Wilson Martins
11 de Junho de 2001
Mundo antigo
Os acasos da vida editorial têm também
os seus caprichos, como a publicação simultânea de dois livros sem
qualquer ligação direta um com o outro, a não ser a
contemporaneidade dos personagens, testemunhas e participantes de um
Brasil antigo, tanto mais homogêneo em si mesmo quanto, como é
óbvio, mais incompatível com os nossos atuais parâmetros de vida
social e intelectual (Maurício Nabuco. Reflexões e reminiscências
(Rio: Nova Fronteira), e Márcia Camargos. Villa Kyrial: crônica de
belle époque paulistana São Paulo: Senac, 2001).
Seria despropositado pôr em paralelo
as recordações de Maurício Nabuco (1881-1979) e Minha formação, esse
clássico da memorialística universal. Os dois livros se distinguem
pelo estilo, pela matéria, pela cobertura historiográfica e até pelo
fator intimidante de ser o autor, em um dos casos, filho de Joaquim
Nabuco. Respondendo ao título com fidelidade e sem falsa modéstia,
Maurício Nabuco escreveu o livro convencional dos diplomatas
aposentados, com observações sobre o que se pode ter, não só como os
aspectos salonescos da profissão, mas também o espaço menos nobre
que é a cozinha do ministério.
Quanto a isso, não foi mais corrosivo
que o habitual, sem deixar de lado, entretanto, os previsíveis
ajustes de contas com políticos e colegas, cumprindo o preceito de
que a vingança é prato que se come frio. Acrescenta-se, apesar de
tudo, a lancinante nostalgia da idade de ouro para sempre
desaparecida: Nessun maggior dolore... Ainda assim, são proveitosas
até hoje muitas das suas observações sobre a carreira, algumas delas
destinadas a ofendere a vaidade ou a empáfia dos colegas: "É que a
formação diplomática não é mais propícia para alargar o espírito.
Nnao sei mesmo se haverá carreira mais imprópria para ampliar o
horizonte individual. (...) Nomeados adidos de embaixada (...)
passam a copiar à máquina coisas sem interesse. Daí é fácil passarem
a dar importância que não merecem às minúcias burocráticas ou
sociais – como sempre fizeram as figuras secundárias da carreira –
por exemplo, ao formato, tipo e papel do cartão de visita (...) e,
desse ponto em diante, sua carreira muitas vezes constitui triste
descida intelectual (...)."
O Ministério das Relações Exteriores,
acrescentava na mesma ordem de idéias, "deve ser provido por
estadistas", não pelos chamados "técnicos", cuja especialização
limita o que as funções implicam de largos horizontes intelectuais.
Observação que se pode estender a todas as pastas: não é necessário,
nem aconselhável, que o ministro da Agricultura seja agricultor, nem
que seja professor o ministro da Educação, a propósito, que somente
em nossos dias foram entregues a um civil as pastas da Defesa,
apesar do exemplo deixado por Epitácio Pessoa, que entregou a da
Guerra (como então se chamava) a Pandiá Calógeras, o que Maurício
Nabuco estima "manifestação de maturidade política", aliás recebida
com os resmungos dos subordinados. Com relação a Abelardo Rôças
(1881-1950), para lembrar uma curiosa personalidade, são
ambivalentes os setnimentos de Maurício Nabuco: "Teve carreira de
displicência funcional, servindo-se de preferência da lábia e do
apoio político, quando sua inteligência e seu talento estilístico
lhe teriam facilitado outro caminho". Reconhece, entretanto, que
escreveu "o mais sutil retrato que já se pintou de Getúlio Vargas.
Fê-lo em castelhano quando embaixador no México, e no panegírico pôs
em relevo todas as qualidades, sem omitir um único defeito do
retratado."
Posso acrescentar tratar-se do artigo
anônimo publicado a 7 de setembro de 1988 no jornal Excelsior,
daquela cidade. Sugeri desde logo a sua autoria, o que Maurício
Nabuco confirma, sem, de resto, identificar-lhe a origem (veja /W.M.
História da inteligência brasileira, vol. VII). Enquanto tudo isso
se passava, José de Freitas Valle (1870-1958) vivia em São Paulo uma
existência de gloriosa notoriedade, destinada a terminar em
melancólico exílio interior com o fim da primeira República, de que
foi um dos expoentes paradigmáticos.
Além do mecenato intelectual e
artístico com que se beneficiaram artistas e escritores do
Modernismo, como Anita Malfatti, Sousa Lima, Villa Lobos, Brecheret
(que os modernistas se vangloriavam de haver "descoberto"), sem
excluir Mário de Andrade e Oswald de Andrade, freqüentandores
habituais da Villa Kyrial e dos seus almocos, Freitas Valle teve
papel decisivo e dinâmico no desenvolvimento da instrução pública no
estado de São Paulo, modelo pioneiro para o resto do país: "As
medidas mais expressivas (...) ocorreram no ensino primário, com a
introdução, na década de dez, no grupo escolar, que gradualmente
serviria de modelo para o restante do país, (...) presidente da
Comissão de Instrução Pública por muitos anos. Vale apresentou
projetos de lei criando escolas operárias e agrícolas para menores,
reformulando os cursos da Escola Politécnica e da Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz e fundando a Escola Normal do Brás. Foi
também responsável pela remodelação da Biblioteca Pública que, até
1911, existia apenas nominalmente (...)."
Por sua militância no campo
educacional ao longo de 27 anos de mandatos consecutivos como
deputado e senador (estadual), Freitas Valle teria sido o artífice,
naquele período, "da maior parte da legislação de ensino em São
Paulo." Literalmente, foi poeta simbolista de segundo escalão, autor
de algumas peças representadas com sucesso no Rio e em São Paulo.
Sob o pseudônimo de Jacques D'Avray, escrevia em francês, língua
oficial do simbolismo brasileiro, editando os seus livros em
pequenas tiragens fora de comércio. Na autorizada opinião de Manuel
Bandeira, "seu trabalho não era desdenhável", mas acrescentava que
"Jacques d"Avray foi o grande erro de Freitas Valle".
Pode-se pensar que erro ainda maior
foi a Villa Kyrial, com seu ambiente de provocadora ostentação
aristocrática, símbolo perfeito de época e da classe e que
pertencia. O livro de Márcia Camargos é um ato de justiça.
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