Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 10.07.1999



Ensaísta Representativo




 

A antologia de ensaios com que a Fundação Casa do Penedo (AL) iniciou a publicação das Obras de Elysio de Carvalho (1880-1925) recupera para a memória literária um dos autores representativos do último fim de século brasileiro (Ensaios. Brasília: Fundação Casa do Penedo/Editora Universa, 1997).

Elysio de Carvalho viveu numa conjuntura intelectual complexa, geralmente despercebida pelos observadores superficiais e simplificadores dos nossos dias, conciliando o esteticismo wildiano com as idéias socialistas, o simbolismo literário com as crenças esotéricas, a superstição e a ciência (o Instituto de Manguinhos foi inaugurado em 1900), a aspiração pela reforma social com os sentimentos conservadores, o nietzscheísmo com a reação católica, a ignorância (revolta da vacina em 1904) com a pesquisa científica (Osvaldo Cruz), a República e o desencanto com ela.

Ele estava, por assim dizer, no centro geométrico de todas essas linhas de força, sistema ao mesmo tempo contraditório e organicamente coerente, estudado por Brito Broca num livro clássico (A vida literária no Brasil - 1900. Segunda edição, 1960), complemento necessário a dois outros livros não menos clássicos de João do Rio, um deles As religiões do Rio (1905), que, ao contrário do que pensam os espíritos simples, não é mera reportagem pitoresca e circunstancial, o outro sendo, no mesmo ano, O momento literário, entrevistas reunidas no volume de 1908, dentre elas o depoimento de Elysio de Carvalho, que, por si só, escrevia João do Rio, representava "uma porção de pequenos movimentos literários, reflexos de pequenas escolas francesas".

Malícia tanto mais despropositada quanto ele relembrava, justamente, a obsessão quase doentia com que, a princípio, se havia entregue às leituras francesas, acrescentando: "E o que é interessante é que lia mais para satisfazer minha vaidade de homem lido do que para encontrar um alimento necessário para meu cérebro, destituído de idéias e de sensações estéticas." Além dos autores clássicos que mencionava, não esquecia Zola, "escritor que eu detestava e combatia sem nunca o ter lido, empolgou-me de emoção." Zola despertou-lhe "o desejo de uma arte mais sã, mais humana, mais conforme com a natureza: daí a minha adesão ao movimento naturista que em França iniciara Bouhélier, cujas idéias procurei propagar e defender no Brasil, publicando para isto um manifesto e uma revista."

Designando Zola como "chefe da escola naturista", ele confundia duas "escolas" diferentes - o naturismo e o naturalismo - muito embora tivesse publicado, em 1901, com Delenda Cartago, o manifesto da escola de Bouhélier, que "teve aqui tanta repercussão quanto em França, de onde provinha", isto é, acrescento eu, nenhuma. Os naturistas eram anti-simbolistas, que haviam preconizado "a arte do sonho, a busca do arrepio desconhecido", amando "as flores venenosas, as trevas e os fantasmas."

O manifesto do Naturismo foi publicado no Figaro, a 10 de janeiro de 1897; entre 1900 e 1902, o grupo se dissolveu, de forma que Elysio de Carvalho chegava tarde demais e anunciava uma revolução extinta, conforme percebia quatro anos mais tarde no encontro com João do Rio. Na verdade, ele havia iniciado a carreira literária em 1900, com a tradução dos Poemas, de Oscar Wilde, "em versão livre", assim se identificando com João do Rio numa vertente de sensibilidade característica de um e de outro. O romancista de Dorian Gray, escreve Brito Broca, entrara em moda na literatura brasileira. Além de João do Rio, "outro grande wildiano foi Elysio de Carvalho, que traduziu Uma tragédia florentina."

Partiu, entretanto, desse wildiano o que jamais teria ocorrido ou interessado a Oscar Wilde: "uma das realizações mais práticas que o clima tolstoiano produziu no Brasil: a fundação de uma Universidade Popular, empreendimento infelizmente efêmero." Na sua bibliografia, a obra fundamental é As modernas correntes estéticas na literatura brasileira (1907), em cujo título e talvez na sua inspiração percebe-se o eco de uma obra então célebre: As grandes correntes da literatura européia do século XIX (1872/90), do dinamarquês Georg Brandes (1842-1927), com quem Elysio de Carvalho compartilhava fronteiras nietzschianas.

Injustamente esquecido observei em A crítica literária no Brasil, I, "e, às vezes, até levianamente ironizado, Elysio de Carvalho escreveu, entretanto, com esse livro, um dos textos mais interessantes de nossa história intelectual, testemunho inapreciável do estado de espírito de sua geração e dos mestres que elegera, um passo além da Escola do Recife." Era uma inteligência inquieta e, talvez, sem espírito de sistema, embora atraído pelos sistemas que se sucediam e reciprocamente se anulavam. Era também um espírito universal, afirmando, sem medo de ofender as suscetibilidades provincianas: "Não sou um escritor brasileiro, não me pareço em coisa alguma com qualquer deles [] sou supranacional e pertenço ao momento intelectual europeu."

No que, aliás, em nada se distinguia dos seus contemporâneos afrancesados: situando-se "a meio caminho entre Paulo Barreto e Figueiredo Pimentel [] ele exemplifica a boêmia dourada [] de 1990, cujo concubinato com o mundanismo e com as letras era característico da época. [] Elysio simulava, contudo, um perfil mais sério. Publicava estudos sobre literatura contemporânea e sobre a elite carioca, por exemplo, e se dizia anarquista []' (Jeffrey D. Needell. Belle époque tropical, 1993).

"Simulava" é palavra um pouco forte e, de resto, injusta, tratando-se de um intelectual autêntico e espírito inquieto - homem representativo do seu tempo.
 
 

 

 

 

 

23/09/2005