Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 07.08.1999



Contistas




 

O sarcasmo com que Mário de Andrade afirmou ser conto tudo o que os autores chamam de conto foi tomado por muitos como um princípio científico de estética literária e, por outros, muito mais numerosos, como licença para propor como contos tudo o que escrevem com a intenção de escrever contos.

Pode ser um autor como Jorge Pieiro (Caos portátil. Fortaleza: Letra & Música, 1999), que reuniu em volume o que chama de "contemas", "fragmas" e até "contos", exercícios que tanto podem ser sobrevivências de um surrealismo extemporâneo e caduco quanto o prenúncio da literatura internética do século XXI (quem sabe?). São "experiências fragmentárias", explica ele, a exemplo deste excerto (Fragmentos de amar"): "A flecha do ar. E estiveram a sós todo um tempo, e sem conhecerem a razão. Não se falaram, não se anunciaram, contidos. A vida encontra e faz desencontrar estímulos. A beleza, se não desvanece, encontra guarida na ironia da solidão, nos sentimentos dos corpos de homem e mulher. É a verdade. Mas a verdade, eles não se conheceram até aquele instante."

É o que, em outros tempos, chamávamos de poema em prosa, ou, ainda, o devaneio de um adolescente apaixonado. Assim se abrem as possibilidades de leitura, pois os "fragmas" bem podem ser os "fractais" da criação literária. No pólo oposto, quero dizer, nos limites do conto realista (que é o conto tradicional), situa-se Pedro Franco (Se alguém rir, paro de falar). Varginha, MG: Alba, 1999), o conto que conta histórias com peripécias inesperadas e às vezes com intenções humorísticas. São contos "orais", se assim me posso exprimir, nos quais se "contam" histórias por escrito, histórias que se referem mais aos personagens inventados do que à condição humana, contos anedóticos que se esgotam na anedota.

Nessas perspectivas, é oportuna a publicação dos "melhores contos" de Marcos Rey (1925-1999) na coleção editorial desse nome (São Paulo: Global, 1999). Se os livros de contos são o maior inimigo dos contistas (pela inevitável desigualdade a que estão condenados), as antologias acrescentam a esse inconveniente o defeito específico de todas elas, que é despertar os maus intintos do leitor: a tentação da discordância. Com "Traje a rigor" e "O enterro da cafetina" Marcos Rey escreveu legítimas obras-primas do conto brasileiro, mas não é menos certo que, em outros, deixou-se levar pela facilidade, deriva em que sacrificou boa parte da grande obra que poderia ter deixado.

De qualquer forma, era um contista nato, com estilo narrativo de alta precisão, embora sujeito aos impulsos da espontaneidade. Suas figuras da noite paulistana são incomparáveis e autênticas, como, ainda uma vez, no quadro extraordinário de "Traje a rigor" ou na ironia irresistível de "O guerrilheiro", conto em que "revolucionários" de bar se propõem a destruir o capitalismo pela "execução" dos ricos à custa de coquetéis molotov: "Vamos marcar a ação para sábado, não?' - calculou, soturno, o homem calvo que chefiava a reunião." Infelizmente, um dos conspiradores não poderia tomar parte na "ação": "Sábado vou dormir com Marlene.". É, naturalmente, expulso como traidor, enquanto os amigos se exercitam em atirar os coquetéis pela janela da sala sobre um terreno baldio: "Com seu braço curto, mas robusto, Gianini lançou o litro, que descreveu uma longa curva no espaço até o terreno abandonado. Uma vasta chama se ergueu com um surdo rumor. Em seguida, o fogo se estendeu por um longo trecho do terreno. Um mendigo que dormia alí saiu correndo (...)."

Marcos Rey estreou em 1953 com Um gato no Triângulo, de qualidade ainda no estado embrionário, por assim dizer, o que agora é fácil de perceber graças a sabedoria retrospectiva. Depois disso, fez vitoriosa carreira na literatura infanto-juvenil e nas telenovelas, o que é a mesma coisa. Rodrigo Lacerda, de seu lado, parece ter vindo para ficar na ficção brasileira, embora demasiadamente inclinado às fantasias desenfreadas. A inverossimilhança é o seu forte, contrariando o tropismo realista que, por paradoxo, é próprio da ficção.

A imaginação transbordante sacrificou o que poderia ter sido duas boas novelas (O mistério do leão rampante e A dialética das larvas), agora contida na miscelânea de Tripé (Cotia, SP: Ateliê, 1999). Contida, mas não dominada. Assim, por exemplo, o "motivo" narrativo de base em "Comida" será dificilmente aceitável: trata-se de um gourmet que mantém duas ratazanas em gaiolas, servindo-lhes delicadas iguarias em louça de qualidade e copos de cristal, tudo terminando numa cena de dramalhão antigo: "Luciano desce correndo as escadas. (...). As duas ratazanas estão cobertas de pó e sangue (...). Desesperado, Luciano começa a jogar tudo no chão. Derruba os caixotes e, junto com eles, as gaiolas. Espalha os tapetes, avança sobre a mesinha de jantar e espatifa os pratos contra a parede, quebra os copos com as mãos (...)."

Ele pode fazer melhor, como no conto "Estante nova", escrito com sensibilidade e espírito, além do domínio do instrumento. Na biblioteca desarrumada pela mudança, o personagem reintroduz a ordem no mundo da literatura.
 

 

 

 

 

 

23/09/2005