Wilson Martins
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26 de Abril de 1999
Leituras machadianas
Na imensa bibliografia machadiana, são
raros e, por isso mesmo, tanto mais valiosos, os estudos críticos
dignos de Machado de Assis. Situando-se entre os melhores e mais
estimulantes, os de Alfredo Bosi (Machado de Assis: o enigma do
olhar. São Paulo: Ática, 1999) abrem, de fato, novas avenidas de
compreensão e análise do adjetivo "machadiano", sobre o qual,
escreve com evidente ironia, "as interpretações variam", embora
todos acreditem saber "mais ou menos" o que significa. Antes menos
que mais, acrescento desde logo, a julgar pelo que andamos lendo
nestes dias. É um pouco como o bom-senso, a coisa deste mundo mais
bem distribuída, dizia Descartes com ironia não menor, porque
ninguém jamais se queixou de não tê-lo em quantidade suficiente.
Mas, justamente: incontáveis leitores
de Machado de Assis acreditam que basta o bom-senso para julgá-lo,
reduzindo-o ao nível intelectual da humanidade comum, treslendo-o
com entusiasmo e retórica veemência, acrescentando-lhe glosas
fantasistas e sugerindo que, afinal de contas, não foi ele quem
escreveu as suas obras, mas sim a talentosa Dona Carolina. Os
espíritos geométricos não se conformam com a ambigüidade, que era a
sua maneira própria de afirmar, enquanto as almas sensíveis repudiam
o darwinismo social que constituía o fundo do seu pensamento e visão
do mundo.
Alfredo Bosi observa, com agudeza,
existir "algo de darwiniano" na sua concepção da existência humana:
"é o universal animalesco que estaria dentro de cada um de nós, daí
o embate contínuo pela preservação moldado sobre a luta biológica:
quem não pode ser leão, seja raposa" (alusão a uma passagem clássica
de maquiavel, "fundador da ciência política moderna;). A famosa
filosofia do Humanitismo, na qual os leitores superficiais viram
apenas a sátira do positivismo republicano então triunfante, é, na
verdade, a transcrição machadiana do darwinismo social: os
vencedores ficam com as batatas por serem os mais fortes, os mais
qualificados para garantir a perpetuação da espécie.
Não se limitou a essa exposição
didática o pensamento machadiano. Nas palavras de Alfredo Bosi, "há
no Memorial desses momentos que se abrem para aquelas vertigens de
neatividade que nos acometem lendo as Memórias póstumas: Ronda
Aires, como rondava Brás Cubas, a tentação impaciente, a tentação
violenta de se identificar com a Sociedade e a Natureza tal como as
figurava a ideologia terrível do 'darwinismo social'. Para esta, o
morto é apenas matéria morta, e seu único destino é o esquecimento."
Tudo isso em dois livros escritos sob o signo da memória, mas também
sob o signo da Natureza indiferente, personagem emblemática em
outros dois textos: o delírio de Brás Cubas e o poema "Uma
criatura".
O que tem faltado aos intérpretes
fragmentários de sua obra (como os que se obstinam no inexistente
"enigma de Capitu") é a leitura orgânica e remissiva da obra
inteira, cuja coerência interior chega a ser surpreendente. Até a
organicidade textual dos romances costuma passar despercebida.
Assim, toma-se por declaração de misantropia a última linha do Brás
Cubas (cap. CLX), quando ela apenas reflete o despeito e a nostalgia
da paternidade do personagem que se encantara com a notícia da falsa
gravidez de Virgìnia, chegando, como todos os pais putativos, a
imaginar futuros brilhantes e vitoriosos para a criança que ia
nascer. Só se pode realmente compreender essa página de um capítulo
intitulado "Das negativas, [sic] se a lermos no contexto de quatro
capítulos anteriores: "O mistério; (LXXXVI), "O velho colóquio de
Adão e Caim, (XC), "A causa secreta; (XCIV) e "Flores de antanho; (XCV).
Que Machado de Assis pertencia à
família espiritual dos grandes moralistas fica documentado nos
excertos que Alfredo Bosi teve a idéia tanto mais feliz de
transcrever em apêndice quanto não será temerário supor que não são
lidos entre nós com a assiduidade necessária. Entre eles o Matias
Aires das Reflexões sobre a vaidade dos homens, de onde provém outra
"camada" caracteristicamente machadiana, didaticamente representada
no "mais célebre dos seus contos-teoria"; ("O espelho"): "Tirada a
insígnia, o que fica é o homem simples; despida a toga consular,
também fica o mesmo. Se tirarmos do capitão a lança, o casco de
ferro, e o peito de aço, não havemos de achar mais do que um homem
inútil, e sem defesa, e por isso tímido e covarde."
Ora, a mesma situação de "alma
exterior" encontra-se em Dom Casmurro, quando Capitu, "em plena
lua-de-mel, mostra-se impaciente e quer descer da Tijuca para a
cidade". A causa da impaciência, comenta o narrador, "eram os sinais
exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro
paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também."
Episódio corroborado por muitos outros, sem excluir a natureza de
diversas figuras femininas, como Sofia e a Guiomar de A mão e a
luva, novela em que se encontra o embrião de Dom Casmurro, além da
"teoria matrimonial" do autor: temperamentos afirmativos (Luís Alves
e Guiomar) fazem os casamentos felizes, o que não ocorre entre um
temperamento afirmativo (Capitu) e um passivo (Bentinho). Daí o
corolário do adultério: Capitu e Escobar viram-se atraídos um pelo
outro, pelo tropismo irresistível das almas gêmeas. O próprio
Bentinho se encarregou de esclarecê-lo: ela era mais mulher do que
ele mesmo era homem.
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