Wilson Martins
26 de julho de 1999
O baú do Fernando
O mitológico baú de Fernando Pessoa
assemelha-se ao buraco das adivinhas infantis: quanto mais se tira,
maior fica. Nele se acumulam os inéditos que há meio século
professores e críticos, editores e comentaristas da imprensa vêm
explorando em todos os sentidos da palavra, inclusive os comerciais.
Agora, o espólio tomou a forma de biblioteca, composta, ao
contrário, de textos publicados, mas esquecidos ou ignorados - a
Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
Como recorda Arnaldo Saraiva (Fernando
Pessoa. Poeta-tradutor de poetas. Os poemas traduzidos e o
respectivo original. Rio: Nova Fronteira, 1999), Marco Chiaretti,
editor do suplemento "Letras" da Folha de S. Paulo, publicou em 1990
cinco "traduções perdidas de Pessoa", descobertas por acaso numa
Enciclopédia Internacional de Obras Célebres, impressa, segundo
informava, por volta de 1911. Não era "enciclopédia", mas dicionário
de literatura, coleção de 24 volumes reunindo, não excertos
antológicos, mas textos completos dos "autores mais afamados dos
tempos antigos, medievais e modernos", cuja história editorial foi
reconstituída por Arnaldo Saraiva.
Não se sabe exatamente, escreve ele,
"quem a organizou, nem quando e onde foi impressa e distribuída. As
indicações editoriais, sempre as mesmas que ela contém em qualquer
dos seus volumes são apenas as do editor "Sociedade Internacional"
de "Lisboa Rio de Janeiro São Paulo Londres Paris", referindo
redatores principais em 12 capitais e colaboradores em 16 países.
Data de 1906 a edição em nossa língua, incluindo autores portugueses
e brasileiros, "às vezes com numerosos textos: vejam-se sobretudo
exemplos como o de Camões, com mais de 25 textos[] ou de Machado de
Assis, com 11 textos. Mas o número de autores e de 'colaboradores e
críticos especiais' brasileiros, que são destacados na própria folha
de rosto [] José Veríssimo, Vicente de Carvalho, Artur Orlando, Reis
Carvalho, Constâncio Alves, Lindolfo Collor, João Ribeiro, indica
sem dúvida o público-alvo da edição []."
Tudo leva a crer, acrescenta Arnaldo
Saraiva, que "ela tenha sido feita em Portugal. Eduardo Freitas da
Costa escreveu em 1951 que 'a edição destinava-se a ser publicada no
Brasil'. 'Publicada' neste caso quer dizer 'impressa e distribuída'
ou só 'distribuída', isto é, vendida?." As coleções tornaram-se
raras: Arnaldo Saraíva não encontrou nenhuma na Biblioteca Nacional
de Lisboa nem nas bibliotecas públicas portuenses, havendo uma na
Biblioteca Municipal de São João da Madeira. No Brasil, esclarece
ele, "vimos em 1995 quatro coleções, uma das quais incompleta, à
venda em livreiros de Porto Alegre e Rio de Janeiro", lembrando que
Carlos Drummond de Andrade ganhou uma, como presente do pai, quando
tinha 10/11 anos.
Eu mesmo sinto-me ligado por
contigüidade ou osmose à coleção completa da Biblioteca Pública do
Paraná (que a possui até hoje), então provisoriamente instalada em
uma sala (!) do Ginásio Paranaense, quando ali estudei nos anos
trinta. Aproveitando as férias e as horas vagas, sob a proteção do
bibliotecário Reginaldo, explorei sistematicamente as veneráveis
estantes (era ainda o tempo dos grandes armários de madeira com
portas de vidro).
No que se refere a Fernando Pessoa,
escreve Arnaldo Saraiva, "o que pode causar admiração é que tenha
sido pedida a sua colaboração nem dúvida quando ele não tinha ainda
nome literário ou quando ainda não tinha prestado provas públicas
das suas capacidades poéticas." Trabalhando como correspondente em
inglês nos escritórios comerciais da Baixa lisboeta, é natural que
fosse conhecido, chamando a atenção do sr. Kellog, editor da
Biblioteca para o português e espanhol, colega seu no distrito.
Arnaldo Saraiva recuperou algumas cartas relacionadas com a
colaboração. Assinadas por Warren F. Kellog [] revelam que este
"preparou cuidadosamente num escritório lisboeta a edição da
Biblioteca, que Pessoa era um dos seus colaboradores próximos, e até
de recurso, tradutor não só do inglês mas também do castelhano,
mesmo antigo, e que pelo menos algum ou alguns dos volumes foram
preparados já no início de 912."
Na Biblioteca, "Pessoa só aparece
explicitamente - no Îndice ou no corpo dos volumes - como tradutor
de poemas", parecendo-me extrapolação de Arnaldo Saraiva imaginar
que pode também ter sido de sua autoria o que se incluiu
anonimamente em prosa e verso. Ele mesmo adverte que, "quando se
trabalha com inéditos do espólio pessoano há que usar de alguma
prudência; certamente (sic) que existem mais poemas [do que os
reunidos neste volume] traduzidos por Pessoa, e certamente que nem
todos os textos que parecerão traduções de Pessoa são traduções e
traduções de Pessoa []."
Seja como for, "parece incrível que só
em 1990 se tenha dado conta - e no Brasil - da colaboração de Pessoa
numa obra até fisicamente tão relevante. Mas não menos incrível
parece que só tenham sido detectados nela cinco traduções [] quando
aqui e agora propomos dúzia e meia." A explicação é simples: o
editor paulista confiou nas indicações do índice geral no último
volume, mas, pels cartas de Kellog e pesquisas próprias, Arnaldo
Saraiva desencavou, como ficou dito, numerosos outros trabalhos.
Recebemos, assim, duas lições pelo
preço de uma: a primeira, é que a consulta dos índices não dispensa
da leitura das obras, e a segunda, aliás previsível, é que o baú de
Fernando Pessoa não tem fundo, o que, aliás, não será coisa que
pudesse descontentá-lo.
Leia a obra de
Fernando Pessoa
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