Wilson Martins
Prosa & Verso,
24.07.1999
As cordas da lira
Lidos na seqüência em que os dispôs na
própria antologia ("Visão do ser". Rio: Topbooks, 1998), os poemas
de Pedro Lyra são um concerto de alta literatura, repentinamente
interrompido pelo tiro de pistola a que se referia Stendhal: as
composições "políticas" do volume "Decisão" (1983). É poesia? Não é
poesia? Claro que é poesia - para quem acha que isso é poesia e que
poesia é isso.
Acontece apenas que, para ser boa
poesia política, o poema deve começar por ser boa poesia,
necessariamente escrita na sua linguagem específica, que é o modo
épico, para o que falta, na lira do poeta cearense, a "corda de
bronze" dos grandes demiurgos. Composta no modo lírico, a poesia
política reduz-se a declamação sentimental e retórica sobre os
desconcertos do mundo, para lembrar Camões, o mestre da épica,
inaceitável para a "consciência ideológica contemporânea", segundo
Lyra, por ser "pró-imperialismo". No mesmo impulso de ódio
teológico, ele se indignava com os poemas anti-socialistas de
Alberto Caeiro, prova evidente de que Fernando Pessoa era fascista
("O dilema ideológico de Camões e Pessoa", 1985). Por esses
critérios simplistas, Cristo, tendo declarado que sempre haveria
pobres entre nós, também era fascista por aceitar o mundo como é,
embora socialistas líricos do século XIX o encarassem como o
primeiro deles na ordem histórica.
Os poemas "socialistas" de Pedro Lyra,
inspirando-se no catecismo marxista, são um pequeno tratado de
economia política, cujo único defeito é ter sido escrito por
Rousseau no século XVIII - o fascista Rousseau, fonte de Proudhon e
dos anti-Proudhon, sem excluir o venerável autor da "Miséria da
filosofia".
Nesta antologia, são 50 páginas em que
o operário não pode comer a carne enlatada que fabrica, nem habitar
os palacetes que constrói para os senhores capitalistas, pobre
operário que jamais poderá ler o livro que acaba de encadernar. O
lirismo, que desqualifica a poesia política, é, ao contrário, o que
faz a excelência dos poemas, digamos, literários, dominados pelo
sentimento da condição humana. Na temática, ele renova a poesia
amorosa, desmitifica a sentimental e, na técnica, reestrutura o
soneto clássico sem destruí-lo. A reflexão filosófica ou humanística
condiciona-lhe a forma de ver o mundo e os seus enigmas, entre
outros o da nossa própria existência, como, por exemplo, no "Soneto
da constatação, XXVII" ou no "Soneto de confissão, XIV".
Diga-se, de passagem, que, para
perceber o que há de meditação filosófica nessa poesia, é preciso
lê-la em conjunto, quase diria simultaneamente, em particular no que
concerne aos sonetos em sua unidade recíproca e contradições
aparentes, muitas delas apenas complementares entre si. Sua
estrutura global é parte integrante do pensamento poético: esses
poemas são, por assim dizer, a demonstração (no sentido matemático)
do teorema da nossa humana condição. No fundo, Lyra é um moralista
que se ignora, com deformantes contaminações do Manual do Perfeito
Marxista.
Gerardo Mello Mourão ("Cânon & fuga".
Rio: Record, 1999) dele se distingue por dominar superiormente a
corda de bronze do instrumento. Isso ficou evidente na "Invenção do
mar" (1997) e, agora, no presente volume, prêmio Jabuti deste ano.
Ele é um pouco o albatroz baudelairiano da poesia brasileira
contemporânea, impedido do percurso pedestre por suas asas de
gigante, quero dizer, a erudição histórica e a consciência literária
dela decorrente. Seus poemas estão impregnados de reminiscências
involuntárias de leituras e vivências cultas transmitidas pelos
séculos, em particular o rio mítico que vem da Grécia para
fertilizar a cultura ocidental.
O poeta é o "piloto do naufrágio", mas
também o "governador dos tempos", o "tabelião das eras", o
arquivista das letras que se perpetuam de idade para idade. Há neste
volume a contraprova nos poemas em que vibra a corda de bronze onde
outros ter-se-iam resignado às cordas de arame, como, por exemplo,
em "The waste brotheols 2", escrito, como os demais da mesma série,
no modo épico. É preciso lembrar o que há de substância lírica em
filigrana no tecido da poesia épica, aparente contradição que nem
todos percebem e que os tratadistas ignoram. Assim, a melancolia de
Villon ao meditar sobre neves de antanho reflete a consciência do
tempo histórico e irreversível, no mesmo plano em que a visão
camoniana não encobre o que o herói tem de fragilidade humana.
Onde estarão as neves de outrora, as
prostitutas legendárias e mitológicas da mocidade de cada um - "onde
estarão as grandes camas azuis"? Nesses quartos de nostálgicas
evocações "iam e vinham, assírios, babilônios, egípcios/clientes
holandeses, bordaleses dos porteiros de hotel, / príncipes russos já
fuzilados, / rabinos e publicanos, pregadores de seitas, banqueiros
e doutores da Caldéia (...)." A poesia não existe para registrar as
peripécias do cotidiano, mas para testemunhar da cavalgada dos
séculos, essa permanência que se transforma. Os poemas cívicos são
"exteriores" à alma do poeta, pertencem ao mundo do pensamento
lógico e referencial; na corda de bronze compõem-se os que vibram no
tempo que fica, não no tempo que passa. Em outras palavras, no
Tempo, com maiúscula.
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