Wilson Martins
Leituras brasileiras (?)
Vem de longe nossa alienação mental, a
ânsia esquizofrênica de estar "atualizado", de conhecer os autores
estrangeiros, em particular os mais recentes. Há, mesmo, uma corrida
para lê-los antes de qualquer outro, o que, além de satisfazer a
vaidade, serve também para humilhar os interlocutores - amigos e
adversários. Sílvio Romero criticava Teófilo Braga por sua
desatualização, visto não citar Le Play, Tourville e Demolins;
Teófilo Braga, de seu lado, dizia basear-se em Max Muller, prova de
inconstestável superioridade. As imensas leituras de Rui Barbosa
foram, talvez, o fator implicitamente dominante na formação e
consolidação do mito que se formou em torno do seu nome: era homem
que lia no original os autores estrangeiros mais absconsos,
geralmente ignorados entre nós.
Nessas perspectivas, especialistas de
outros países teriam o condão de nos fazer compreender o Brasil,
processo, bem entendido, que agrava ainda mais a desnacionalização
da nossa inteligência, que começa desde logo na desnacionalização
linguística. Muitos dos nossos intelectuais já se mostram incapazes
de pensar em português, de forma que os seus textos são a tradução
mental, recheada de vocábulos peregrinos, do que só sabem exprimir
na língua de origem (normalmente o inglês).
Com o louvável propósito de propiciar
aos futuros diplomatas alguma familiaridade com nossa a cultura,
(neutralizando, na medida do possível, a deriva internacionalizante
e cosmopolita que é inseparável da profissão), o Instituto Rio
Branco incluiu no currículo do curso básico a matéria denominada
"Leituras brasileiras", "com o objetivo de discutir a evolução do
nosso pensamento social, ao amparo de estudos provenientes de vários
campos do conhecimento, como a História, a Sociologia e a
Antropologia, e de práticas estéticas, como a Literatura, as Artes e
o Cinema" (Mariza Veloso/Angélica Madeira. Leituras brasileiras.
Itinerário no pensmaento social e na literatura. São Paulo: Paz e
Terra, 1999).
Quem são os agrimensores desse
itinerário? Para conhecer o Brasil, as autoras procuraram "definir
instrumentos conceituais que permitissem compreender as regras que
estruturam o campo intelectual", ou, em outras palavras, trataram de
ajustar a realidade da nossa inteligência às congeminações teóricas
de tratadistas que vão de Marx a Weber, passando por Frantz Fanon,
Enrique Dusel e, claro está, Foucault e Pierre Bourdieu. Não falta
nenhum autor canônico da "boa" dissertação acadêmica. Ficou por
demonstrar em quê e no quê as "diversas interpretações do Brasil"
resultaram desse quadro teórico, aliás arquitetado em circusntâncias
diferentes e tendo em vista outros objetivos. Na verdade, o livro é
composto de dois "itinerários" paralelos que, obviamente, jamais se
encontram nem se refletem entre si: os "instrumentos conceituais" de
um lado e, de outro, aquilo que já foi moda chamar de realidade
brasileira. Não é menos impressionante o elenco de grandes
pensadores mobilizados por Sérgio Paulo Rouanet na apresentação do
volume: Lévi-Strauss, Lyotard, Mannheim, Gramsci, Althusser, Khun,
Ruth Benedict, Melville Herskovits, Habermas, Anthony Gidedena e
Roland Robertson, além dos já citados Foucault e Bourdieu, num total
de 13 autores da moda em 26 páginas, e cuja compatibilidade
recíproca e com a matéria brasileira ficou por demonstrar. Passa-se
"de Marx para Bourdieu", ensina Rouanet, acrescentando: "as
interpretações de Sílvio Romero, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco,
Euclides da Cunha, Lima Barreto, (propostas pelas autoras) não são
concebíveis fora dos complexos institucionais formados pelos cursos
de Direito em Recife e São Paulo (...)"
Trata-se de um non sequitur,
semelhante aos que Labieno ridicularizava em Sílvio Romero, porque
os mestres de pensamento no Brasil de 1870 eram completamente
diversos, ainda admitindo que se incluam Joaquim Nabuco e Lima
Barreto nesse esquema. As autoras decidiram "constituir um corpus
expressivo das diversas interpretações do Brasil, no contexto do
pensamento social e da literatura, um corpus significativo e
consistente sobre a cultura brasileira" - prova de que aqueles
teóricos nada têm a fazer aqui. E é onde o conhecimento do
"contexto" se mostra algo deficiente.
Par citar apenas um caso, elas incluem
Gilberto Freyre entre os escritores "mais proeminentes" do movimento
modernista, no qual teria participado, mantendo "relações de amizade
e troca de idéias" com os respectivos militantes. Ora, um dos
tópicos célebres na história de nossa literatura contemporânea
refere-se, justamente, ao irreconciliável antagonismo que opunha o
mestre pernambucano aos escritores paulistas, adjetivo, este último,
que não pronunciava sem muxoxos depreciativos. As autoras tomam
"moderno" por "modernista", o que é, de fato, um erro "conceitual".
Para elas, "são ainda valores
modernistas que estão em vigência" na poesia da geração de 45 (que
expressamente os repudiava), na obra de Clarice Lispector, na poesia
marginal e no tropicalismo. Bastam esses exemplos para mostrar que
são outras as "leituras brasileiras" aconselháveis aos jovens
diplomatas.
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