Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



29 de Setembro de 2001



E o conto?

 

 


 

Passando por mais um daqueles períodos de hibernação ou astenia peculiares à história dos gêneros, o conto brasileiro já conheceu melhores dias, mais em quantidade, é preciso dizê-lo, do que em qualidade, fato perfeitamente normal e previsível. Também nos momentos de euforia criadora a lei dos grandes números joga contra a abundância: o livro de contos é o maior inimigo dos contistas, porque as espécies esgotam as próprias virtualidades pelas mesmas razões que lhes asseguram o sucesso.

Num livro de contos, os mais imperfeitos "puxam para baixo" o nível do conjunto, tropismo negativo que detrai do que poderiam ter de superior e estimável. São, por isso, tanto menos vulgares coletâneas como a de Milton Coutinho (As horas velozes, Rio: 7Letras, 2001) em que os contos foram claramente selecionados para que a arte literária da narrativa e a orginalidade da imaginação garantissem a homogeneidade do conjunto. Ele não recusa o que se pode chamar de "surrealismo realista", como no conto "O criado", nem o "realismo surrealista" do "Último desejo", para nada dizer do "realismo onírico" na série dos "Sonhos".

Eis a abertura de "O criado":

Já não me lembro de quem partiu a idéia de ter um criado em casa, mas acho que hoje, na situação em que nos encntramos eu e minha esposa, isso pouca ou nenhuma importância tem. Recordo-me perfeitamente, contudo, do dia em que ele chegou [...].

Era um criado mais do que perfeito, tão perfeito que se antecipava ao que os patrões pensavam ou desejavam. A situação tornou-se inquietante em face dos poderes extra-sensoriais do criado:

Naquela noite [...] o sono, por alguma razão, não vinha [...]. Em certo instante, veio-me a vontade de tomar um copo de leite quente [...]. Devo dizer que raramente bebo leite e, desde a chegada do criado, aquela era com certeza a primeira vez que me aconteceria de ingeri-lo. Por isso, não foi com pouca surpresa que, logo após ter deixado o quarto [...] deparei-me com a figura do criado que trazia numa bandeja um copo de leite brilhante e imponente [...].

A situação se tornou a tal ponto intolerável que o narrador se vê na necessidade de decidir entre "sucumbir às ações do criado" ou abandonar a casa. No conto "Último desejo" a atmosfera é mais descontraída: "Desde que me entendo por gente, sempre soube que tio José era bígamo [...]. Tio José montara duas casas. Ambas praticamente do mesmo tamanho e equipadas com os mesmos utensílios domésticos [...], vivendo com a mesma legitimidade espiritual essas duas personalidades, inclusive no que se refere ao seu último desejo".

Caso de "realismo surrealista" que difere do realismo banal de todos os dias, no tratamento do qual Edla van Steen penetra em outra realidade, ainda mais real, a realidade profunda do existir (No silêncio das nuvens. São Paulo: Global, 2001). A família de média burguesia é o mundo predileto de sua observação, em contos longos de múltiplas ressonâncias. Ela demarcou um território próprio, balizado por Virgínia Wollf num extremo, e, no outro, por Guy de Maupassant, no interior de cujas coordenadas se desenvolve a própria orginalidade narrativa. É a contista da cidade e da cidade brasielira dos nossos dias, contista da vida doméstica nos seus pequenos e grandes dramas, às vezes com inesperado desfecho trágico, como em "Bodas de ouro", conto de harmônicas Woolfianas:

Ela podia não ter acordado nunca mais. Que dia é hoje? Sábado. Finalmente, Lara abre os olhos devagar, as pálpegras pesadas. [...] Bodas de ouro. Ela não quer saber nada daquilo, missa, café e almoço de família, casa cheia.

Tudo transcorreu na rotina dessas comemorações, até que, no fim do dia:

Pensei que a festa não ia acabar mais. – "Vou subir, Lara. Estou louco para tirar esse sapato." Lara sentou-se no sofá, exausta. [...] Muito cansada. E triste. Tristíssima. [...] E não tinha ânimo. Aquela autopiedade também não levaria a nada, nem a lugar nenhum. [...]. De repente, a sala se iluminou: – "Quem está aí? Vicente? Até que enfim você veio me buscar". Lara se levantou, lépida, e saiu sem olhar para trás. O corpo no sofá.

A esse realismo clássico podemos contrapor o surrealismo realista da burocracia na fábula de proveito e exemplo escrita por Dionísio Jacob (A utopia burocreatica de Máximo Modesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2001), extraordinária sátira das repartições públicas, no caso os Serviços Interinos, criados por uma farsa de computador:

O Valdir, com muito cuidado, procurou me esclarecer tudo [...]. Na verdade havia existido um departamento nesta nossa salinha, anos atrás [...]... parece que o Bigode constatou, numa de suas invasões [no computador] que os dados do tal departamento ainda constavam dentro do sistema e começou a administrar à distância, jocosamente, como um pirata cibernético. Inventou cargos, gerou holerites, fez licitações [...] criou uma folha de pagamento compatível, com salários modestos, para a atenção. [...]. E tudo corria bem até que pro algum engano, eu, que prestara concurso para o Almoxarifado, fui colocado na vaga de gerente criada pelo bigode [...].

A repartição cibernética passou a existir, os três ou quatro funcionarios recebiam regularmente os contracheques, enquanto o narador, que não sabia de nada, esforçava-se para criar atividades que lhe justificassem a existência. Seus memorandos eram endereçados a um direetor inexistente que, por isso mesmo, jamais os respondia nem expedia instruções: "Não consigo parar de pensar em alguém que criou este lugar, possibilitando que eu criasse a ilusão da vossa presença na sala ao lado. Tudo existe só na imaginação, mas tem uma vida consistente a ponto de gerar uma folha de pagamento e mexer com as expectativas mais profundas."

Qualquer similaridade com as repartições públicas que conhecemos será mera coincidência.
 

 

 

 

 

 

22/09/2005