram-me uma bica / quis comprar meias - só vendiam peúgas / fui
dar à descarga - disparei um autoclisma / gritei "ó cara!" -
responderam-me "ó pá!" / positivamente / os aves que aqui gorjeiam
não gorjelam como lá.
O perigo dessa deriva, observa Davi
Arrigucci Jr., está na facilidade com que descamba na pura piada:
"Uma das questões essenciais a respeito de toda a poesia de José
Paulo Paes é saber quando é que a piada funciona para além de si
mesma, abrindo-se para o inesgotável." Pode ocorrer que, nascido num
momento peculiar da vida brasileira, o poema perca o impacto,
tornando-se, talvez, incompreensível em outras circunstâncias.
Assim, durante o regime militar, uma composição limita-se a copiar a
placa de trânsito referente a um bairro de São Paulo: "Liberdade
interditada."
Admirador de Oswald de Andrade, em
quem reconhecia um espírito afim, uma parte de sua obra denuncia o
DNA oswaldiano, mas é muito mais do que isso, ocupando, como diz
Davi Arrigucci Jr., "um lugar ímpar no panorama da lírica brasileira
desta segunda metade do século." E até no serpentário da vida
literária: não se conhecem, contra ele, os venenosos comentários dos
caros colegas, assim como ele próprio foi indiferente, por
temperamento, ao jogo das rivalidades e estratégias carreiristas. A
nobreza de sua personalidade encontrou expressão no sorriso amargo
com que enfrentou o infortúnio (amputação da perna esquerda),
sardônico minimalismo anatômico proposto pelos cruéis imprevistos da
vida: "Pernas para que vos quero? [] Pernas? Basta uma." Ou o ritmo
da marcha na pauta do humor negro: "esquerda direita / esquerda
direita / direita / direita."
Foi na mulher amada que buscou
consolação para a tragédia: "Aqui estou. / Dora, no teu colo, / nu /
como no princípio de tudo. // Me pega / me embala / me protege. //
Foste sempre minha mãe / e minha filha / depois de teres sido /
(desde o princípio / de tudo) a mulher." E, sobre a bengala, cajado
emblemático dos últimos dias de um poeta: "Contigo me faço / pastor
do rebanho / de meus próprios passos." Vê-se que a sua personalidade
de poeta é muito mais complexa do que poderão pensar os leitores
apressados e superficiais.
Ele se inclui, pela qualidade dos
versos, na grande, e rarefeita, família espiritual dos líricos
maiores em língua portuguesa. Acusando o recebimento do seu primeiro
livro (O aluno, 1947; 2.ª ed., Ponta Grossa, PR: UEPG, 1997), Carlos
Drummond de Andrade designava-o como poeta "que ainda não chegara a
escrever seus próprios poemas." Com o que, é evidente, não percebeu
a sutil sugestão do título. Mas, José Paulo Paes passou a
escrevê-los com Cúmplices, desde 1951, tudo confirmado nos Poemas
reunidos, de 1961, e, ainda mais, na antologia total (Um por todos,
1986). Contudo, pelo momento histórico dos anos 40 e pelo grupo de
jovens intelectuais em que se incluiu, Curitiba foi um episódio
fulcral na formação do seu espírito, encruzilhada decisiva que iria
levá-lo para a carreira das letras: "a procura de si mesmo se
estendia também ao campo social, lembra Davi Arrigucci Jr.,
empenhara-se na luta pelas questões sociais em prol de 'um mundo
só', como então se dizia".
Àquela altura, era preciso aderir para
não se inscrever entre os inimigos nazi-fascistas, ainda mais sob a
influência esmagadora de Carlos Drummond de Andrade, que não tardou
a se desencantar, e não foi o único. Quanto a José Paulo Paes, não
aceitou a arte de propaganda nem o fanatismo stalinista, mas
sublimou as ilusões perdidas numa poesia "empenhada na defesa da
cidade." Eram as sobrevivências do estado de espírito esquerdizante
em que viveu a adolescência literária. E assim poderia afirmar, no
título de 1988: "A poesia está morta mas juro que não fui eu."
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