Wilson Martins
09 de agosto de 1999
A provocadora
Considerando-se o contexto social, o
código de boas maneiras e os cânones literários e morais da época,
haviam mais audácia na linguagem metafórica e sugestiva de Gilka
Machado em 1915 do que na truculência verbal de Hilda Hilst nos dias
de hoje (Do desejo. Campinas: Pontes, 1991). O desafio passou para a
prosa e até para o jornal da manhã (Cascos e carícias. Crônicas
reunidas. 1992-1995. São Paulo; Nankin, 1998), não só no que ela
mesma escreve, mas também no que corriqueiramente escrevem os
jornalistas mais "emancipados". A diferença de épocas está em que
Gilka Machado escandalizou no seu tempo, enquanto Hilda Hilst não
escandaliza no nosso, a ponto de publicar as suas crônicas
escatológicas num matutino de grande circulação (com alguns
protestos dos leitores mais apegados às conveniências).
Gilka Machado causava escândalo, mas
Hilda Hilst acumula prêmios literários: PEN, em 1962; Anchieta,
1969; conjunto da obra, 1981; Jabuti, 1984; Cassiano Ricardo, 1985.
Sua obra "mais válida", escrevia Péricles Eugênio da Silva Ramos com
alguma ambigüidade, estava compendiada no volume de Poesias
1959-1967, mas foi justamente de 1967 para cá que a Eternidade
transformou-a nela mesma, Suprema Sacerdotisa nos altares (?=
poéticos de Eros, observei a esse propósito em 1993).
A interogação remete ao domínios da
Ars amatoria, de Ovidio, que, aliás, advertia não escrever para
mulheres honestas, porque os "altares" do erotismo ocupam os espaços
que José Paulo Paes tomava da sabedoria hindu com vertiginosa
nacionalização ortográfica, chamando-os de cama-sutra. Preferindo (e
como!) um verbo vulgar para designar a união dos sexos, Hilda Hilst
não só nada acrescenta à força expressiva dos poemas, como ao
contrário, priva-os das virtualidades sugestivas, eliminando a
distância que vai da relação amorosa para a relação física.
Ela é, entretanto, um poeta de grande
sensibilidade e perfeito domínio do idioma, para nada dizer da
gravidade com que encara, no fundo dela mesma, o mistério da
existência. Eram inesperados, num volume intitulado Do desejo, os
versos de fulgurantes reverbações morais (no sentido filosófico da
palavra): "Quem és? Perguntei ao desejo. / Respondeu: lava. Depois
pó. Depois nada". As "odes mínimas", que agora reaparecem em edição
bilingue (Da morte. Odes. mínimas. De la mort. Odes minimes. trad.
Álvaro Faleiros. São Paulo/ Montreal: Nankin/Le Norolt, 1998),
pertencem à "outra" Hilda Hilst, como era outro o Gregório de Matos
que, aterrorizado pelo silêncio eterno dos espaços infinitos,
escrevia sob a inspiração religiosa mais alta, enquanto se vingava
da condição humana com poemas satíricos e obscenos. A sátira de
Hilda Hilst está sobretudo nas crônicas, muitas delas exprimindo a
indignação cívica que é a de muitos brasileiros, se não de todos
eles (nós): "Em decorrência da fetidez que assola o país, só tenho
vontade de escrever textos sólidos, coléricos, cínicos, degradantes
ou estufados de um horror cruel (...)." Quem não tem?
Pelo menos, ela formula na pauta da
revolta moral as perguntas sem resposta que se faziam em 1994 e
continuam a se fazer: "Então o país é saqueado em US$ 190 bilhões
por anões, INSS e quejandos e só o PC na cadeia? E o resto da corja?
Por que não nos devolvem o que nos foi saqueado? Por que os bens de
todos esses canalhas não são devolvidos ao país (...) A dívida
externa do país é de US$ 140 bilhões! Os canalhas roubaram mais do
que a dívida externa de todo o Brasil!".
Agora, "mudando um pouco de assunto",
não é a condição humana em face da morte, nem mesmo a condição do
Brasil à beira do abismo, o que a preocupa, mas, pedestremente, a
condição do escritor no Brasil: "A Editora Brasiliense me mandou
dois (2) reais e trinta e três (33) centavos de 'direitos autorais'.
Fiquei perplexa com a correção da editora. Devem ter tido o maior
prejuízo comigo, que corretos! Só de selo e office boy gastaram mais
do que isso! Por isso estou mandando dez de óbulo para a dita cuja.
Eu devo ser mesmo um lixo, e pornógrafa, e louca, e chula, e menor,
e certamente morrerei obscura neste país de bolas e tretas, de
cartolas."
Algumas crônicas não são apenas
escritas em verso - são escritas em poesia, o que é diferente. E
poesia da mais alta qualidade, como a das Odes mínimas sobre a
realidade ominosa da morte, irremovível obsessão existencial: "Há
tanto a te dizer agora! Meus olhos se gastaram/ Procurando a palavra
nas figuras, nos textos, nas estórias. Era preciso viajar e
levantada em renúncias redescobrir a morte / Além de seu sudário e
suas tremuras. Quase nada aprendi. De nada me lembrei.
Megalômana e ressentida, é como se
confessa e admite, mas também grande solitária, buscando
ocasionalmente na fuga alcoólica o mundo brilhante que o mundo lhe
parece negar. É a provocadora sentimental, lutando contra a
indiferença: "Essa modesta articulista que eu sou, escreveu textos e
poemas belíssimos e compreensíveis, e tão poucos leram os compraram
meus livros..."
A queixa é justa, podendo ser repetida
por praticamente todos os poetas. É pungente pensar que Hilda Hilst
vale mais, muito mais, do que muito do que escreveu na esperança de
chamar a atenção para o que vale.
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