Wilson Martins
Prosa & Verso,
29.05.1999
Histórias do Brasil
Em frase mais espirituosa do que
justa, Capistrano de Abreu dizia que Vicente do Salvador havia
escrito antes "histórias do Brasil" que uma história do Brasil -
julgamento que, com irônica exatidão, cabe aplicar a ele mesmo. E
também a José Murilo de Carvalho, que, em nossos dias, está
repetindo uma carreira bibliográfica com idênticas características
(Pontos e bordados. Escritos de história e política. Belo Horizonte:
UFMG, 1998).
De 1883, data do seu primeiro livro, a
1927, quando faleceu, vinte anos depois do último (1907), os
historiadores viveram na expectativa da grande história do Brasil a
que Capistrano de Abreu parecia destinado "e que nos devia" (!).
Toda essa ansiedade acabou por se frustrar e, tudo bem considerado,
ele fez ainda menos do que o modesto antecessor do século 16.
Dominado pela angústia de escrevê-la, viveu em busca de excusas
subconscientes para explicar o bloqueio mental, declarando que só
seria possível escrevê-la depois que se escrevesse a história da
Companhia de Jesus no Brasil - que, infelizmente, chegou tarde
demais (1938/1985).
A verdade é que a historiografia
brasileira sempre alimentou a nostalgia de um Varnhagen, cujo título
implantou as perspectivas obrigatórias e que não encontrou
substitutos ou continuadores nem no mencionado Capistrano, nem em
João Ribeiro (que se dedicou à estante didática), nem em Pedro
Calmon (praticante da historiografia narrativa). Nessa linhagem,
José Murilo de Carvalho, ao lado de um ou dois trabalhos
monográficos, tem publicado ensaios esparsos de excelente qualidade,
como os que reuniu neste volume. Ele se pergunta sobre a
possibilidade ou a conveniência de escrever ou reescrever a
"história geral" de extração varnhageniana e elogia Francisco
Iglésias (1923-1999) por ser um "crítico de história", não um
historiador nos moldes convencionais.
Se Martius ensinava, no século
passado, como escrever a história do Brasil (para um Brasil que
tomava consciência de sua história), José Murilo de Carvalho
pergunta, em nossos dias, se não conviria, antes, escrever "história
no Brasil": "Hoje os von Martius não precisam vir ao Brasil e
dizer-nos como deve ser escrita a história. Nós vamos atrás deles e
escrevemos a nossa história como eles escrevem as deles. A pergunta
a ser feita é se se justifica, diante das mudanças da globalização e
da historiografia, em parte mas não totalmente coincidentes, que a
historiografia brasileira caminhe a reboque do que se faz lá fora."
No que concerne à literatura, um dos
ensaios mais interessantes refere-se aos bordados de João Cândido, o
"almirante negro" de 1910 e claro protótipo de Adolfo Caminha para
criar, em 1895, o protagonista do Bom-Crioulo, por muitos
considerado o seu melhor romance. Tendo sido oficial de marinha, ele
certamente tivera notícia de João Cândido, se é que o não conheceu
pessoalmente, já então célebre como conegaço, isto e, "um marinheiro
experiente que se impunha aos mais novos e subalternos, sobretudo
aos grumetes, pela autoridade da experiência e pela força dos
músculos." Alguns críticos viram no Bom-Crioulo um "romance de
costumes marítimos" (sem dúvida!), enquanto outros pensaram
tratar-se de uma crítica ao uso da chibata nos navios de guerra.
Os bordados de João Cândido
confirmam-lhe a homossexualidade e conferem ao romance um valor de
realismo até agora desconhecido, provando que Adolfo Caminha sabia
do que estava falando e mais do que se imaginava. Estranhando que o
marinheiro jamais mencionasse as suas prendas femininas em nenhuma
das inúmeras entrevistas que concedeu, José Murilo de Carvalho
atribui-lhe o silêncio ao preconceito social: "Na época, bordar era
coisa de mulher". O que desejava ocultar, creio eu, era o próprio
homossexualismo, ilação que os contemporâneos não deixariam de
tirar.
Pode-se discordar dos que afirmam,
como Brito Broca, que, "apesar da crueza com que o tema é tratado,
Bom-Crioulo não é propriamente (sic) um romance sobre o
homossexualismo" - e quem discorda é o romancista, em artigo de
defesa (A Nova Revista, n.º 2, fev. 1896, transcrito em Calibán, n.º
1, 1998): "Que é, afinal de contas, o Bom-Crioulo? Nada mais que um
caso de inversão sexual [] em que se estuda e condena o
homossexualismo."
Tendo sido, nos anos 20, o tratadista
por excelência da matéria brasileira - posição que perdeu, na década
seguinte, em favor de Gilberto Freyre - Oliveira Viana sofreu o
desgaste das ideologias com que se identificou ou com que o
identificaram os simplismos sumários de outras ideologias: "Xingar
Oliveira Viana tornou-se, então, um dos esportes prediletos dos
intelectuais de esquerda ou mesmo liberais. Os rótulos
acumularam-se: racista, elitista, estatista, corporativista,
colonizado, nas críticas mais analíticas, Reacionário, quando a
emoção tomava conta do crítico." Pensar por etiquetas, vício comum
dos ideólogos, não ajuda em nada na primeira de todas as tarefas
historiográficas, que é compreender - inclusive e sobretudo aqueles
de quem discordamos.
A família política de Oliveira Viana,
segundo José Murilo de Carvalho, era a dos liberais conservadores,
duas palavras malditas no vocabulário do nosso tempo,
particularmente entre os revolucionários de gabinete, para quem
"revolução" é idéia abstrata, sem compromissos com o contexto
histórico. Claro, a "democracia social" de Oliveira Viana não é a
"democracia social" dos seus adversários, hoje denominada de
"social-democracia": as ideologias vivem no reino encantado da
semântica, onde as palavras significam o que desejamos que
signifiquem. Mas, para além dos anátemas, Oliveira Viana é parte
integrante do nosso diálogo histórico: ignorá-lo ou eliminá-lo é
amputar todo um painel da vida nacional sem o qual os seguintes não
terão sentido.
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