Wilson Martins
Prosa & Verso,
20.11.1999
Cidade das mulheres
Qualquer asqueroso machista que
decidisse compor uma antologia para demonstrar a aflitiva
mediocridade do que deixaram as escritoras esquecidas - e, por isso
mesmo, merecidamente esquecidas - chegaria ao mesmo resultado de
Zahidé Lupinacci Muzart, que organizou a sua, com propósitos
exatamente opostos ("Escritoras brasileiras do século XIX".
Apresentação Nara Araujo. Org. Zabidé Lupinacci Muzart.
Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 1999).
O espírito crítico das militantes
feministas é dominado pela teoria conspiratória: os homens uniram-se
através dos séculos para ignorar o valor, os nomes e as obras das
escritoras - mas, ao mesmo tempo em que o afirmam, enumeram os
incontáveis livros e ensaios inspirados, ao contrário, pelas
respectivas produções, num senso de justiça e eqüidade, infelizmente
contaminado pela benevolência e pelo sentimentalismo.
Pode-se pensar que, dos 52 nomes aqui
compendiados, a crítica e a História literária jamais ocultaram os
de Delfina Benigna da Cunha, Nísia Floresta, Maria Firmina dos Reis,
Júlia da Costa, Carmen Dolores, Narcisa Amália e Corina Coaracy,
proporção que seria a mesma para uma antologia dos escritores
esquecidos ou "injustiçados". Uma inegável exceção de qualidade não
é realmente uma, porque Alexandrina da Silva Couto dos Santos nada
publicou. O que sabemos foi revelado por Guilherme Figueiredo, seu
sobrinho-neto, e é pena, porque ela escrevia, por exemplo, coisas
como o soneto com chave de ouro, inspirado pela decisão do
presidente do Centro de Ciências de Campinas autorizando a
freqüência de mulheres nos dias em que estivesse vedada a entrada
dos homens: "Em pormenores não entro:/ Mas o Ponciano Cabral/ Teve
razão, afinal./ Temendo que o pessoal/ Pilhando moças lá dentro,/
Fosse meter-se no Centro".
Mas, em geral, as restantes escreveram
claudicantes versinhos de adolescentes e historietas de grupo
escolar. Como desapareceram no passado, vão desaparecer mais uma vez
no cenotáfio que lhes armou a antologia. Conhecemos o que aconteceu
com as recentes exumações de Sousândrade, Pedro Kilkerry e outros,
quando se tornou moda ressuscitar os mortos que haviam morrido: à
parte o interesse de curiosidade arqueológica ou necrofílica, em
nada alteraram os quadros da História literária nem nossa escala de
valores.
Com efeito, há alguma diferença entre
as Clarice Lispector e as Gilka Machado, por um lado, e, por outro,
as Ana Ribeiro e as Carmem Freire. O que importa não são as mulheres
e os homens que escrevem, mas os que escrevem bem, distinção
essencial que o feminismo ativista costuma ignorar na ânsia
retorsiva e vingadora de recuperá-las todas. Caberia considerar como
epônima do feminismo brasileiro a legendária Nísia Floresta
(1810-1885), hoje nome de cidade no Rio Grande do Norte, justiça
póstuma contra os agravos que sofreu em vida por violar os códigos
aceitos de moralidade.
Ficou célebre por ter publicado em
1832 a tradução do memorial que Mary Wollstonecraft enviou à
assembléia revolucionária francesa, como documento complementar ao
que então se votava sobre os "direitos do homem e do cidadão" ("A
vindication of the rights of women", 1792). Nísia Floresta
apresentava-a como "versão livre" - libérrima, acrescento eu,
porque, para começar, não era tradução desse livro, mas plágio
desavergonhado de dois outros, conforme Maria Lúcia Garcia
Pallares-Burke demonstrou de maneira irrefutável ("Nísia Floresta,
‘0 carapuceiro’ e outros ensaios de tradução cultural". São Paulo:
Hucitec, 1996).
Constância Lima Duarte, que é, em
nossos dias, a mais dedicada especialista em Nísia Floresta, tendo
publicado em 1989 o volume "Direito das mulheres e injustiça dos
homens", esclarece agora, no capítulo com que contribuiu para a
antologia, que "não se trata aqui simplesmente de uma tradução",
delicado eufemismo que Maria Lúcia Pallares-Burke articula de
maneira menos benevolente: "a pretensa tradução livre de
Wollstonecraft foi, na verdade, o que poderíamos chamar, por falta
de melhor expressão, de plágio-tradução de outro plágio", pois Nísia
Floresta "traduziu literalmente e na sua totalidade um livreto de
1739, intitulado "Woman not inferior to man", cujo autor ou autora
desconhecida se escondia, e ainda se esconde, sob o pseudônimo de
Sophia, a Person of Quality, inaugurando a cadeia de plágios cujo
último elo se encontra em Nísia Floresta, pois a misteriosa Sophia
plagiava o livro de François Poulain de La Barre, datado de 1673
("De l’égalité des deux sexes"), "discurso físico e moral no qual se
vê a importância de nos desfazermos dos preconceitos". Por quê,
tendo traduzido um livro, Nísia Floresta apresentou-o como tradução
de outro, é um mistério. Quanto a Mary Wollstonecraft, jamais foi
traduzida.
A crer no Eclesiastes, nada há de novo
debaixo do Sol, nem mesmo o feminismo, iniciado por Salomé, adepta
de soluções ao mesmo tempo radicais e psicanalíticas - nem mesmo o
machismo, representado pelo blandicioso Salomão, que transformava a
mulher em objeto sexual: "Venha então, minha querida; venha comigo,
meu amor". Ao que ela pressurosamente acorria, com conotações
ecológicas: "A grama verde será a nossa cama". Tudo isso está na
Bíblia.
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