Wilson Martins
Prosa & Verso,
7.12.2002
Clássico nordestino
De todos os romancistas que
constituíram, na década de 30, a chamada “literatura do Nordeste”,
restaram apenas três sobreviventes: Jorge Amado, representante do
“realismo socialista” na primeira fase, passando pela transição de
“Terras do sem fim”, em 1942, para terminar, a partir de “Gabriela,
cravo e canela” (1958), no populismo fácil que desmentia e
contraditava as suas ideologias juvenis; Graciliano Ramos, com o
romance psicológico que só parecia “regionalista” por enganadora
assimilação, e, finalmente, José Lins do Rego, o mais paradigmático
deles no que se refere ao ideário tácito e aceito da nova escola,
com a qual se identificou ao ponto de se tornar anacrônico
juntamente com ela. Foi uma “vítima da imortalidade”, escreve
Luciano Trigo, um daqueles clássicos que só lemos por obrigação:
“Citações a seu nome são cada vez mais escassas em estudos críticos,
como se a sua obra já tivesse sido exaurida, e seu lugar já
estivesse definitivamente fixado” (“Engenho e memória: o Nordeste do
açúcar na ficção de José Lins do Rego”. Rio: Academia Brasileira de
Letras/Topbooks, 2002).
É, dos três grandes, o que mais
envelheceu, a começar pelo estilo ingênuo, no qual Peregrino Júnior
distinguiu uma “sintaxe pessoal, períodos curtos, ordem direta,
adjetivação enxuta e essencial, modismos e idiotismos, substância
medular da fala do povo”, ou seja, o idioma narrativo reduzido à sua
expressão mais simples. Luciano Trigo lembra que ele mesmo “dizia
gostar de ser classificado como instintivo, telúrico e vitalista”,
autor de uma obra que “nasceu espontaneamente, naturalmente, sem
planta pré-fabricada”. Em sua técnica narrativa, “os episódios se
encadeiam por coordenação (e não por subordinação)”, tanto em
“Menino de engenho” e “Doidinho”, como em todos os livros, inclusive
os estranhos ao “ciclo da cana de açúcar”. Na verdade, há mais
justaposição que coordenação como técnica expositiva: em sua
escrita, o texto é aluvionário, por seriação cumulativa (para nada
dizer das repetições obsessivas que procuram acentuar o
comportamento dos figurantes).
Nesse conjunto, Luciano Trigo destaca
“Fogo morto” como obra-prima absoluta, “romance no qual ao tom
evocativo se soma uma ambiciosa estrutura romanesca, numa narrativa
em que se multiplicam os pontos de vista, sem nenhum pré-julgamento
moral”. O romance, acrescenta ele em outra passagem, “apresenta uma
construção bem mais complexa e rigorosa que os outros romances do
açúcar. Não se trata de mero suceder de episódios e reminiscências,
é obra pensada de forma a que as três partes se articulam da maneira
sutil — sendo a cronologia da parte do meio anterior à das outras
duas, o que também se reflete na sua diferenciação formal”.
A verdade é que “Fogo morto” se compõe
de três fragmentos independentes, sem qualquer relação orgânica
entre eles, como se o autor houvesse abandonado sucessivamente o
primeiro, e depois o segundo, ao perceber que a respectiva matéria
se havia esgotado. Nos romances posteriores ao “ciclo” ele parece
ter querido “provar a si próprio e aos outros que era capaz de criar
realidades e personagens que nada tivessem a ver com a sua
biografia”. Não foi feliz, conforme sabemos e a crítica logo
percebeu, de maneira que “Fogo morto” resultou da decisão
subconsciente de recuperar a glória passada: foi a reescrita e a
releitura do conhecido com a ilusão da novidade.
É o que, apesar de tudo, Luciano Trigo
acaba por reconhecer: “A idéia original de José Lins do Rego era se
concentrar na história de Lula de Holanda e do engenho Santa Fé, mas
ao longo da criação o mestre José Amaro acabou dominando a primeira
parte, e o capitão Vitorino a última”. Na segunda parte, a ação em
curso é substituída pela narrativa retrospectiva, enquanto a
terceira, introduzindo Vitorino no papel principal, desloca por
completo o centro de gravidade e o foco de leitura. Sob o título de
“Fogo morto”, a expressão só se aplica a uma das histórias, porque
as outras duas não se relacionam com ela, assim como não se
relacionam entre si: são capítulos soltos e autônomos, interessantes
neles mesmos, mas não enquanto partes do conjunto.
O ciclo da cana de açúcar foi também,
à sua maneira, um romance engajado e documentário, implicitamente
esquerdizante, sem aceitar programaticamente as palavras de ordem
ideológicas: na obra de Lins do Rego, “a nostalgia e a visão crítica
travam um combate sem fim. Combate entre o íntimo orgulho da
tradição da qual o escritor faz parte e a consciência de sua
injustiça. (...) É o romance da terra disputando palmo a palmo com o
romance do homem. É o tom de ensaio, de inquérito social e
sociológico, disputando a primazia com o drama individual e humano”.
Provindo do regionalismo gilbertiano
de substância saudosista, ele escreveu, entretanto, na atmosfera “de
engajamento político e de utilização da literatura como instrumento
de denúncia social”, aspectos que, nos seus livros, se manifestam de
maneira implícita e derivativa. Para ele, ao contrário de Jorge
Amado, o romance não era a Voz da Revolução. Não surpreende que
tivesse cedido à pressão do momento, propondo, com “Moleque
Ricardo”, o seu romance político, assim como “Usina” marcaria a
implantação industrial no velho Nordeste agrária e patriarcal: “É
como se José Lins estivesse fazendo um dever de casa”, um “romance
social, algo panfletário, bem aos moldes que pedia o momento de
acirramento político-partidário do país”.
Na intratável hostilidade com que ele
e Gilberto Freyre encaravam os “modernistas de São Paulo” havia,
para além das inevitáveis questões de rivalidade pessoal, a
incompatibilidade profunda das camadas mentais. Luciano Trigo
observa, por exemplo, que a máquina, símbolo da modernidade e
congenial ao pensamento modernista, era encarada pelos regionalistas
como o “monstro impessoal e impiedoso”, máquina da usina que viera
para eliminar o engenho tradicional e seus patriarcas. As mudanças
eram de ordem moral, tanto quanto econômica, tendo no Dr. Juca, do
Pau d’Arco, o agente corruptor e destrutivo, representante da idade
industrial que, por paradoxo, vinha assimilar aos “modernistas de
São Paulo” o velho mundo agrário que desaparecia.
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