Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



07 de abril de 2000



Livros e autores



 

 

Também no que se refere ao conhecimento do Brasil, é preciso distinguir entre as obras representativas e os autores fundamentais. Se houvesse lógica no mundo do espírito (e no mundo…), todas as obras representativas seriam escritas por autores fundamentais, e os autores fundamentais escreveriam obras representativas, mas não é o que acontece. Aqueles, observei na História do Modernismo (4.ª ed., 1973), são os que, além de se apresentarem como paradigmáticos das suas correntes, assinam pelo menos uma obra eminentemente representativa das respectivas tendências e doutrinas. Estas últimas, de seu lado, confundem-se, na história intelectual, com uma data decisiva.

Assim, Casa grande & senzala é obra representativa, escrita por autor fundamental, mas A ilusão americana é representativa de um momento histórico, sem que Eduardo Prado seja fundamental para o conhecimento do Brasil. José Bonifácio e os seus "projetos para o Brasil" ocupam as duas categorias, mas Paulo, sem ser autor fundamental, deixou, com Retrato do Brasil, uma obra representativa. A Autobiografia de Mauá é obra representativa de um autor fundamental, mas A revolução burguesa no Brasil é representativa de um momento ideológico, sem que Florestan Fernandes seja autor fundamental para o conhecimento do Brasil enquanto entidade ontológica, se for permitido tal vocabulário um pouco pedante, mas apropriado.

Na estante das "formações" assinadas por Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Antonio Cândido, só a deste último é fundamental, enquanto as outras duas são representativas de correntes ideológicas, a exemplo de Raymundo Faoro e José Honório Rodrigues, que, afinal de contas, não chegou a escrever a obra fundamental que se esperava de sua reputação, o que, aliás, ocorre também com Capistrano de Abreu. O mesmo pode ser dito de Vítor Nunes Leal, que não é autor representativo, assim como Coronelismo, enxada e voto não é obra fundamental na sua categoria. Autor representativo é Oliveira Viana, tão subestimado e até anatematizado por motivos de pedestre ideologia quanto Instituições políticas brasileiras é obra fundamental em nosso pensamento publicístico.

Pode-se continuar o exercício indefinidamente, mas estou me atendo às obras e autores resenhados por outros tantos especialistas (19 ao todo) no volume coletivo organizado por Lourenço Dantas Mota (Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999). Nessa linha de raciocínio, não será errôneo ver no Padre Antônio Vieira um corpo estranho no projeto de "apresentar, na forma de resenhas, um conjunto de obras fundamentais para o conhecimento do Brasil." De fato, os trabalhos de Vieira não se subsumem nessas especificações, concorrendo, é certo, para o conhecimento dele próprio e da idade mental em que viveu, sem nada de peculiarmente brasileiro, como, de resto, o capítulo que lhe é dedicado comprova exaustivamente (nos dois sentidos da palavra). Se a finalidade que tinha em vista era "promover a integração harmoniosa dos indivíduos, estamentos e ordens do império português" - em homem que se ofendia quando o tomavam por brasileiro - é evidente que o Brasil como cosa mentale era a menor das suas preocupações.

Da mesma forma, não podem ser tidos como fundamentais autores como Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, simples epígonos que apenas retomaram, sem alterá-las nem contestá-las, as perspectivas abertas por Gilberto Freyre. O caso de André João Antonil é duplamente característico, autor que, sem ser, nem de longe, fundamental, deixou uma obra representativa da numerosa biblioteca ufanista, cujos pecados foram todos atirados às costas do conde de Afonso Celso e dessa outra obra representativa - Por quê me ufano de meu país (ignorada nesta coletânea).

Aprovado por todos os órgãos de censura prévia, o livro de Antonil foi confiscado pelas autoridades no momento mesmo da publicação, "para evitar exposição das riquezas da colônia à cobiça de outras nações", diz Janice Theodoro da Silva, autora do respectivo capítulo, que aceita, sem discutir, essa velha fábula imaginada pelos historiadores para explicar o que parecia sem explicação. Há motivos para crer, entretanto, que o livro foi sacrificado numa luta pelo poder entre dois serviços censórios da administração portuguesa, conforme documentos a que me refiro na História da inteligência brasileira (vol. I, 1976).

O tempo e as vicissitudes políticas "confiscaram" a tal ponto José Bonifácio, autor fundamental do pensamento brasileiro, que Carlos Guilherme Mota, escrevendo a seu respeito nesta coletânea, afirma ter sido posto "fora da história, tendo sua imagem quase apagada com o revigoramento da mentalidade atrasada do Segundo Reinado." Chamando-o sistematicamente de "Bonifácio" (nome em geral reservado aos personagens ridículos das comédias populares), Carlos Guilherme Mota assevera a urgência de reestudá-lo, enumerando, contudo, na página seguinte, numerosos autores que já o fizeram. Por outro lado, os três grossos volumes de suas Obras científicas, políticas e sociais, publicados em 1963, tornam inexata a afirmação de que "tenha escrito relativamente pouco." Acontece apenas que absolutamente não foi lido, no momento próprio, pelos que tinham obrigação de lê-lo e aplicar-lhe os ensinamentos, confirmando a lei orgânica das ocasiões perdidas que condiciona a História do Brasil.
 

 

 

 

 

 

22/09/2005